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(Brasília – DF, 03/07/2019) Coquetel de recepção para celebrar o 243º Aniversário da Independência dos Estados Unidos da América.rFoto: Carolina Antunes/PR
(Brasília – DF, 03/07/2019) Coquetel de recepção para celebrar o 243º Aniversário da Independência dos Estados Unidos da América.rFoto: Carolina Antunes/PR| Foto: Carolina Antunes/PR

O ministro Marcos Pontes, que estudou para ser astronauta, resolveu falar da sua área de expertise nas redes sociais, o que hoje em dia é praticamente um crime, além de démodé. Mas ele é o tipo de pessoa que se considera mais qualificada para falar de um tema apenas porque estudou esse tema cientificamente durante anos e tem reconhecimento nacional e internacional no assunto. Pura soberba.

Marcos Pontes pode ter colocado um "kkk" na legenda, mas quem ri por último é sempre o comentarista de redes sociais. Nos grupos terraplanistas, que se unem pela necessidade de aceitação social da própria ignorância, todos já desvendaram o mistério e sabem como o nosso querido ministro foi enganado por uma grande conspiração global.

Além de fazer troça da formação do nosso astronauta, os grupos de terraplanistas sabem muito bem que ele foi enganado pela NASA, um grande engodo. E isso, de alguma forma, está ligado à maçonaria. O expert que provoca a conversa, postando no grupo fechado do Facebook a notícia de que o ministro havia tuitado, é sonoplasta de formação. Em seu perfil, comemora o fim de autoescola obrigatória para tirar carteira de motorista, fala de futebol e compartilha trailers de releituras da história pelo Brasil Paralelo. Típico terraplanista, né? Não. Na verdade, desconfio até que postou o link no grupo para tirar sarro dos terraplanistas.

Claro que os terraplanistas tinham na ponta da língua respostas para contestar o ministro-astronauta e até as fotos da NASA. Julgam que o discurso realmente tem serventia para contrapor Marcos Pontes, como se ficção pudesse servir para contestar a realidade. Reproduzo, preservando a identidade, algumas reações.

A discussão prossegue até que alguém compartilha uma outra publicação que é tratada como a explicação definitiva sobre os motivos de Marcos Pontes espalhar por aí informação da NASA.

Jamais o ministro Marcos Pontes vai convencer os terraplanistas de que a terra é redonda porque a briga deles NÃO é por isso, é pela cruzada contra o conhecimento e a especialização. Querem que uma fantasia, por mais absurda que seja, passe a ser chamada de "opinião" e, assim, tenha espaço no debate público.

Erramos ao pensar que se trata de um movimento que quer convencer cientistas de que o método deles está errado e a Terra é plana. Estamos diante de um movimento por visibilidade e aceitação. A intenção é que o discurso do grupo, mesmo que sem nenhum fundamento, seja aceito como suficiente para contrapor o que dizem as pessoas que realmente se dedicaram a estudar o tema. A realidade e o conhecimento, nessa lógica, ganham lugar secundário. Importa o indivíduo e como ele quer ser ouvido, aceito e se sentir importante.

Os terraplanistas não são párias sociais, desequilibrados ou ignorantes os que fazem essas postagens, são pessoas comuns, com as quais convivemos diariamente, muitas com formação universitária, empregos estáveis, famílias constituídas e um grupo enorme de amigos. Eu sabia disso, mas confesso que fiquei surpresa ao verificar que conheço um dos terraplanistas que estão bravos com Marcos Pontes. É amigo de uma amiga querida, pai de família exemplar, com emprego estável na área de vendas.

Resolvi olhar os demais. Uma dona-de-casa apaixonada pelos filhos com postagens fofas. Um dono de barbearia, dessas moderninhas que estão surgindo por todo canto. Um cruzeirense apaixonado e jovem, cheio de amigos bons de piadas. Um missionário da Igreja Adventista que está na África e compartilha diariamente posts políticos de fake news xingando alguém. Um ferrenho defensor dos animais que também é antivacina. Uma página pública que compartilha diariamente fake news de política cuja administradora é uma mãe de família cristã e bolsonarista que mora na Flórida. Um motoboy integrante da Gaviões da Fiel orgulhoso porque entrou na faculdade. Um pai de família roqueiro apaixonado por filmes de terror. Uma psicóloga. Sim, uma psicóloga.

O que seria capaz de juntar um grupo tão heterogêneo? Não é o terraplanismo, é a tentação de encontrar uma forma de validar nossa própria vulgaridade.

Cada um tem dentro de si seu terraplanismo. É típico da condição humana abrigar na alma vulgaridades, fraquezas e demônios. Enfrentar e controlar essas forças exige disciplina, autoconhecimento, domínio próprio, humildade e, acima de tudo, amor. É coisa demais, esforço demais para talvez jamais chegar a ter dos outros o reconhecimento de um astronauta. E se a gente não precisasse de nada disso, se nossas vulgaridades, fraquezas e demônios passassem a ser simplesmente aceitos e valorizados? Gente de todo tipo tem cedido a essa tentação, fingir que está tudo bem para se sentir adequado.

Por que só o outro é reconhecido? Só porque ele estudou aquilo, se dedicou? Só porque tem uma história construída nessa área, experiência, reconhecimento? E daí que ele se esforçou para ser um astronauta? Quero ter o mesmo reconhecimento de um astronauta, vou contestar o que ele diz. É assim que eu vou valer tanto quanto ele, quando a minha fala servir para contrapor a dele. Se somos muitos, pouco importa que juntos não tenhamos o mesmo conhecimento nem a mesma experiência, temos a mesma importância, não estamos delirando, estamos opinando.

O processo de validação pública do delírio coletivo é cristalino quando temos uma trupe achando que pode contestar conclusões científicas de um astronauta. Os terraplanistas são apenas a versão mais estridente e bizarra do fenômeno, que se espalha por todos os cantos.

É fácil julgar os outros, mas temos de reconhecer que é uma tentação enorme realmente poder viver a aceitação das nossas vulgaridades como se qualidades fossem. Nem todos vão correr para os guetos do terraplanismo ou dos antivacinas, dos anti-ciência. Mas há muitos que remendam as feridas do ego dando verdadeiras aulas, nas mídias sociais ou na mídia tradicional, sobre fatos que desconhecem, teorias que não estudaram e áreas em que não têm experiência.

Vivemos tempos em que há toneladas de especialistas em geopolítica, segunda instância, juiz de garantias, lei do abuso de autoridade, liberdade de expressão, veganismo, proteção animal, mudança climática. Todos somos especialistas em todos os temas e não consideramos ridículo porque somos muitos e não lidamos com as consequências reais das nossas opiniões. Seria evidentemente patético se eu quisesse ensinar, por exemplo, o encanador a consertar a tubulação da minha casa ou o azulejista a assentar o piso. Em minutos o efeito estaria ali, na minha cara: uma bela de uma porcaria.

Há um mecanismo muito interessante que tem justificado esse comportamento autoindulgente: dizer que "é minha opinião". A palavra opinião, sempre atrelada ao conceito de liberdade de expressão, parece ser a cobertura perfeita para dizer absurdos que chamem a atenção dos outros. Não se deixe enganar por esses farsantes. Para haver opinião, é necessário ter pleno conhecimento dos fatos, domínio técnico e experiência no tema. Fora disso, não há opinião, há fantasia. Todos têm o direito de expressar suas fantasias, mas elas não podem continuar a ser confundidas com opiniões.

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