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Não falta companhia a Crivella no Baile da Ilha Fiscal
| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Gostamos de pensar que o Baile da Ilha Fiscal foi a derradeira manifestação de arrogância, alienação, ostentação e desprezo com o cidadão comum da monarquia brasileira. Não era só isso, era o símbolo mais bem acabado da aliança entre os detentores do poder e os que, por um quinhão desse poder, dão suporte a qualquer tipo de canalhice.

Foram 5 mil os convidados do baile e entre eles estava boa parte da fina flor da sociedade brasileira que, na semana seguinte, com a proclamação da República, passaria também a achar um absurdo tirar 10% do orçamento do ministério de Obras e Vias Públicas do ano seguinte para bancar o rega-bofes.

O cardápio do Baile da Ilha Fiscal faz as licitações dos dias atuais parecerem modestas. Foram 800 kg de camarão, 300 frangos, 500 perus, 64 faisões, 1,2 mil latas de aspargos, 20 mil sanduíches, 14 mil sorvetes, 2,9 mil pratos de doces, 10 mil litros de cerveja, 304 caixas de vinhos, champagne e bebidas diversas. Custou 10% do orçamento anual da cidade do Rio de Janeiro em 1889.

O mundo passou por uma revolução tecnológica, de usos e costumes nos últimos 100 anos. Nós ainda não conseguimos superar a ideia de que uma casta de privilegiados tem permissão para farrear com dinheiro público, de que a casta dos capachos usufruirá as migalhas deles e a maioria simplesmente carregará esse pessoal nas costas por gerações.

A concentração de poder no Brasil é tão problemática que a denúncia contra o prefeito Marcelo Crivella vem da rede de televisão que é a principal rival da rede de televisão da família dele. Trata-se também de uma das maiores igrejas do país, com grande influência no exterior e - apesar de os inteligentinhos odiarem - símbolo da maior manifestação religiosa tipicamente brasileira, o neopentecostalismo. Concentrar poder é especialidade da casa e isso não tem a menor chance de entregar uma vida digna à maioria das pessoas.

A denúncia é de que existia um grupo de servidores públicos que, algumas vezes em horário de trabalho e outras fora dele, se organizava por grupos de whatsapp para dar plantão em hospitais e postos de saúde do município do Rio de Janeiro. Tinham a nobilíssima missão de calar a boca do cidadão descontente, se necessário fazendo micagens e barulhos para impedir entrevistas reclamando do atendimento a jornalistas.

O que não me sai da cabeça é: por que essas mesmas pessoas não foram organizadas no mesmo grupo "Guardiões do Crivella" para resolver os problemas dos cidadãos? A melhor forma de evitar que o cidadão reclame para a imprensa é fazer o problema sumir. Se tem gente disponível, inclusive com acesso ao prefeito, por que a opção de calar o cidadão em vez de resolver? Sinceramente, não me conformo.

Eu sei que a internet inteira está xingando o Crivella o dia todo porque, cá entre nós, político faz o Brasil passar tanta raiva que falar mal de político deveria virar modalidade olímpica para a gente. Só que a estratégia dos capangas de prefeito jamais seria possível sem a participação dos próprios capangas. Ou seja, em pleno 2020, numa pandemia, ainda não aprendemos que funcionário público serve o público, não o chefe da vez.

E falo no plural não porque pense que você tenha a mesma moral, eu também não tenho. Mas não podemos negar fazer parte de uma sociedade em que é perfeitamente possível um monte de gente paga para servir o público simplesmente ignorar isso. Somos parte da sociedade em que é possível a sobrevivência - com salários nababescos e aposentadoria integral - da casta dos capachos, os que vivem de bajular o chefe da vez e fingir que defendem o cidadão.

"Ah, mas o que eu, que sempre reclamo disso e aponto os erros posso fazer?". Sozinhos podemos fazer pouco e juntos precisamos mover montanhas. Os que reclamam e os que calam são parte da mesma sociedade, aquela em que alguém vira funcionário público da saúde e, em vez de resolver o problema do cidadão, se mete a impedir que ele reclame e bajular um prefeito.

Dessa vez, devido a uma circunstãncia muito específica, os oportunistas foram desmascarados e a Justiça vai apurar. Mas quantos oportunistas fingem diariamente trabalhar pelo povo e ainda são aplaudidos. Quer outro exemplo de hoje: a tal da lei de pena maior para corrupção na pandemia, um projeto inócuo e de puro marketing.

Aqui eu não vou nem entrar na discussão da constitucionalidade dessa história, que vai ocorrer. Fiquemos apenas no frenesi de redes sociais dos deputados apoiando essa lei que vai endurecer as penas de quem foi torpe o suficiente para se aproveitar da pandemia. Eles serão enquadrados também nesse time? Não tenho preparo para avaliar, mas tenho uma pergunta: usar a pandemia para fazer marketing com dinheiro público e escondendo informações enquadra nisso? Talvez não.

Meu ponto é o seguinte. Ainda que essa lei seja aprovada, ela não valerá para nenhum crime cometido antes que ela seja sancionada pelo presidente da República. A lei não retroage, salvo em benefício do réu. Os deputados que estão comemorando a lei nas redes sociais sem informar esse pequeno detalhe estão preocupados com quem? Com você ou com o marketing pessoal deles? Não tenho dúvidas de que serão tratados como heróis pela maioria e farão novos projetos inócuos para as nossas vidas e ótimos para divulgação.

Não faltam companhias para o prefeito Marcelo Crivella no Baile da Ilha Fiscal e não faltarão enquanto quem carrega o piano permitir que valha tanto a pena a vida de bajular poderoso e sabotar o povo.

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