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Polêmica do “trabalho infantil” tira encostados do armário à força
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Mais um episódio de "Bolsonaro sendo Bolsonaro" serve para tirar à força do armário o pessoal do parque de areia antialérgico que vive dando opinião na vida de quem carrega o piano. Sou jornalista há 24 anos, conheço bem o meio. Os que dizem que é uma bolha estão certos, inclusive quase todos os que falam isso dia e noite são parte dela. Como diferenciar o joio do trigo? Olhando as biografias, não tem outra forma.

Ninguém tem culpa de nascer pobre ou rico. E todos nós queremos dar a melhor vida possível aos filhos. Vir de uma família rica ou importante não é demérito, muito pelo contrário. O problema do que se chama "bolha" é imaginar que as facilidades que a vida traz pelo relacionamento ou posição da família são conquistas pessoais. Há pessoas com caráter distorcido que pensam isso, há famílias e grupos sociais com moral distorcida que incentivam esse pensamento. E a gafe do presidente sobre trabalho infantil é uma ótima oportunidade de identificar quem é quem.

Essa história de que "pode pedra de crack mas não pode trabalhar" é uma frase de efeito, dessas que o presidente ama produzir desde sempre. Fato é que criança não pode fumar crack e esperamos todos que ele saiba disso. Quanto a trabalhar, cá entre nós, não sei se família de político é o ambiente onde mais se discute ou se tem necessidade de discutir o tema. Natural que ele não tenha a informação correta e nem tanto interesse em buscar.

O surpreendente é o tanto de encostado que saiu do armário após a provocação do presidente. Para mim, são dois os tipos mais interessantes: o que nem sabia que adolescente trabalha legalmente no Brasil e o que romantiza trabalho infantil porque acha mesmo que era trabalho aquela brincadeirinha que fazia na juventude.

Vamos primeiro à turma que nem sabe quando se começa a trabalhar. Tem gente que joga bolinha de gude no carpete até os 30 anos e depois, com paitrocínio, decide dizer a você, que lutou a vida toda, como a vida funciona, quem presta, quem não presta e quais serão as soluções para a humanidade. Na era da apoteose da superficialidade, as pessoas acreditam. Isso não ocorre porque sejam burras ou ingênuas, mas porque elas têm uma vida para viver e boletos para pagar, ao contrário dos elaboradores de regras e soluções de plantão.

No Brasil, se assina carteira para quase todos os trabalhos a partir dos 16 anos e, a partir dos 14 como aprendiz. Atividades como ajudar no comércio da família ou vender bijouteria na escola não são consideradas trabalho fora das redes sociais da bolha. Há dois tipos de trabalhos que antes eram tradicionais de menores de idade e agora são vedados a eles devido aos dados históricos de abusos e problemas de segurança: office-boy e emprego doméstico.

Os outros trabalhos vedados aos menores de 18 anos, os casos clássicos dos que se chama tecnicamente de "trabalho infantil" são:

  • Rural: operação de trator, corte de cana, aplicação de agrotóxicos.
  • Extração: trabalhos em minas, pedreiras, salinas.
  • Indústria: reciclagem, fundição, tecelagem, carvoaria, fogos de artifício, curtumes, matadouros, serralherias, olarias, operação de máquinas.
  • Infra-estrutura: construção civil, geração de energia, estiva, borracharias e lidar com materiais perigosos.
  • Serviços: hospitais, laboratórios, aplicação de vacinas em animais, tinturarias, esgoto, cemitérios, câmaras frigoríficas.
  • Geral: tudo o que ofereça risco como exposição ao sol, em altura maior que 2 metros, mexer com produtos químicos, operar maquinário pesado, em espaços confinados, lidando com bebidas alcoólicas ou exposição a riscos psicológicos e sexuais.

Há um ponto crucial nessa discussão: a razão pela qual o adolescente trabalha. Só romantiza o trabalho precoce quem o fez como diversão ou processo educacional. Precisar honrar compromissos financeiros ainda na adolescência pode até dar orgulho na idade adulta, mas é um fardo que não desejo a mais ninguém.

Por uma série de circunstâncias da vida, eu precisei trabalhar na adolescência para ajudar em casa. Tive o privilégio de poder empregos de que eu gostava, me desafiavam, eram seguros e tinham perspectiva de crescimento profissional. Essa parte foi muito boa, a da convivência e do aprendizado. Mas se você, como eu, tinha a obrigação de contribuir com um tanto de dinheiro em casa ainda muito jovem, sabe o peso psicológico disso na vida de um adolescente.

Ninguém que teve de trabalhar na adolescência deseja que um adolescente viva esse pesadelo. Compreendo bem como pensam vários colegas jornalistas e parlamentares que falaram de suas primeiras experiências prosaicas de trabalho com um romantismo incompreensível para quem trabalhou de verdade. Convivo com eles há 24 anos, tempo suficiente para achar divertidíssimo o que já foi desesperador para uma menina adolescente.

Eu tive o privilégio de conseguir bons primeiros empregos, como professora de inglês e numa rádio. Mas eu era adolescente e trabalhava por necessidade, tinha obrigações financeiras. Na época, vários colegas, filhos de deputados, empresários, professores universitários, procuradores, desembargadores e jornalistas famosos, diziam que eu era sortuda. Eles é que realmente haviam sofrido por ter trabalhado, por exemplo, na videolocadora da prima, na empresa do pai ou vendendo brigadeiro na faculdade. Pensam assim até hoje, confira nas redes sociais.

Esse pensamento não é sobre mim, é sobre você. Se você, como a maioria dos brasileiros, precisou trabalhar, começou no melhor emprego que pôde para ter o maior salário possível. Quem nasceu com a vida ganha mas é encostado acha que tem mais mérito que você. Afinal, você começou de chefe do almoxarifado e ele, duas vezes ao mês, carregava caminhão na empresa do pai. Quem nasceu com a vida ganha e não é encostado agradece a Deus por não ter precisado carregar esse peso de pagar contas tão cedo e tenta aliviar o dos outros.

Só romantiza a necessidade de trabalhar na adolescência quem, além de nunca ter feito isso, não tem empatia nem reconhece o esforço alheio. Quem produz e quer o bem do Brasil entende de gente. Uma infância e uma adolescência saudáveis fazem adultos melhores. É por isso que a maioria do setor produtivo está plenamente adaptada às regras do trabalho na adolescência. Empresas e sociedade civil também têm uma participação importantíssima com projetos para melhorar a qualidade de vida das famílias e evitar que elas precisem dar aos pequenos mais responsabilidades do que eles suportam.

Existe uma discussão técnica sobre a regulamentação do trabalho do adolescente no Brasil, algo ainda no campo das ideias, assemelhado às leis dos norte-americanos e europeus: a possibilidade de trabalho temporário, a partir dos 13 anos, durante as férias, com limites claros, como forma de aprendizado de vida. Sou favorável e creio que a maioria dos cidadãos considera interessante. Mas não é uma discussão que deva ser feita pelo pessoal que começou a trabalhar depois dos 30 anos e acha que levar papel na mesa do pai é trabalho.

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