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Imagem ilustrativa de um feto humano.
Imagem ilustrativa de um feto humano.| Foto: Pixabay

Difícil dizer qual é a parte mais trágica da história da menina de 10 anos que realizou um aborto na 22a semana de gravidez e foi estuprada desde os 6 anos de idade pelo marido da tia. Tudo na história é de cortar o coração e fazer refletir que tipo de futuro esperamos se a reação de tantos é consumir a tragédia como espetáculo. O caso é usado de desculpa para uma batalha movida a adrenalina nas redes sociais e na imprensa.

A menina mora numa cidade pequena, São Mateus, a 218 km da capital do Espírito Santo, Vitória. A mãe morreu e o pai está preso. Ela é levada ao pronto-socorro pela avó com dor de barriga e então se constata a gravidez. Acaba finalmente contando sobre o martírio dos estupros e diz que não havia falado antes porque o estuprador a ameaçava. Não sei se é possível traduzir em palavras os sentimentos que essa história provoca.

Obviamente surgiram os que tentam aliviar a barra do estuprador da menina de 10 anos, referindo-se a ele como pedófilo. Não é um pedófilo, tem relacionamento com a tia da menina, que é adulta. É um criminoso impiedoso que torturou física e psicologicamente uma criança por quatro anos porque quis, não porque tenha uma característica que o torne mau. É ainda mais perverso que um pedófilo.

O que fazer num caso assim? Sinceramente, eu só tenho vontade de chorar. Não consigo imaginar o que devolverá a infância a essa menina e que tipo de futuro ela será capaz de construir. Se nós, diante de acontecimentos muito menos graves, vez ou outra passamos a nos definir pelas tragédias que nos atingem, será ela definida para sempre pela barbárie? Torço para que não.

O hospital para onde a menina foi encaminhada disse que a gestação estava muito adiantada para um aborto. Os médicos recusaram-se a fazer o procedimento. A menina disse às assistentes sociais que não queria prosseguir com a gravidez e foi constatado que havia risco de vida. Recorreu-se ao Ministério Público que obteve junto ao Poder Judiciário uma autorização para o aborto legal e viajou com a avó e uma assistente social para Recife, onde foi realizado o procedimento.

Boa parte da sociedade brasileira aproveitou a tragédia dessa menina de 10 anos para dedicar-se ao bate-boca tradicional sobre aborto, com requintes de crueldade como o vazamento dos dados pessoais da menina e ignorar que fetos de 22 semanas são viáveis. A discussão moral é outra: tratava-se de um aborto ou parto prematuro?

Para os defensores da vida, ela começa na concepção, não há discussão sobre isso. Só que essa discussão não foi feita. Houve uma catarse coletiva que tomou contornos perversos na internet e nos grupos de whatsapp chegando às raias da loucura. Grupos foram à porta do hospital onde a menina estava internada para chamá-la de assassina. Senhoras exaltadas disseram em grupos de Facebook que, se a menina não denunciou o tio durante 4 anos, é porque gostava de ter relações sexuais com ele. Isso não tem nada a ver com religião nem com defender a vida, mas com usar a tragédia alheia como entretenimento.

Para os defensores do aborto, a recusa do hospital em fazer o procedimento no estágio adiantado de gravidez é uma violação dos direitos da menina. Para esses, pouco importam as razões dos médicos - e não falo aqui nem em cláusula de consciência. Estamos falando de algo que contraria a biologia: uma menina de 10 anos, que sofre estupros há 4, numa gravidez que chega ao quinto mês sem pré-natal e com diabetes gestacional. Houve então o grupo que também entrou num processo de catarse coletiva para garantir o que julga ser o direito da menina.

Mesmo sem ter informações precisas, partindo principalmente da reação emocional aos ataques de militantes que vazaram dados da menina na internet, pintou-se um cenário em que todas as forças obscuras do planeta estariam atuando para levar adiante uma gravidez que mataria uma menina de 10 anos e, se bobear, também o bebê. Ferozes diante de seus teclados, protestaram bravamente para evitar que essa profecia sombria se cumprisse. Agora crêem que, graças aos xingamentos contra cristãos e pró-vida, o Ministério Público, o Poder Judiciário e o SUS resolveram fazer o que sempre fizeram.

Hoje, a Justiça determinou que as redes sociais retirassem do ar os posts divulgando dados pessoais da menina, origem de toda a catarse coletiva. Twitter, Facebook, Instagram e YouTube já sabiam que esses dados estavam lá e são ilegais, têm inclusive como bloquear por inteligência artificial que sejam replicados em texto, foto, áudio ou vídeo. Por que não fizeram? O fato de o espetáculo do aborto ser muito lucrativo porque engaja muito não tem nada a ver com isso, deve ser outro motivo.

Há diversos bebês brasileiros que nasceram com 22 semanas de gestação e sobreviveram. Essa é uma questão completamente à parte de interromper ou não a gravidez fruto de estupro de uma menina de 10 anos com risco de morte. E essa questão não foi debatida.

Como se deve proceder diante de tragédias como essa? A Justiça determinou a interrupção da gravidez, fato consumado. Mas não estamos falando de um feto inviável fora do corpo da mãe, há diversos casos de sobrevivência nessas condições desde que devidamente atendidos pela equipe médica. A decisão de não providenciar atendimento médico a um feto que tem chances de sobreviver precisa ser debatida pela sociedade.

Eu nem sei se essa decisão foi realmente tomada ou se simplesmente se entrou numa espécie de piloto automático em que questões éticas são sufocadas por uma gritaria de parte a parte, afetando virtude e apontando defeitos irremediáveis. O debate é inútil para este caso específico, já que o fato é consumado, não foi dado o atendimento. Na verdade, o caso específico nunca foi o mais importante. A prioridade de parte da sociedade brasileira parece ser preencher o vazio da alma por meio de debates emocionantes com desconhecidos em torno de fatos imaginários.

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