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Por que “Dois Papas” é obrigatório em ano de guerra
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Ultimamente parece que todo debate foi apropriado pela política. Diria que não exatamente política, mas uma ideia dela que se assemelha à lógica do torcedor de futebol, que ama o time apesar de tudo, briga por ele e sente o coração doer quando algo vai mal. A diferença é que o time de futebol não manda nos nossos destinos, no nosso cotidiano, nas nossas possibilidades de vida. Tratar temas que afetam nossas vidas pela lógica da rivalidade em vez da tradicional lógica da convergência é uma das maiores tragédias que estamos construindo na sociedade.

Dois Papas é um filme fundamental para os que estão sambando na apoteose das certezas e viraram reféns do "nós contra eles". É uma celebração ao diálogo e à quebra de clichês.

Você deve ter ouvido críticas ao filme e eu ouvi também, de pessoas que realmente têm razão no que apontam. Os amigos que conhecem bem a obra de Bento XVI sentem que o gigantismo intelectual dele é subestimado. Já os apaixonados por Francisco I reclamam que sua força inovadora acabou ficando a reboque de uma ideia dos conservadores da Igreja Católica. Há ainda os que duvidem da veracidade dos diálogos. Todos têm razão e o filme continua sendo fundamental em 2020.

Sinceramente, não sei se tem validade como um documentário, mas um ponto retratado, fiel à realidade, é o centro de toda a trama: a amizade bonita e profunda que surgiu entre Bento XVI e Francisco I antes que houvesse a transição do papado. Os dois Papas têm fã-clubes, todos centrados em suas ideias, ações, produção intelectual e história de vida. É um belo chacoalhão que os dois coloquem adiante disso a fé, o amor e a compreensão, o que os une como homens e como cristãos.

Vivemos em um mundo onde se torna cada vez mais fácil disfarçar nossas incertezas e os defeitos da alma humana, temos meio para fingir as convicções e conhecimentos que não possuímos e que, mesmo inexistentes, são reforçados por um grupo que segue no mesmo movimento. A criação da fantasia de poder e orgulho é o remédio para quem não quer ter de lidar com os desafios da condição humana. Ali, naquele grupo, o disfarce passa a ser o todo. Não funciona para os Papas, mas funciona para seus fã-clubes, principalmente os que não têm nenhuma intimidade com a igreja católica.

Há uma impressão, principalmente nos meios não-cristãos, de que a renúncia de Bento XVI e o início do papado de Francisco I foi uma derrota dos conservadores pela ala progressista da Igreja Católica. No filme, não é nada disso. O papa conservador e intelectual é quem tem a ideia dos próximos passos de uma instituição milenar.

Outro mito que cai, além da rixa entre dois amigos, é o da perfeição de um contra os defeitos infinitos do outro. Progressistas não gostam de Bento XVI e conservadores olham torto para Francisco I. No ambiente político há até quem xingue o Papa, mas isso não é posicionamento ideológico, é moral de chiqueiro e falso senso de elitismo. O fato é que o filme mostra momentos de compreensão entre diferentes, essenciais para esse período que vivemos.

Bento XVI, um gigante intelectual, reconhece o poder de outro tipo de liderança, a que lidera pela forma como vive mesmo não tendo todo o requinte e erudição que ele. Francisco I, por outro lado, tem sérios arrependimentos sobre a forma como vive e reconhece o valor da produção intelectual e da análise sofisticada de seu antecessor.

Das cenas emblemáticas que nos fazem pensar, a que mais me marca é aquela em que o personagem Bento XVI, ainda papa, nos jardins do Vaticano, fica irritado com o Cardeal Bergoglio e dispara "eu não concordo com nada do que você diz". Mas os dois não param de conversar e nunca chegarão a concordar naqueles pontos.

O momento de maior quebra de clichês é aquele em que o Cardeal Bergoglio confessa ao Papa Bento XVI o espinho que lhe atormenta a alma: sua conivência com a sanguinária ditadura argentina. Calou diante do assasinato da melhor amiga e da filha adolescente dela, calou também diante da prisão e tortura dos próprios companheiros. Há quem nunca o vá perdoar por isso. Se a informação quebra a imagem idealizada que muita gente tem de Francisco I, a resposta de Bento XVI é um discurso denso, fundado na compaixão e com uma compreensão doce da alma humana e suas circunstâncias. Algo que, convenhamos, também quebra o tabu do alemão intransigente e cruel.

Se parecem, a quem vê de fora, tão diferentes, Bento XVI e Francisco I têm em comum o fato de serem Papas. Evidente que as pessoas capazes de chefiar uma instituição milenar têm mais em comum do que de diferente entre si, o que ambos enxergam, mas parece complicado para quem não tem a mesma vivência e capacidade dos que chegaram a esse ponto da vida.

A união dos dois fez história. A encíclica LUMEN FIDEI é a primeira da história a ser assinada por dois papas. Dizem, nos bastidores do Vaticano, que Francisco I brincava dizendo que só deu um retoque final porque "El Viejo" (apelido que deu ao antecessor) já havia deixado tudo pronto. Sim, o Papa tido como progressista assina e referenda as ideias daquele tido como conservador. Pouco importam essas definições, eles se unem por laços muito mais importantes.

" Acredita-se com o coração » ( Rm 10, 10). Este, na Bíblia, é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos outros, a inteligência, a vontade, a afetividade. O coração pode manter unidas estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à verdade e ao amor, deixando que nos toquem e transformem profundamente", dizem os dois Papas na Lumen Fidei.

Ninguém chega a Papa sendo bonzinho, a política interna da Igreja Católica é cruel. Bento XVI e Francisco I, cada um à sua moda, conseguiram chegar ao topo. Gostamos demais de nos sentir importantes dizendo que tomamos decisões de forma racional, mas esses homens sabem que isso é só conversa. Decidimos com o coração, somos coração, nos movemos por aquilo que toca os nossos sentimentos e depois justificamos de uma maneira que pareça importante.

Eu vi "Dois Papas" como filme mesmo. Para quem tem, como eu, paixão pela linguagem e pelas palavras, significa aproveitar cada diálogo. Não sei se aqueles diálogos são reais e provavelmente não são. Também entendo que os Papas não tenham sido retratados da maneira mais fiel possível. Mas a palavra é poderosa: ali, no diálogo de dois dos homens mais poderosos do mundo e diferentes entre si está uma compreensão que nos tem falta até entre aqueles com quem temos intimidade.

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