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| Foto: Nelson Jr./STF

Vivemos o Dia da Marmota. Em 3 de fevereiro de 2022, os valorosos guerrilheiros do Twitter estão gritando a plenos pulmões que o impeachment de Dilma foi golpe. Lula já chamou Alckmin para vice, o PMDB inteiro foi à festinha dos dois, já mandou emissário fazer as pazes com Temer. Mas sempre há os fanáticos, quase sempre da elite urbana que só se mete em política via redes sociais, que ficaram perdidos em Woodstock e perderam o bonde do golpe.

Confesso que tenho nostalgia quando vejo amigos empolgadíssimos com a história do golpe. Lembram minha bisavó Angélica, janista fanática de usar broche de vassourinha. Viúva aos 31 anos com 3 filhos para cuidar, foi eternamente grata ao jeitinho que Jânio deu para que permanecesse no serviço público até a aposentadoria. Obviamente não deveria ser por isso, morreu jurando que a renúncia de Jânio era golpe de Estado..

"Como foi golpe de Estado se ele renunciou, vó?", a gente perguntava. "Mas ele não renunciou, ele disse depois que renunciou para evitar um mal maior", ela garantia. Minha bisavó Angélica repetia com precisão o diálogo de Jânio com os militares que levou à renúncia. Eles haviam ameaçado tomar tudo à força e, como o povo sofreria demais, Jânio colocou a cabeça a prêmio. Vó Angélica não presenciou a conversa, nunca pisou em Brasília e só viu Jânio pessoalmente uma vez na vida.

O ministro Barroso escreveu um artigo dizendo que o impeachment de Dilma não foi por crime de responsabilidade, mas por falta de apoio político. Quer dizer, a Monica Bergamo disse que ele escreveu isso. O parque de areia antialérgica foi à loucura: era a prova de que precisavam. O artigo mesmo só será publicado dia 10 numa revista cujo editor foi Secretário de Assuntos Estratégicos de Michel Temer. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.

Essa parte do editor da revista ter assumido um alto cargo no governo após o "golpe" não está na coluna da Folha. Deve ser distração, muita coisa para informar. Claro que o fato de o editor ser colunista do jornal não teve nenhuma relação. Aliás, quando era Secretário de Assuntos Estratégicos, a mesma Folha se referia a ele como "ministro de Temer". Inclusive fez um artigo indignado em que teria sido barrado num voo da American Airlines por islamofobia. Mas sigamos com o tema em si.

"A justificativa formal foram as denominadas 'pedaladas fiscais' —violação de normas orçamentárias—, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política", diz Monica Bergamo que teria escrito o ministro Barroso no tal artigo que só sai semana que vem. Concluí que eu devo ser a única palhaça que lê documento nesse país. Nem ministro do STF precisa ler, deve ser por isso que não me nomearam ministra ainda. O relatório final do impeachment de Dilma tirou as pedaladas. A condenação foi por outros crimes de responsabilidade na área financeira.

Para alimentar a militância perdida em Woodstock, a chamada da Folha dá a entender o oposto do que dizem o texto da matéria - fechada só para assinantes - e o próprio ministro Barroso. Os fanáticos entendem que foi golpe e o impeachment foi ilegal. É o oposto. O ministro Barroso diz que juridicamente o impeachment foi correto, mas a motivação dele foi a perda de apoio político. É o que ocorre em TODOS os impeachments, são processos políticos.

Aliás, transcrevo trecho do artigo da Folha que diz exatamente isso: Em outras ocasiões, o ministro afirmou também que "impeachment não é golpe" e que não acha que, "do ponto de vista jurídico, tenha sido um golpe [contra Dilma], porque se cumpriu a Constituição".

Isso está lá na rabeira da matéria da Folha. No início tem uma declaração de Barroso sobre o fato de Michel Temer - novo best friend de Lula - ter cometido diversos crimes de responsabilidade durante o mandato e não ter existido nem processo de impeachment. É verdade e provavelmente isso tenha ocorrido com todos os nossos presidentes.

Arrisco dizer que dá para alegar crime de responsabilidade contra todos os presidentes da República. Esses crimes são descritos na lei 1079 de 1950. Ela é tão ampla e tão subjetiva que dá para impichar qualquer um com base naquilo. E não serve só para presidente da República não, serve para ministros de Estado, ministros do STF e Procurador-Geral da República. Todos infringem essa lei, não tem jeito porque ela é muito subjetiva. Mas só caem os que não têm apoio político, já que o julgamento é no Senado.

Barroso explica exatamente isso, como vem repetindo desde o impeachment. Mas a galera presa em Woodstock entende que ele, depois desse tempo todo, fez um mea culpa e revela que o STF prevaricou porque deveria ter impedido o impeachment golpe. Você não entende como alguém conclui isso? Eu entendo.

Minha bisavó Angélica não podia ver um policial ou qualquer militar ser condenado por qualquer coisa, era prova de que tiraram Jânio em um golpe de Estado. Aparecia na TV um menino que fazia serviço militar e foi preso por espancar a namorada. Ela não perdia a oportunidade: "Lembra do que eu disse? Olha como eles são violentos. Foi por isso que o Jânio fingiu a renúncia, para não deixar ter golpe de Estado".

Há, no entanto, uma diferença entre o parque de areia antialérgico e minha bisavó Angélica. Ela era bem malandra, não tinha nada de besta. Sabia muito bem que tudo isso era o maior papo furado e ela só inventava essas coisas para ser janista mas continuar sendo vista como virtuosa. Então não se metia a besta de dizer isso a qualquer um, dizia só para as pessoas sobre quem tinha autoridade. No caso, a gente, que tinha de respeitar os mais velhos e calar a boca. Não passava vergonha nunca.

Faço agora um pente fino na Lei de Crimes de Responsabilidade. Você vai aprender a impichar até a Madre Teresa de Calcutá. Na realidade, se alguém perde o apoio político, haverá nessa lei um artigo sob medida para justificar tecnicamente o afastamento. É uma regulamentação dos princípios dos crimes de responsabilidade que estão no art. 85 da Constituição Federal.

O artigo 85 da Constituição Federal é exatamente o mesmo texto do artigo 4o da Lei 1079/1950. Ela já estava em vigor na renúncia no golpe de Estado do Jânio.
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Levando ao pé da letra "atentar contra a Constituição Federal", é preciso saber que trata-se de uma gama bem ampla de atentados. Ali há normas desde amamentação dos filhos de detentas até exploração de gás encanado. E o que seria exatamente atentar? Ninguém sabe. Por isso a própria Constituição, neste mesmo artigo 85, diz que os detalhes estão na Lei Complementar.

Agora você já respirou com alívio porque não é essa bagunça também. Só casos realmente graves entram ali, não é qualquer coisa que justifica. Depende. Vou passar para você os pontos da lei que podem condenar qualquer um por qualquer coisa, sempre com justificativa jurídica. Vamos lá:

Art. 7
6 - subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social;

O que seria tentar subverter a ordem social e que meios são violentos? Depende do apoio político.

Art. 8
7 - permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública;

Se qualquer pessoa do governo infringir e o presidente não impedir, seria permitir de forma tácita?

Art. 9
1 - omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo;
3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;

Esse é o meu artigo preferido porque serve para literalmente qualquer situação de perda de apoio político. "Não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados" é uma ideia sensacional para culpabilizar por qualquer coisa, sabendo ou não.

Art. 10
4 - Infringir , patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.

Esse é o da Dilma. E, sim, vai lá olhar que desde Pedro Álvares Cabral todo mundo fez esse. Mas só se abriu impeachment contra quem não tinha sustentação política.

Art. 11
1 - ordenar despesas não autorizadas por lei ou sem observânciadas prescrições legais relativas às mesmas;
5 - negligenciar a arrecadação das rendas impostos e taxas, bem como a conservação do patrimônio nacional.

Esse eu também gosto muito porque só de ter cartão corporativo já dá para rodar. Lembrem que essa confusão toda começou por causa de uma tapioca no cartão corporativo e estamos nisso até hoje.

Art. 12
1 - impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;
4 - Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.

Este também é sensacional porque dá para impichar de presidente a prefeito, todo mundo, numa tacada só. Precatórios não são exatamente isso? Impede o efeito dos atos do Judiciário e frustra o pagamento.

O mais sensacional, no entanto, é esse espírito democrático:
Art. 14. É permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados.
Você quer virar matéria de jornal e Trending Topic do Twitter sem precisar ser preso? Agarre essa oportunidade. Tem um mundo de advogado que vive disso.

Ah, mas e os ministros do STF e o PGR? Esses ficam blindados então? Nada disso, é mais fácil ainda! Você pode apresentar seu próprio pedido de impeachment:
Art. 41. É permitido a todo cidadão denunciar perante o Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República, pêlos crimes de responsabilidade que cometerem.
E veja que justificativa sensacional para os dois casos: "proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decôro de suas funções". Incompatível com o decoro é uma regra sensacional da nossa legislação. O que exatamente é decoro? Quem decide o que é compatível? Ponha a imaginação para funcionar!

Todo cidadão brasileiro pode pedir impeachment para qualquer cargo político, seja federal, estadual ou municipal. Também pode pedir dos ministros do STF e do PGR. Aviso que é igual pia de água benta, aceita tudo quanto é pedido mas atender são outros quinhentos. No entanto, parece mais divertido do que ficar xingando os outros em rede social e ainda pode render uma fama temporária.

A lógica do noticiário cada vez mais é pautada pelo engajamento nas redes. A Folha publicou na íntegra o que disse o ministro Barroso: não foi golpe, mas a justificativa jurídica também existia para outros e não foi usada por motivo de apoio político. No entanto, é uma coisa muito chata, que não agrada militância doente de nenhum lado e não vai engajar. Melhor lançar um título que, nas entrelinhas, dê aquela esperança de que Barroso é a prova do golpe. Teremos orgasmos virtuais por uma semana.

O fato é que todo mundo que perde apoio político vai cair porque a nossa Constituição Federal foi feita de olho no parlamentarismo, não no presidencialismo. A lógica de todo o sistema político é a dissolução do gabinete e escolha de um novo primeiro-ministro diante da perda de apoio político. Mas não há colapso porque o presidente da República continua exercendo funções de Estado. O pessoal só esqueceu de combinar com os russos.

O povo brasileiro é sebastianista, quem um pai da pátria, um resolvedor de todos os problemas. Por isso temos paquitas de político que tratam seus ídolos como santos infalíveis. E muitas se desiludem e passam a ver no mesmo ídolo a marca do inferno. O povo preferiu o presidencialismo e ficamos presos nessa armadilha constitucional. Perda de apoio político significa perda de mandato, só que cai também quem exerce as funções de Estado, não só as de governo. Ficamos com um modelo que só permite jogar fora a água do banho se jogar o bebê junto.

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