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Um ramo econômico que cresce em disparada no Brasil é o do papai-sabe-tudo. E os nossos são diferentes do protagonista da radionovela e depois da série de televisão Papai Sabe Tudo, Robert Young. Ele cansou do papel e pediu que seu contrato não fosse renovado. Os nossos são incansáveis. Vivemos a era do milagre da multiplicação de especialistas.

Talvez por ser doutor em virologia, Átila Iamarino imaginou entender de comportamento humano e comunicação. Diante das projeções sobre a velocidade de contágio do COVID e do surgimento de mutações, concluiu que obrigatoriedade da vacina e calar a voz da imbecilidade antivacina seriam soluções. Esqueceu-se de calçar as sandálias da humildade, ele não é do ramo.

Você verá uma tonelada de representantes da categoria papai-sabe-tudo argumentando que não se obriga a vacinar porque seria uma violação de direitos. Dirão que não se pode calar os imbecis antivacina porque têm liberdade de expressão. O golpe está aí, cai quem quer. O fato é que não se diz que vacinação é obrigatória nem se tenta calar antivacinas porque não funciona, simples assim. Quem é do ramo sabe, como você deve saber do seu ramo muito mais que eu.

Decisões de saúde pública são tomadas por um coletivo interdisciplinar de especialistas. Juntos, eles fornecem o subsídio técnico e científico, cada um na sua área, para que o Poder Público possa tomar a decisão mais eficiente possível dentro da realidade e dos recursos que tem. Nos casos em que eu atuei, havia virologistas, epidemiologistas, especialistas em Saúde Pública, especialistas em logística, militares, líderes tribais locais, especialistas em comportamento humano, cientistas sociais, humanitários e comunicadores. Cada um no seu quadrado, obviamente.

Vou dar um exemplo simplificado. Você faz uma reunião emergencial para conter um pico de epidemia em uma região específica. Epidemiologistas e virologistas mostram os dados da doença e dos métodos de contenção mais efetivos. Militares e especialistas em logística analisam quais desses métodos de contenção podem ser implantados com mais rapidez dentro dos recursos. Humanitários avaliam a situação de desenvolvimento humano das pessoas na região atingida. Líderes locais e cientistas sociais reportam como as pessoas reagem à doença e às propostas de tratamento. Especialistas em comportamento humano analisam essas reações e propõem a melhor forma de convencimento da população para colaborar. Comunicadores formatam a mensagem.

Qual foi o pecado de Átila Iamarino? A especialidade dele é a virologia, mas ele concluiu que sabia de logística, desenvolvimento humano, ciência social, comportamento humano, psicologia social, ciência política e comunicação também. Emitiu uma opinião como se entendesse de tudo isso porque é virologista. Meu amigo Martim Vasques da Cunha define esse movimento como "A Tirania dos Especialistas", título do livro dele.

Como todo mundo é perfeito, um monte de gente que ouviu o galo cantar e não sabe onde saiu xingando o virologista na internet. Afinal, qual o segredo da redenção humana? Xingar os outros antes que te xinguem. Nesse ambiente maravilhoso, Átila Iamarino percebeu que o título do artigo foi um desastre. Não se usa o termo "autoritarismo necessário" numa crise de saúde se você tem projeção pública. Tentou consertar postando a parte final do artigo. Pior a emenda que o soneto. Cadê as sandálias da humildade, Brasil?

A primeira premissa é falsa. Calar um grupo radical, segundo o virologista, faz com que ele deixe de ter credibilidade. Talvez com os vírus seja assim, mas com os humanos não é. Até hoje, todos os grupos radicais que se tentou simplesmente calar ou banir de redes ganharam força e endosso de cada vez mais pessoas públicas. É necessário tomar ações concretas para identificar o que une o grupo, como radicaliza as pessoas e que risco representa para agir de forma multidisciplinar no desmonte. Apenas banir não funciona, sobretudo se isso for feito sem transparência nos critérios, como foi.

Nossa, estou muito sabida, né? Calma, que eu já tomei meu "simancol" hoje. Meu quadrado é comunicação. Quem chegou à conclusão de que o simples banimento das redes funciona como propaganda para grupos radicais foi a pesquisa de um grupo de cientistas da Fondazione Bruno Kessler, em Trento, na Itália. São 5 pesquisadores: um PhD em física com especialização em ciências da computação, um professor de Economia Cultural que é conselheiro da União Europeia para Cultura, um engenheiro de software, um pós-doutor em física especializado em nanopartículas e organizações humanas e biológicas formadas por múltiplas nanocamadas, e um físico teórico especializado em sistemas complexos.

Ah, mas o Átila não pode ter a opinião dele? Pode, só que não tem. Opinião pressupõe ter todas as informações e preparo para analisar um tema. No caso da vacinação, só se consegue isso em equipe. Temos confundido sistematicamente opinião com sensação. Eu tenho várias sensações e intuições sobre coisas que não entendo. Aposto que você também. Somos livres para ter sensações e expressar, mas não se pode confundir isso com opinião porque não é.

Um especialista em virologia tem opiniões sobre vírus. Eu tenho opiniões sobre comunicação. Meu avô tinha opiniões sobre marcenaria. Minha avó tinha opiniões sobre costura. Pense nas pessoas ao seu redor. O melhor PhD em Física do mundo não vai saber mais de costura do que a minha avó. Temos de respeitar os ofícios das outras pessoas. Ninguém sabe mais nem menos, a gente só sabe diferente. O conhecimento é construído a partir do encontro de vários tipos diferentes de saberes, que se complementam.

O recurso retórico do "apelo à autoridade" é um dos conceitos mais utilizados por radicais. E também um dos mais distorcidos na internet. Apelo à autoridade não é dizer que a pessoa sabe mais sobre o próprio ofício, mas uma situação diferente em que, por ter uma posição de autoridade, a pessoa acredita ter mais conhecimento sobre todas as áreas. Assim como a imbecilidade, é democrático, você verá em todos os espectros políticos, religiões e idades.

Todos os dias, religiosamente, um exército de pessoas sensacionais vem me ensinar sobre o meu próprio ofício nas redes sociais. Qualquer que seja sua profissão, aposto que acontece a mesma coisa. Que eu saiba, só têm esse direito os jornalistas - nós pensamos que somos Deus - e os juízes - esses têm certeza. Pensando que "apelo à autoridade" é qualquer um poder contestar quem domina tecnicamente um tema, já estamos dando aula de Bíblia para o Papa, de nazismo para a Alemanha, de democracia para os Estados Unidos.

A chance disso dar certo é a mesma de eu resolver contrariar um engenheiro na construção de um túnel e mandar todo mundo fazer do meu jeito. Espero ter um resultado diferente daquele de quando contrariei o sr. Nelson, encanador, numa questão sobre a caixa d'água aqui de casa. Nunca aprendi tanto sobre ficar no meu quadrado em tão pouco tempo, acreditem. Os nossos inúmeros epidemiologistas formados pela Universidade do Whatsapp estão plantando vento e vão colher tempestade. Hora de baixar a bola, tomar seu simancol diário e refletir com carinho qual o conhecimento que realmente têm e o que é sensação.

O brasileiro é um acreditador profissional de nível olímpico. Até hoje acreditamos que o parcelamento em doze vezes sem juros é sem juros mesmo. Vai dar certo esse pessoal analisar percentual de eficácia de vacina? Claro, tão certo quanto a minha intervenção gloriosa de jornalista no trabalho do sr. Nelson, encanador. O mais impressionante é saber que muita gente levaria esse meu palpite a sério e sairia defendendo em público. Se for o que a pessoa quer ouvir, pouco importa o universo, ela sai defendendo e pronto.

Pode ser que alguém que você conhece tenha feito isso. Pode ser que você faça isso. Até eu já fiz isso e poderia dar várias dicas de como reciclar meu papel de trouxa. O importante é parar. Gostamos de pensar que nossas decisões são lógicas e racionais mas não são, são emocionais. Isso também não sou eu quem digo, eu fui atrás de quem estuda comportamento humano e psicologia social para entender. É um impulso quase irresistível levar a sério alguém que diz exatamente o que a gente estava pensando. Aí é que precisa entrar a razão: essa pessoa sabe o que está falando ou está na mesma que eu, com uma sensação? Temos de nos fazer essas perguntas.

É natural ter medo de tudo o que acontece durante a pandemia, desconfiar de pessoas, querer acreditar em um remédio, sentir lá no fundo do coração que um outro remédio não dá certo. Nós tomamos decisões assim e temos esse direito nos casos em que arcaremos sozinhos com as consequências. Eu, por exemplo, enganei o médico e me entupi de chocolate com amendoim porque tinha medo de morrer na anestesia geral em uma cirurgia para colocar pinos no braço. Sem jejum, eu corria risco. Foi feito com anestesia local. Exerci meu direito de nem sei o quê exatamente, mas sei que não posso sair recomendando isso a outras pessoas como se fosse o certo.

É urgente que paremos de nos esconder atrás de bate-boca. Eu ia dizer que é urgente parar de confiar em malandro e passar a mão na cabeça de vagabundo, mas não tenho essa esperança. Vivemos uma pandemia com dores reais, inclusive a de quem perde a razão e começa a viver num universo imaginário onde conhece todas as regras e conspirações. Quem ainda tiver saúde, física e mental, precisa tirar o pé do freio. Sempre que você ouvir alguém sem especialização na área falando de remédio ou vacina, lembre-se do Átila Iamarino falando de comunicação e ciência social. Não somos obrigados a saber tudo nem a ser capachos de papai-sabe-tudo.

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