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mão com luva de borracha azul segurando vários tubos de ensaio em cima de uma mesa
Instituto de Virologia de Wuhan conduz tantas operações secretas que tem até um Departamento de Confidencialidade.| Foto: BigStock

Dizem que a expressão tortura chinesa é xenófoba. Viria do século XIV quando se especulava que os chineses eram frios e calculistas porque se fecharam ao mundo. No imaginário ocidental, a tortura chinesa consistia em amarrar uma pessoa deitada, pingando água lentamente sobre a testa dela. A dor torna-se insuportável.

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Eu sinceramente nem sei se é xenofobia ou elogio porque tanto Paola Bracho quanto eu ficamos morrendo de inveja quando vemos alguém capaz de conseguir tanto com algo tão inocente. Uma gota d'água, quem diria. Hoje, a China nos tortura com informações. Chegamos a mais um capítulo sobre a origem do COVID-19.

Com a popularização das redes sociais, o cidadão ocidental comum converteu-se em um Sherlock Holmes. Muitos de nós passam o dia dedicados a desvendar os mais protegidos segredos geopolíticos da história da humanidade. Vídeos e prints em grupos de whatsapp revelam diariamente aquilo que sempre foi escondido.

Nas fake news de radicais de whatsapp já se tem certeza da origem do vírus. Duas certezas, aliás. A primeira é de que foi engendrado pelo Partido Comunista Chinês para infectar o mundo e dominar todas as pessoas. A outra é a certeza sobre o oposto de tudo o que o primeiro grupo disser. Infelizmente, entre os que realmente entendem de vírus não há certezas ainda.

O maior combustível das redes de desinformação é a dúvida. Para desinformar, não é necessário ter certeza sobre uma mentira, mas criar razão para duvidar da verdade. No caso do COVID, a verdade não está ajudando muito, é ingrata. A verdade mesmo é que não há como admitir nem descartar ainda a hipótese de vazamento laboratorial.

Há uma combinação explosiva entre a incerteza e essa necessidade que adquirimos de consumir informação nova o tempo todo. A origem do COVID virou o maior caso de erro conjunto da indústria tradicional da informação e das redes sociais. A China acaba de adicionar mais pimenta ao sarapatel, impedindo inspeções sob a alegação de segurança nacional.

Se você é leitor da Gazeta do Povo, talvez não entenda direito o que eu estou falando, então explico. Aqui na Gazeta do Povo jamais se impediu a publicação de questionamentos sobre a origem do vírus, mas isso foi a exceção da exceção e deu problemas junto às redes sociais.

Como realmente há teorias conspiratórias requintadas sobre o vírus ter sido feito e liberado de propósito, a maioria da indústria da informação assumiu uma postura igualmente equivocada. Na lógica do "doisladismo", a decisão foi colocar-se rigorosamente contra tudo o que dissessem as pessoas que se relacionam com quem acredita nessas teorias. Foi uma bela forma de errar tão feio quanto.

A maioria dos órgãos de comunicação simplesmente encerrou a questão e deu como ponto pacífico que a ciência havia concluído não haver chance nem de vazamento laboratorial. Faltou combinar com a ciência, que não foi nem avisada de que havia concluído algo nesse sentido. Redes sociais derrubavam postagens e perfis que cogitassem a origem laboratorial. Os autores foram tratados como terraplanistas.

A situação mudou porque os governos jamais embarcaram nessa, têm muito assunto do mundo real para resolver. A Austrália já pressionava fortemente por um esclarecimento e, surpreendendo todos os progressistas, foi o próprio presidente Biden quem insistiu em uma comissão para apurar a origem do vírus.

Em janeiro deste ano, o Departamento de Estado dos Estados Unidos publicou um documento com duras críticas ao Partido Comunista Chinês. Há a acusação direta de desinformação sobre a origem do vírus e cobrança de mais transparência em nome da saúde pública em todo o mundo.

"Por mais de um ano, o Partido Comunista Chinês tem sistematicamente impedido uma investigação transparente e completa da origem da pandemia de COVID-19, escolhendo dedicar enormes esforços ao engano e à desinformação. Quase dois milhões de pessoas morreram. Suas famílias merecem saber a verdade. Somente através da transparência podemos saber o que causou esta pandemia e como prevenir a próxima", diz o documento do Departamento de Estado.

Há 3 pontos específicos sobre os quais o governo dos Estados Unidos acredita que são necessárias mais informações:
1. Os diversos casos de doentes com sintomas parecidos com os da COVID - e também com o de doenças sazonais - entre os que trabalham no Instituto de Virologia de Wuhan.
2. O Instituto de Virologia de Wuhan tornou-se um hub para investigação de vírus com morcegos, ratos e pangolins desde a epidemia de SARS, em 2003, e tem pesquisado vírus semelhantes ao COVID pelo menos desde 2016.
3. O envolvimento do Instituto de Virologia de Wuhan com operações militares secretas mesmo depois de ter se tornado uma entidade civil.

"Sigilo e não divulgação são práticas padrão para Pequim. Por muitos anos, os Estados Unidos levantaram publicamente preocupações sobre o trabalho anterior da China com armas biológicas, que Pequim não documentou nem eliminou comprovadamente, apesar de suas obrigações claras sob a Convenção de Armas Biológicas.
Apesar de o WIV apresentar-se como uma instituição civil, os Estados Unidos determinaram que o WIV tem colaborado em publicações e projetos secretos com os militares da China. O WIV está envolvido em pesquisas confidenciais, incluindo experimentos com animais de laboratório, em nome dos militares chineses, desde pelo menos 2017.
Os Estados Unidos e outros doadores que financiaram ou colaboraram em pesquisas civis no WIV têm o direito e a obrigação de determinar se algum de nossos fundos de pesquisa foi desviado para projetos militares chineses secretos no WIV"
, diz o Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Vazamentos de laboratórios são muito mais comuns do que imaginamos. As agências regulatórias dos Estados Unidos fazem um relatório anual que contabiliza os ocorridos em território nacional. Somente em 2019, em território norte-americano, houve 219 vazamentos de vírus ou toxinas mortais e 13 perdas de amostras documentadas oficialmente. É por isso que se insiste na investigação do Instituto de Virologia de Wuhan.

As equipes internacionais encarregadas de investigar o Instituto de Virologia de Wuhan para apurar a origem do COVID esbarraram nas Leis de Segurança Nacional. Existe dentro do WIV até um Comitê de Confidencialidade e um sistema específico para o tratamento de informações confidenciais, cujo acesso não tem sido dado a estrangeiros.

Diante das reclamações da comunidade internacional, o Ministério de Relações Exteriores da China teve uma reação curiosa. Numa entrevista coletiva à imprensa do país, um porta-voz, Zhao Lijiang, disse que o Instituto de Virologia de Wuhan não merece questionamentos, merece um Prêmio Nobel.

A Lei de Segurança Nacional Chinesa não protege apenas informações relativas a questões diplomáticas e militares. Também são confidenciais informações relativas ao desenvolvimento científico, econômico e social do país. Até agora, ninguém sabe exatamente onde se encaixam as informações que faltam sobre as pesquisas em Wuhan.

As equipes internacionais de investigação perceberam que há informações faltando porque uma série de atividades do laboratório simplesmente não foram relatadas. O próprio laboratório alega que elas são secretas de acordo com a lei chinesa. Ocorre que ninguém sabe sobre que são os estudos e sequer quantos eles seriam.

Uma reportagem desta semana no Washington Post traz uma longa coletânea dos treinamentos de segurança e confidencialidade da informação no Instituto de Virologia de Wuhan ao longo dos últimos anos. Já durante a pandemia, em agosto do ano passado, anunciou-se uma vaga de Tecnologia da Informação para lidar com dados confidenciais. Teria de ser obrigatoriamente membro do Partido Comunista Chinês.

A mídia oficial chinesa acusa os Estados Unidos de exigirem uma transparência que não têm, em uma manobra para colocar uma pedra no assunto. Os cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan não têm nada com a origem do vírus, segundo o governo chinês, porque não há evidências disso. Dessa forma, a hipótese nem faria sentido.

"Se a primeira publicação de uma sequência de vírus de alta qualidade for responsabilizada pela origem do novo coronavírus, então o professor Luc Antoine Montagnier, que foi o primeiro a descobrir o HIV, deveria ser a causa da pandemia global de AIDS, não o vencedor do Prêmio Nobel", argumentou Zhao Lijiang, porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China.

O governo norte-americano continua pressionando por mais transparência e argumentando que é necessário descobrir a origem desta pandemia para prevenir eventuais outras. Diante das respostas do governo da China, parece pouco provável que este argumento vá funcionar. Os teóricos da conspiração sorriem de orelha a orelha.

Dentro da China não há questionamentos sobre esta situação nem entre os próprios cientistas. Prêmio Nobel de verdade não tem, mas a Academia Chinesa de Ciências listou o Instituto de Virologia de Wuhan na lista de candidatos ao prêmio de Conquista Notável em Ciência e Tecnologia no ano de 2021. Os diretores do instituto concorrem a homenagens pessoais.

Cientistas dos Estados Unidos já apostam que nunca saberemos a verdade sobre a origem do COVID e o início da pandemia. A dificuldade de acesso a informações existe até mesmo entre os norte-americanos que participaram de pesquisas em Wuhan, visitaram o laboratório e fizeram parte de programas financiados pelo governo dos Estados Unidos nos últimos anos.

As cobranças mais pesadas e as maiores críticas vêm da Austrália. A jornalista investigativa Sharri Markson já agendou para setembro o lançamento de um livro chamado "O que realmente aconteceu em Wuhan". Ela tornou-se uma estrela na Fox News americana devido às reportagens que publica no The Australian e em seu programa de televisão.

O grande problema das teorias conspiratórias e da falta de transparência do governo da China não é apenas esconder a verdade, é a consequência que vem como uma bola de neve. Ter dúvidas sobre o que nossas instituições sabem num caso tão grave de saúde pública leva cidadãos a colocarem as próprias vidas em risco e coloca em risco a saúde mental de todos nós. Diante do impasse, a resposta mais comum nos países ocidentais tem sido a polarização.

Esse imbroglio criado pelo governo Chinês com falta de transparência e desinformação atinge as sociedades ocidentais como um vírus de divisionismo. Vivemos em sociedades divididas, guerreamos entre nós mesmos e cortamos relações num momento de pandemia. Qualquer dos lados que tenha razão, será derrotado. O vírus tem estratégia unificada e não tem preconceito ideológico. Só uma sociedade unida consegue derrotar uma pandemia.

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