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estrogonofe de mignon
Sirva com arroz e batata palha| Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo

O campeonato de protestos mais imbecis do mundo está chegando ao Brasil. Semana passada, vi que uma universidade da europa proibiu a leitura de Dostoiévski como protesto contra a invasão russa da Ucrânia. Como a guerra não parou, o pessoal precisou jogar mais pesado com os boicotes.

Há uma semana, fiz um chamado no twitter direcionado aos bravos guerreiros dos parques de areia antialérgica das regiões de Santa Cecília e Vila Madalena. Não podíamos mais nos calar. Todo mundo já está usando bandeirinha da Ucrânia no perfil, isso nem é visto mais como superioridade moral. Era preciso ir além, fazer realmente um esforço concreto.

Fiquei chocada com a falta de solidariedade dos donos de restaurantes por quilo. Muitas vezes tive a impressão de que o bife de hoje é o churrasco de ontem e o estrogonofe de amanhã. Fora que pesa bastante, né? Infelizmente, não estiveram dispostos a mexer um milímetro em seus lucros para ajudar quem sofre na Ucrânia.

Felizmente ainda existe amor em São Paulo. Um restaurante frequentado pela boemia progressista da cidade, que cobra módicos R$ 76 por um PF de estrogonofe no almoço de quarta-feira, resolveu sinalizar virtude. Claro que deu destaque na imprensa local. Não é todo mundo que se dispõe a fazer sacrifícios pelos refugiados da Ucrânia.

Você pode estar se perguntando como um restaurante de elite latinoamericana cancelar um prato vai ajudar na guerra. Dessa vez, até a lacração perdeu a paciência. A ideia é um "boicote conceitual", que seria uma forma de reflexão à qual o setor gastronômico tem direito. Eu não compreendi qual a reflexão. Maldosos diriam que é sobre sinalizar virtude e posar de moralmente superior.

O "boicote conceitual" seria, primeiramente, para se posicionar sobre um regime autoritário. E qual o critério para decidir sobre qual regime autoritário? Tem um óbvio, estar em guerra e atacar civis. Mas daí vai ter de boicotar coisa de muito canto. No mapa abaixo, sobre o qual fiz um artigo esses dias, você vê em roxo as democracias. Só são plenas as mais escuras. De rosa até vermelho, é tudo ditadura.

Boa parte dos países em vermelho estão em guerras locais e civis. Se o critério for esse, vai precisar boicotar tudo o que vier da África. Só não dá porque seria racismo. Da Ásia também, super racista boicotar. E do Oriente Médio? Islamofobia. Já boicotar tudo o que lembrar a Rússia não é xenofobia, já que todo mundo é branco de olho azul.

Vamos relevar. Quem tem formação na área gastronômica não é obrigado a conhecer geopolítica. E daí eu pergunto: mas e a vodka? Vários restaurantes dos EUA cancelaram a vodka. A desculpa para não boicotar é não impactar a vida de pessoas que dependem da atividade. Nessas horas eu penso no tanto de dinheiro que se joga fora com escola particular no Brasil.

Nem 1% da vodca consumida no Brasil é russa. Aliás, é algo que vale para o mundo todo. A Rússia está entre os maiores importadores, não exportadores de vodka. Isso eu imaginei que o pessoal da gastronomia soubesse.

Trago para vocês o último levantamento do Comex Stat sobre importação e exportação das principais bebidas consumidas no mundo todo. Quem são os países que mais exportam vodka? Pela ordem: Paraguai, Bolívia, Uruguai, Panamá, Haiti, Cuba, Colômbia, Argentina, Cabo Verde, Hong Kong, Libéria, China e Estados Unidos. A elite paulistana mira na Rússia e acerta no Paraguai.

Uma das 16 características de grupos radicais criados na internet é a crença de purificação pela privação voluntária. (Ainda escreverei mais profundamente sobre essas características). É algo muito semelhante a conceitos religiosos, mas o ego substitui o sagrado. A pessoa acredita que se privar do estrogonofe de R$ 76 a torna moralmente superior às demais.

O protesto não atingiu sua finalidade, que nada tem com a guerra. A estrelada chef não foi reconhecida pelos Justiceiros Sociais de Teclado como virtuosa e moralmente superior pelo ato. Não tem problema, já descancelou o estrogonofe. Sempre lembrando, claro, que faz muitas boas ações.

A chef foi ridicularizada pela própria lacração pela história do estrogonofe. E, cá entre nós, nem creio que é pela ação em si. Ocorre que a lacração petista de Santa Cecília está do lado do Putin nessa. A farra do boicote dá aos Che Guevara de apartamento a sensação de ter entrado numa revolução porque, por exemplo, mudou uma marca de tênis. É como um artigo de luxo, vale mais que outras qualidades.

A chef em questão é excelente. O restaurante tem uma comida impecável e criativa, com atendimento de primeira. Além disso, é realmente uma pessoa preocupada com projetos sociais e que ajuda no desenvolvimento profissional de muitas outras pessoas. Ser não basta na economia da atenção. A pessoa só vale o que ela sinaliza para o grupo.

Nessa dinâmica, os grupos precisam imolar uma pessoa por dia para demonstrar sua superioridade moral. Não é raro que sejam membros do próprio grupo, não tão perfeitos quando os demais afirmam ser. Foi o que os grupos radicais do identitarismo e do progressismo fizeram com a chef. Esculhambaram apontando como superficial, quer aparecer, não tem noção do ridículo. O curioso é que o grupo faz protestos iguaizinhos todos os dias.

Verdade seja dita, sacrifícios reais não dão tanto resultado quanto essas platitudes. Jejum, por exemplo, é um sacrifício espiritual ou um processo de purificação existente nas mais diversas culturas e religiões há séculos. Ele é feito com o propósito de conexão com o sagrado e aprofundamento espiritual. Não tem, no entanto, como medir o que esse processo te entrega. Pior, não tem como sinalizar para o grupo que você está se sacrificando.

Há muitos anos uma prima arrumou uma fórmula que, se tivesse patenteado, daria a ela uma fortuna. Todos esses grupos virtuosos da internet usam. Ela inventou uma espécie de barganha com santos, em que deixa de comer algo durante um tempo para atingir um objetivo de vida específico. Mais importante: ela fala para todo mundo. "Nem me chama porque eu não posso comer chocolate, fiz uma promessa para Nossa Senhora das Graças naquele pedido do meu carro novo". Fórmula certa para ser elogiada pela religiosidade, persistência e foco.

Sempre tive muita inveja disso. Da parte dos elogios, digo. Só que ela gosta mesmo de chocolate e fica penando por não comer mesmo podendo comprar e sem ter restrição de saúde. E isso eu não faço de jeito nenhum. Como embarcar na onda?

Tudo tem jeito. Vira e mexe, quando tem oportunidade, digo que fiz uma promessa também, um sacrifício alimentar. Há mais de 30 anos faço a privação alimentar voluntária para que Nossa Senhora Aparecida cuide dos órfãos. Vejam que alma boa eu sou. Persistência é comigo. E não estou mentindo, não é uma invenção para ganhar aplausos. Desde 1990 não ponho na boca nem uma gota de Fanta Uva Diet.

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