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Precisamos de uma nova Constituição ou dá para remendar essa?
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O Brasil é um país que troca de Constituição Federal igual troca de roupa. E isso tem uma consequência que toda fashionista sabe bem. Quem investe em modinha acaba com peças de pior qualidade. Peças de melhor qualidade são para sempre. Não temos cartas de princípios e direitos, temos revanches no calor do momento.

Eu sou da época em que "a redentora", conduzida por Ulysses Guimarães, era celebrada por todo o Brasil. Ele próprio já alertava que determinados trechos seriam de difícil execução. Com 32 anos de distância desse momento catártico, já sabemos que muita coisa vai existir mesmo só no papel.

Percebemos ainda um problema enorme no sistema de freios e contrapesos entre os Três Poderes, com um avançando sobre o outro e conflitos. O Judiciário tem feito as vezes de Legislativo e o próprio Legislativo já entendeu que não resolve as próprias questões e vive tentando tapetão no Judiciário. Tendemos a dar mais atenção ao Executivo, que tem seus problemas, mas perdemos o fio da meada do todo.

As discussões sobre a Constituição há muito tempo extrapolaram o mundo político. Está na boca do cidadão comum, mesmo aquele que jamais leu a Carta Magna, um rol de reclamações como excesso de direitos, falta de deveres e descompasso entre garantias legais e mundo real. Como consertar?

Não falta oportunista que se aproveita dos defeitos da Constituição Federal para autopromoção. Toda hora uma ideia brilhante aqui, um rompante de amadorismo heroico acolá. Sempre campanhas monumentais para corrigir detalhes, mas sem corrigir o todo. Afinal, acabar com os problemas também é acabar com o mercado das soluções fáceis e moralistas.

Na última sexta-feira, tive o privilégio de mediar o debate sobre a necessidade de uma nova Constituição envolvendo um time de estrelas. O evento foi promovido pela Gazeta do Povo e por professores da Universidade de Salamanca, Universidade de Iowa e CEU Law School como homenagem ao aniversário de 90 anos do jurista brasileiro Modesto Carvalhosa. Em 2018, ele escreveu o livro "Uma nova constituição para o Brasil - de um país de privilégios para uma nação de oportunidades".

Participaram do debate o ministro aposentado do STF Francisco Rezek, o professor emérito da Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins, o diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca Ignacio Berdugo, o professor de economia da Universidade de Iowa Luciano Castro e a professora do CEU Law School Beyla Fellous.

O encontro foi o ponto de partida para que se inicie um debate acadêmico sobre o tema. Você pode conferir no vídeo a íntegra do debate. Neste artigo, trago para vocês um pouco dos bastidores e das novas discussões propostas por estrelas do direito:

A necessidade de uma nova Constituição Federal é unanimidade entre os juristas. As principais dúvidas estão em como esse processo poderia ser feito para garantir que não acabássemos com algo ainda pior. O modelo de Constituição feita pelos próprios parlamentares, ainda que eleitos só para esta finalidade, é problemático. Ao final, ele representa o que pensam os poderosos, não o povo nem especialistas em aplicação da lei.

A solução para mudanças mais imediatas, segundo o professor Ives Gandra Martins, seria fazer reformas constitucionais, principalmente a administrativa. Chamar uma Assembleia Nacional Constituinte seria uma temeridade, dada a qualidade de políticos a quem damos poder hoje em dia. Esse é o temor de muitos, inclusive o meu.

Então descobri que essa não é a única forma de fazer uma Constituição. O professor Modesto Carvalhosa contou que há vários outros modelos. Ficamos presos à teoria de que, uma vez eleitos, os parlamentares constituintes representam as demandas de seus eleitores. Representaram efetivamente? Não. É por isso que outros modelos são frequentes.

Para funcionar, uma Constituição precisa necessariamente refletir os valores do povo. E a estrutura técnica tem de ser pensada para fazer com que esses princípios sejam realmente colocados em prática, não fiquem apenas no papel. Há países que elegem comissões de notáveis para elaborar regras. Outros simplesmente escolhem especialistas. Todos fazem consultas populares.

A Assembleia Nacional Constituinte do Brasil teve 559 parlamentares. É um modelo semelhante ao do Benin, pátria originária do acarajé. Já o Quênia escolheu um comitê de 9 especialistas. Na Espanha, um comitê parlamentar de 7 pessoas escreveu a Constituição. A Tunísia elegeu mais de 200 pessoas para fazer uma Constituição. A grande questão é como unir a sociedade em torno do projeto.

O International Idea, organização internacional, fez este vídeo mostrando as diversas formas de participação popular no processo constitucional no mundo todo. Nada disso nós vimos por aqui. O máximo que teve foi o plebiscito de armas e também para escolher entre monarquia, presidencialismo e parlamentarismo. Na África do Sul, por exemplo, foram feitas mais de 1000 consultas públicas.

A tecnologia ajudou muitos países a coletar, documentar e conseguir colocar em uma Constituição os valores e anseios de todo tipo de pessoa. Também é importante ter em mente que todos precisam estar representados. Uma constituição moralista ou com viés ideológico funciona bem em regimes autoritários, mas tende a esfacelar a democracia.

Nós tivemos uma empolgação da mídia, de intelectuais e dos próprios políticos com a Constituição de 1988, mas não tivemos a adesão popular ao projeto em si. O brasileiro é desconfiado da classe política. O melhor retrato de como a população abraçou o processo é a música dos Paralamas do Sucesso. Foi feita em torno de uma declaração de Lula sobre o parlamento: 300 picaretas com anel de doutor.

Qual seria o formato ideal para elaborar uma nova Constituição e como viabilizar legalmente que ele exista? É uma discussão complexa que precisa ser iniciada pelo menos entre os especialistas no tema. A outra questão é como engajar as pessoas no projeto. Aqui nem falo de concordar ou não com um ponto ou outro, mas confiar no processo de elaboração. Sem confiança não há como ter sucesso.

As propostas concretas

Uma proposta, que foi bem observada pelo ministro Francisco Rezek, é a estrutural. As pessoas reclamam muito de impunidade, infinitos recursos penais, controle do sistema político por caciques de partido e assuntos assemelhados. Vira e mexe aparece um abençoado com uma ideia de lei nova ou julgamento do STF para resolver o problema. Daí a gente embarca porque enquanto houver otário malandro não morre de fome.

Um dos principais problemas que nós temos está no artigo mais conhecido da Constituição, o 5o, que estabelece um longuíssimo rol de direitos fundamentais do cidadão. A crítica que a gente sempre ouve é a de ser muito direito e pouco dever. E nisso há razão, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem deveres.

Mas o problema está num ponto que o ministro Francisco Rezek aponta: a criação de um rol de direitos que colide com os tratados internacionais assinados pelo Brasil. Direitos que seriam garantidos, como candidaturas políticas independentes, ficam sujeitos a uma nova validação do Congresso ou a julgamento do STF. Há inúmeros outros exemplos.

Sabe a história da condenação em segunda instância. Então, os tratados internacionais do qual o Brasil é signatário estabelecem a persecução penal como um dever do Estado, que deve respeitar a ampla defesa de um lado e do outro dar um desfecho digno à vítima do crime. A prisão, segundo esses tratados, se dá a partir da condenação por órgão colegiado em segunda instância.

E por que essas regras não são aplicadas de forma automática aqui no Brasil se o próprio Congresso Nacional ratifica os tratados? Porque a Constituição cria direitos que colidem com os direitos dos tratados internacionais, então é preciso ou o Congresso mudar a lei ou o STF decidir a disputa.

Vejam a salada que fica o caso das candidaturas políticas independentes, que alterariam completamente o cenário político nacional. A Declaração Interamericana de Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 23, que você não pode colocar obstáculo a candidatura política. Exigir filiação partidária já é um obstáculo. Fazer isso no regime louco de partidos que nós inventamos fica pior ainda.

Nós não temos partidos locais, estaduais ou municipais, como já tiveram e existe no mundo todo. Aliás, é uma das propostas de Modesto Carvalhosa. As pessoas são obrigadas a se filiar em partidos nacionais controlados por caciques. Esses caciques é que garantem o poder de quem está no Congresso, já que fazem a intermediação do local com o nacional.

Por um lado, decidem quem vai receber a legenda e o apoio real dos diretórios municipais e estaduais. Por outro, conseguem as emendas parlamentares para determinadas prefeituras e governos, o que dá poder político para eleger o parlamentar. Suponha que isso não seja mais um pedágio obrigatório para participar da política. Até político profissional é capaz de começar a sair independente.

A questão é que o Congresso Nacional aceitar candidatura independente significa desmantelar o castelo de cartas que coloca aqueles grupos específicos no parlamento. Sobra para o STF resolver algo que nem da alçada dele deveria ser. Se resolve de um jeito, tira direito da população. Se resolve de outro, abre guerra com o Legislativo e o Executivo, que se monta no presidencialismo de coalizão para governar.

Nós tendemos enxergar todas essas questões como separadas, lutas diferentes, problemas com soluções diferentes. O ministro Francisco Rezek mostra a raiz. Se nós assumíssemos como direito líquido e certo o que está nos tratados internacionais, como propõe Modesto Carvalhosa, esses impasses não existiriam. E eles custam sofrimento e dinheiro dos brasileiros.

Essa mudança, sozinha, já resolve inúmeras questões que revoltam as pessoas, mas há diversas outras propostas que atacam privilégios. O professor de Economia da Universidade de Iowa, Luciano Castro, alerta para a importância do recall de políticos. A proposta é que o eleitor tenha como avaliar o político e decidir se ele permanece ou não no cargo.

É algo que vem na esteira de uma série de outras propostas para ampliar o ambiente democrático. Somos, a rigor, uma democracia eleitoral, não uma democracia plena. A ideia é que um número maior de projetos e ideias possa ser submetida à população antes da tomada de decisão. Toda reforma constitucional, por exemplo, teria de ser submetida à população.

Todas as mudanças propostas por Modesto Carvalhosa e o anteprojeto em si estão à disposição neste site. As reformas são divididas em 5 diferentes eixos: Plano Institucional, Plano Político, Orçamento, Poder Judiciário, Ordem Econômica e Social. Para a professora Beyla Fellous, do CEU Law School, uma mudança estrutural importantíssima é colocar a livre iniciativa e a liberdade econômica de forma central no conceito de democracia e desenvolvimennto.

PRINCIPAIS MUDANÇAS NO PLANO INSTITUCIONAL

  • Fim do foro privilegiado
  • Fim da tese de direito adquirido na área pública, valeria apenas para contratos privados
  • Nulidade de leis aprovadas em causa própria, para benefício de políticos e servidores

PRINCIPAIS MUDANÇAS NO PLANO POLÍTICO

  • Fim da reeleição
  • Eleitos para mandatos legislativos não poderão mais se afastar para exercer cargo no Poder Executivo
  • Voto distrital puro
  • Fim da obrigatoriedade do voto
  • Candidaturas independentes
  • Partidos nacionais, estaduais e municipais

PRINCIPAIS MUDANÇAS NA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL

  • Estado não pode exercer funções empresariais
  • Pessoa jurídica também responderá por atos ilícitos
  • Manifestações artísticas serão apoiadas pela sociedade civil
  • O Estado tem o dever de preservação do meio ambiente e do patrimônio antropológico

PRINCIPAIS MUDANÇAS NO ORÇAMENTO

  • Fim das emendas parlamentares
  • Fim das despesas obrigatórias
  • Pagamento de servidores no máximo 25% do orçamento

PRINCIPAIS MUDANÇAS NO JUDICIÁRIO

  • Qualquer cidadão poderia entrar em juízo
  • Carreira de juiz é o centro do Poder Judiciário
  • Todos os tribunais seriam formados por magistrados de carreira, promovidos a desembargadores nos tribunais de segunda instância.
  • Esses desembargadores, por antiguidade, formariam o STJ.
  • Os mais antigos do STJ formariam o STF, que seria transformado em Corte Constitucional.
  • Os mandatos da Corte Constitucional e dos Tribunais Superiores seriam de, no máximo, 8 anos.
  • Prisão de réu condenado já em primeira instância.
  • Trânsito em julgado após segunda instância.
  • Tribunais superiores podem fazer revisões sobre decisões, não podem suspender nem aceitar recursos

Para o diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, Ignacio Berdugo, a mudança mais interessante seria a adoção do modelo europeu de Corte Constitucional para a Suprema Corte. Aqui é muito comum a gente ouvir que o STF é a Corte Constitucional, mas funciona diferente.

Se julga a constitucionalidade de casos específicos, julgados por outros tribunais. Na prática, se procurar bem, você acha questão constitucional até em furto de bicicleta. Não é um exagero anedótico, teve até isso no STF de verdade. As cortes constitucionais não julgam casos dos demais tribunais, julgam constitucionalidade de novas leis criadas pelo Legislativo e o conflito entre legislações de Estados e da União.

Talvez você concorde com a proposta completa. Talvez discorde de tudo. Talvez concorde com algumas coisas e discorde de outras. É o natural do processo democrático. A questão principal é uma só: você acredita que é possível construir um país melhor do que temos até agora dentro do conjunto de regras da atual Constituição? Quase unanimidade que não.

É um documento cheio de boas intenções e já sabemos onde é que está lotado disso. As iniciativas são interessantes mas a terminativa não. A forma como as questões foram colocadas é de sinalização de virtude e considerações moralistas, não de eficácia sobre aquilo que pretendia o constituinte.

Não tenho a menor ideia de como seria uma Constituição feita num parlamento chefiado por estadistas do porte de Bibo Nunes, Jean Wyllys, Sargento Fahur ou Guilherme Boulos. Só sei que o pessoal da Rede já ia armar até barraca na porta do STF para entrar com ação contra tudo o que fosse feito. É exatamente por isso que precisamos que a discussão seja iniciada. Mais que isso, precisamos finalmente aprender a dar voz a quem tem experiência e sabe o que dizer.

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