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Quem checa os checadores? Agência espalha desinformação sobre expressões racistas
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Até ontem, eu achava que o miojo-medusa do demônio era a invenção histórica mais delirante que eu veria na vida. Confesso que nunca soube se era verdadeiro ou trote e nem importa, é sensacional dos dois jeitos. Um grupo de combate ao ateísmo alertava que consumir miojo infestaria o corpo com demônios porque o macarrão foi inspirado no cabelo da medusa. Não imaginei que, anos depois, este tipo de conteúdo seria divulgado por agências de checagem de fatos.

Sábado foi dia da Consciência Negra. Uma listagem mentirosa de palavras que teriam origens racistas foi compartilhada por várias instituições, muitas delas financiadas por redes sociais e dedicadas a combater discurso de ódio e fake news. Inventar origens e intenções maléficas é algo bem útil comercialmente nas redes sociais (explico neste artigo e no vídeo abaixo). Eu só não esperava ver agência de checagem fazer isso. E aconteceu: a Agência Lupa postou e manteve apesar das reações.

A maioria das pessoas que vi replicando as postagens mentirosas sobre origens racistas de palavras tem boa intenção. Muitos relatam que já ouviram até na escola a tal da origem mentirosa da palavra como se fosse certa. Tente pesquisar no Google algo como "expressões racistas que deveríamos banir do nosso vocabulário". Você vai encontrar lendas urbanas que colocam o miojo-medusa no chinelo.

É uma ferramenta autoritária batizada de Etimologia Freestyle pelo Raphael Tsavkko Garcia, doutor em Direitos Humanos e homem de esquerda. Ué, mas a esquerda não é a tal da dona das listas? Isso não é política, é uma mistura de autoritarismo com psiquiatria. Inventa-se uma origem racista para uma palavra com a intenção de legitimar perseguições e cancelamentos de desafetos que usem a tal palavra. É para isso que servem as listas, não para política nem para combater racismo.

Checando os checadores

No falecido programa "A Protagonista", lancei meus próprios métodos de fact-checking. Havia a pre-checagem e o fast-checking. São métodos muito sofisticados que apenas eu, como sócia-fundadora da primeira agência de pre-checagem e fast-checking do mundo, consigo realizar. Mas creio que fui copiada pela Agência Lupa. Resumindo bem, meu método era: "chegou no zap, é verídico". Desconfio que cobrarei royalties nessa.

Gente, já tinha farialimer no Brasil Colônia? Estamos falando aqui de bater meta em mina de ouro? Como vai bater meta em mineração feita daquela forma? E como vai definir a meta? Tenho vários ex-companheiros que poderiam ter sido consultados para inventar mentiras muito mais verossímeis. Não vou nem entrar no assalto à dignidade dos negros que lutaram primeiro pela própria liberdade e depois pela do Brasil. No século XVIII, 30% dos donos de minas de ouro em Minas Gerais eram negros e boa parte mulheres negras.

Voltemos à meia-tigela em si. De onde vem? Da corte portuguesa. Quem trabalhava no palácio real mas não morava lá era alimentado pela cozinha, que seguia as prescrições de porções do "Livro da Cozinha del Rei". A comida variava de acordo com a importância dos serviços prestados. Existia funcionário real de tigela inteira e gente de meia tigela, é daí que vem a expressão.

Este é ainda mais sensacional porque é um sarapatel de coruja tão grande que a gente deixa escapar a melhor parte. Mulata em espanhol não significa burro, como diz a agência de checagem. O filhote MACHO do cruzamento de cavalo/jumenta ou jumento/égua chama-se BURRO também em espanhol. O filhote FÊMEA chama-se MULA. A origem não é espanhola, é do latim, mulus. Não há, no entanto, consenso até hoje sobre a origem dos termos mulata e mulato.

É factível que tenha sido do latim mulus, para referir-se aos mestiços fazendo essa analogia de quinta categoria. Filhos de casais mestiços brancos e negros seriam mulatos e mulatas. Ocorre que há também uma outra hipótese, a origem árabe. Mulato seria derivado de muwallad, que é o mestiço de árabe com não-árabe. Ah, mas do árabe? Sabe de onde vem mameluco? Mamluk, árabe, filho de indígena com não indígena. O fato é que não há consenso e provavelmente seja uma das duas alternativas.

Pelo menos nessa versão não cortaram a língua de ninguém para ficar mudo. Espero não ter dado uma ideia para as próximas edições. O nome dumbwaiter (criado-mudo) foi registrado para um móvel pela primeira vez na Inglaterra em 1749, mas era algo já utilizado desde a era romana, um elevador de comida, como vemos em restaurantes. Em casas muito grandes, a equipe da cozinha preparava os pratos e os mandava pelo elevador. Na prática, a pessoa era servida por um criado, só que silencioso. Até hoje esse elevador chama-se dumbwaiter.

Em outros idiomas, o conceito criado-mudo foi adaptado para outros móveis. Na Alemanha é stummer diener, cabideiro. Aqui no Brasil, o termo criado-mudo chega com os portugueses no final do século XIX para descrever duas coisas: bidê e velador. No final, o velador venceu e continua sendo o criado-mudo que conhecemos hoje.

Eu já fiquei com o maior medo de pegar um voo doméstico e estou o dia todo xingando o e-Social de racista. Graças a Deus eu fugi das aulas de Economia Doméstica e Prendas Domésticas quando as freiras quiseram me colocar. Atirei no que vi, acertei no que não vi: fugi só porque achava chato mesmo, avalia se soubesse a verdade completa como sei agora. Essa vem direto do latim domus, o lar, que gera domesticus, o que é do lar.

Discriminar os praticantes de uma religião é natural. Discriminar é um verbo transitivo direto que significa: perceber diferenças, distinguir, discernir, classificar, especificar. Dizer que eu sou cristã e o irmão é muçulmano seria o ato de nos discriminar como praticantes da religião. A postagem completa sugera que não se faça isso com os praticantes de religião de matriz africana, o que seria um preconceito gigantesco, se bobear, até infração penal.

Ninguém sabe direito a origem da palavra macumba, a mais provável é o Quimbundo, idioma nativo angolano para referir-se a um instumento musical. Aqui, referia-se ao tambor utilizado nas cerimônias de religiões de matriz africana. Depois, a palavra macumba passou a ser usada para descrever todas essas religiões e suas oferendas, os despachos com comidas. Ela é muitíssimo usada de forma pejorativa, para falar mal ou estigmatizar os praticantes da religião.

No entanto, quando se fala "galinha de macumba" ou "chuta que é macumba", fala-se da oferenda em si, não do praticante. De qualquer forma, devemos lembrar que é algo sagrado para essas pessoas.

Até eu já acreditei nessa história quando era adolescente. Mas também já saí correndo atrás de pasta redonda para guardar circular porque os colegas mandaram. O fato é que nunca houve essa ideia absurda de fazer telha em coxa. E isso não foi por humanidade não, foi pela arquitetura. Muito mais fácil e eficiente deixar a telha secar em suportes de madeira. Além disso, dá para fazer telhas mais longas. As telhas coloniais têm em média 70 cm, o dobro da altura média da coxa humana.

Ninguém sabe direito de onde veio esta expressão, mas há duas hipóteses. A primeira é aquela que todo mundo ama, a de cunho sexual. Seria a relação sexual digamos... interfemoral. Algo que já se fazia desde a Grécia Antiga. Mas não se sabe. Também pode ser um trabalho improvisado feito nas pernas em vez de apoiar-se na mesa, onde ficaria mais caprichado.

Eu não consegui achar a origem dessa expressão que, vamos confessar, é deprimente. Só consegui achar um clipe da Pablo Vittar chamado Nega, mas aí é algo afetivo, não é racismo. No entanto, não creio que seja uma expressão corriqueira entre os séculos XVI e XIX, o período da escravidão no Brasil. Revirei crônicas de conflito amoroso de Machado de Assis e até poemas de Gregório de Mattos, não tem nada lá. Parece algo do vocabulário contemporâneo reagir com um "me respeita que não sou tuas nega". Mas, sei lá, vai que está até em Gil Vicente e Camões e a ignorante sou eu.

Essa mesma listagem, com o texto exato contando as mesmas mentiras, também faz parte de diversas outras organizações de combate a fake news e ódio na internet, a maioria delas composta por jornalistas. Ninguém pediu para derrubar post nem sinalizar como enganoso ou falso. Ainda bem que eu comecei a dizer que eu sou YouTubber para fazer sucesso entre os colegas do meu filho. Avalia a vergonha que eu iria passar agora com a molecada.

Há ainda outras duas expressões que não aparecem na listagem da Agência Lupa e foram usadas ontem também com significados mentirosos:

"A dar com pau" - Essa expressão refere-se aos navios negreiros, onde os negros que não obedeciam recebiam uma alimentação dosada por uma colher de pau. O termo significa "pouco" ou que alguma pessoa não é digna de consideração. (((ESPERA UM POUCO!!!))) Não sei a origem, mas "a dar com pau" quer dizer o oposto, em excesso, em abundância...

"Inhaca" é o nome de uma ilha de Moçambique, país da África Oriental. Desde a época colonial o termo é usado para falar de algo com cheiro forte, desagradável. A expressão reforça preconceitos ao associar a ilha, onde a população é negra, a algo desagradável e nojento. (((MENTIRA)))

Inhaca era uma península ligada a Maputo que naturalmente desligou-se do continente e virou uma ilha. Jamais chegou a ser completamente colonizada e até hoje é administrada pela elite local, os Nhaca. Pergunte a um moçambicano o que é "inhaca" e ele vai dizer que é a ilha porque não existe essa palavra com o sentido que usamos aqui, ela vem do tupi. Aca é fedido. Daí vêm inhaca, sovaco e cavaco (buraco fedido). Não tinha índio tupi em Moçambique, o nome daquela população nativa é coincidência.

Conclusão

Graças a Deus o TSE, o STF e o CNJ vão chamar as agências de checagem para aquela comissão de combate à desinformação e para ajudar a combater Fake News nas eleições. Avalia cada mentira que poderia passar batida sem a ajuda desses bravos guerreiros. Quem sabe até o amigo do miojo-medusa não se anima e monta uma agência dessas a tempo de contribuir.

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