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FOTO- EDUARDO BENINI – divulgação
FOTO- EDUARDO BENINI – divulgação| Foto:

Sucesso incomoda. Mais precisamente, como disse Rubem Fonseca, "o sucesso sempre incomoda os medíocres ambiciosos, os sonhadores incapazes, os fracassados em geral". A reação à entrevista de Luciana Salton à Veja mistura essa característica ancestral da natureza humana com a falta de superego, algo grandemente potencializado pelas redes sociais.

A Revista Veja fez um novo formato de publicação de perfis, uma espécie de entrevista-relato, em que a assinatura do artigo é do entrevistado mas, na verdade, trata-se de um depoimento dado a um jornalista da casa. No caso, a jornalista colheu de forma objetiva um relato sobre a herdeira da quarta geração de uma empresa familiar, algo raro no Brasil. Geralmente, para que se chegue à terceira sem implodir ou vender a empresa, a família é afastada dos negócios e substituída por executivos profissionais. Segundo pesquisa global da PwC sobre empresas familiares, apenas 12% das brasileiras conseguem chegar à terceira geração e 3% à quarta.

Não se questiona em nenhum momento da entrevista que o triunvirato de cargos de mando da vinícola Salton fique fora da família. Mas imagine quantos são os primos na disputa na quarta geração. Luciana Salton conseguiu o topo e é a primeira mulher da família a fazê-lo. Ao dizer que não cabe a primaiada toda na empresa, cunhou a frase que ativou todo o recalque feminista da internet: "sobrenome não garante emprego". Em segundos, toda a vida da executiva foi reduzida a uma frase e ela, claro, pintada como burra.

É óbvio que a imprensa também tem abusado dos chamados "click baits", o que fomenta discussões completamente esquizofrênicas nas redes sociais. "Click baits" são manchetes chamativas e distorcidas que, no entanto, não são uma mentira completa. "Sobrenome não garante emprego" é uma frase que, no contexto genérico, carimba arrogância e imbecilidade em seu autor. No contexto de várias pessoas com o mesmo sobrenome disputando poucas vagas, mostra apenas uma forma de administrar empresas familiares sem quebrar: não tem como pendurar todas as gerações na folha de pagamento.

Amamos odiar. As pessoas clicam na matéria, por isso o nome "click bait", uma espécie de "pegadinha do Mallandro" para você clicar numa matéria, imaginando que vão ler uma bizarrice. Encontram ali um depoimento normal, falando da administração de uma empresa familiar que quer membros da família no controle. Pouco importa a decepção, a intenção era só o click. Funciona. Mas este processo é apenas para pessoas que usam o superego.

Há uma multidão de perfis nas redes sociais nos quais nitidamente não há interferência de superego e a relação deles com "click baits" é diferente: nem clicam. Não clicam, não lêem, saem soltando os cachorros e afetando virtude própria com palavras de ordem, cancelam, dizem aos outros o que fazer, exigem ser obedecidos. E pouco importa que a jihad seja armada sobre a própria imaginação, não são fatos que farão os lacradores reconhecerem que precisam tratar como seres humanos quem discorda deles.

Analisar a preparação e escolha de mulheres na sucessão de empresas familiares, inclusive sob a óptica acadêmica, sempre foi uma pauta "feminista" - coloco a palavra entre aspas porque, como sou antiga, a uso aqui como aquele movimento que buscava direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres. Atualmente, segundo a PwC, 54% das empresas familiares do Brasil não têm um plano de sucessão. A ideia de preparar mulheres para a sucessão familiar é muito nova, começa a virar realidade apenas neste século e se trata de algo importante para a igualdade.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro fez há alguns anos um artigo bem interessante sobre mulheres em empresas familiares. Segundo as três professoras da Faculdade de Administração que assinam o artigo: "percebeu-se, tendo por base este estudo, que não há um planejamento formal de sucessão das herdeiras com antecedência suficiente que lhes garanta uma clareza em relação às suas responsabilidades, aos caminhos que precisam percorrer até a sucessão ou à sua identidade profissional na firma familiar. Mesmo nos casos em que a herdeira é âncora - ou seja, pertence a famílias com apenas descendentes mulheres ou com poucos homens e sobre quem a responsabilidade de liderar a empresa esteve presente desde a infância -, a entrada não foi discutida com antecedência". Dar direitos iguais às mulheres no papel é muito mais simples que mudar a cultura ou as tradições familiares.

Segundo o criador da disciplina de Estudos sobre Empresas Familiares na Universidade de Harvard, John Davis, é nesse tipo de negócio que as mulheres têm conseguido avançar mais, mas a mudança é lenta em muitas culturas, incluindo aí a brasileira. " “Vemos diferenças significativas nas oportunidades, nas posições e nas responsabilidades que as famílias e as empresas familiares lhes dão”, disse o professor sobre o cenário brasileiro em evento de debate com líder de family business da PwC Brasil no ano de 2014.

Nas empresas familiares, mulheres têm mais chance de avançar porque são parte integrante da família e existem laços de amor e afeto que favorecem a percepção do preparo e capacidade. Por outro lado, diferentemente de contratações externas, o cargo de mando também mudará a dinâmica familiar e frequentemente traz problemas com os mais velhos. Trata-se de uma decisão que irá ter impacto na cultura da empresa e também na tradição da família.

A pergunta mais comum às mulheres em cargos de destaque é: como você faz para equilibrar família e trabalho? Ainda estamos buscando um modelo de igualdade que não signifique transformar mulheres do século XXI em homens da década de 1950 para que possam progredir profissionalmente. Uma empresa familiar que põe uma mulher no comando sinaliza que tem uma proposta não só profissional, mas de convívio familiar, o que pode ser benéfico para muitas outras mulheres que não nasceram com sobrenome famoso.

No caso específico de Luciana Salton, ela foi preparada pelo pai desde a infância para trabalhar na empresa. Contou à revista que também já trabalhou em outras empresas e tem dois filhos. Exatamente por estar em uma posição muito privilegiada, ela tem a oportunidade de conseguir para si avanços que não seriam possíveis à grande maioria de mulheres que luta pelo pão de cada dia. E esse avanço não é "conseguir emprego", é fazer gente poderosa entender que a mulher não precisa abrir mão da família e da feminilidade para estar no comando. Quanto mais mulheres que nasceram com a vida ganha fizerem a opção de mostrar isso na prática, melhor para que a próxima geração tenha oportunidades que a maioria de nós não teve.

É óbvio que isso despertou a ira dos esquerdomachos tuiteiros. Todos desandaram a debochar de Luciana Salton, sempre com a mesma piada de tiozão do churrasco, porque essa é a oportunidade que têm de ser machistas impunemente. Um homem ridicularizar uma herdeira e inferir que ela é burra não qualifica como machismo na internet lacradora, já que ele é "progressista" e ela é rica.

Minimizar as conquistas de uma mulher e distorcer o que ela diz para poder debochar antes chamava "machismo". E, lembro bem, no século passado explicávamos aos moços profissionais no esculachamento de mulher que, gostem ou não, mulheres precisam ser respeitadas como seres humanos. Pensei que as "feministas" de teclado fossem colocar os esquerdomachos de internet no lugar. Pasmem: elas defenderam homem que ataca mulher. É ou não o novo machismo?

Há diversas "celebridades" de twitter da lacração que embarcaram nessa linha. Escolhi não expor nenhuma delas, espero que mudem e passem a usar sua visibilidade para defender e apoiar mulheres. Mas há um caso específico de pessoa pública que é emblemático: a candidata do PSOL à prefeitura de Porto Alegre. Se o PSOL é o partido que abraçou com mais força a pauta identitária, o que justifica que a candidata distorça a fala de uma mulher e ainda permita que seus seguidores a esculachem? A patrulha "feminista" é o machismo do século XXI.

Não se engane pensando que estamos diante da força da ideologia socialista ou algo do gênero, é puro autoritarismo. Quem lacra tudo pode, quem não lacra nem gente é. Um exemplo definitivo? Petra Costa, a herdeira de um império bilionário que foi regiamente bancada pela família para fazer um filme em que conta uma história fantasiosa de luta e militância dela própria e da mãe. A esquerda identitária celebrou ou ridicularizou a diretora?

Qual a diferença entre o privilégio de Luciana Salton e o privilégio de Petra Costa? Por que a primeira é cobrada, inclusive por feministas, para falar publicamente que suas conquistas profissionais são fruto de privilégio enquanto a segunda é celebrada? A diretora de cinema usou o dinheiro da família para contar uma narrativa de que o público identitário gosta e funciona na sintonia da lacração e do cancelamento nas redes. É o suficiente para ser aceita por lacradores, que imaginam deter o monopólio da virtude e separar os puros dos impuros.

Levanto em conta os fatos, os estudos acadêmicos sobre administração e avanços dos direitos das mulheres, a ocupação feminina de cargos de mando em empresas familiares tem um grande peso na mudança cultural da empresa, tem impacto em outras famílias e é positiva para a sociedade. Para quem deseja avanços reais para mulheres da vida real, não importa de onde eles venham, importa que continuem acontecendo.

Quanto mais mulheres em posições privilegiadas usarem seu poder para ser um símbolo de mudanças possíveis, melhor para nós todas e para as próximas gerações. Todo avanço é bem vindo, seja aquele fruto dos esforços de milhões de mulheres lutadoras ou o que vem da atitude de alguém que nasceu em berço de ouro. Não espanta que o "feminismo" de teclado, além de não ter conseguido uma única conquista real para as mulheres, ainda gere reações contrárias. Lutar por igualdade das mulheres implica respeitar a dignidade das mulheres e respeito é palavra proibida no idioma da lacração.

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