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Quem somos nós quando a realidade se impõe?
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Uma linha argumentativa muito comum em debates acalorados é perguntar ao outro o que ele faria em determinada situação se passasse por ela, se fossem com alguém da família. Está sempre presente nos debates sobre prisão perpétua, pena de morte, maioridade penal e, mais recentemente, uso da cloroquina. Trata-se de uma pergunta retórica apenas, completamente inútil. Ninguém sabe como reagirá diante da crueza da realidade que se impõe, apenas imagina.

Sabemos quem somos e como reagimos quando conhecemos as circunstâncias. Despidos delas e da rotina, quem somos? Estamos descobrindo agora, diante do maior desafio da nossa geração, a pandemia de coronavírus.

Todos temos um conjunto de valores que nos rege e é natural que cada um acredite que seus próprios valores são os melhores e mais nobres. Neste momento em que eles estão sendo postos à prova, quanto do que considerávamos ser nossa essência ainda fazem parte de nós?

Mais intrigante ainda é o que leva algumas pessoas a quebrar sua estrutura de valores morais. Há um episódio interessantíssimo que nos ajuda a raciocinar sobre isso, ocorrido em um contexto completamente diferente: o futebol. Vinte anos atrás, na final da Copa João Havelange entre Vasco e São Caetano, comemoração do aniversário de 90 anos do clube carioca, o alambrado desabou.

Como reagimos se uma tragédia humana que atinge apenas desconhecidos ocorre justamente no momento da maior comemoração das nossas vidas? Difícil prever quem realmente tem força de espírito para preservar dentro de si a humanidade diante do caos e da frustração.

O episódio é uma aula de comportamento humano e um convite sério à reflexão. Eurico Miranda, que na época era o grande chefão do Vasco da Gama, teve um impulso inicial de humanidade. Depois, parece ter ficado arrependido e mudou completamente de comportamento, gerando uma briga com o então governador Anthony Garotinho, que cancelou a partida.

Assim que o alambrado desabou, a pergunta dos repórteres era se haveria condições de realização da partida. Sinceramente, não sei se faria essa pergunta neste momento, mas foi feita. Eurico Miranda irritou-se e disse que aquele era o momento de acudir as pessoas, de se preocupar com as pessoas.

A cena da queda do alambrado é impressionante. Os feridos, 160, espalhados pelo gramado de São Januário formam uma cena surreal, uma das mais tristes da história do futebol. Até aí, mesmo sendo Eurico Miranda, ainda se mantinha a vida como valor fundamental. Não durou muito e o comportamento mudou.

Passou a gritar entre os feridos que as ambulâncias tinham de sair imediatamente do gramado. Chegou a tentar levantar algumas pessoas e dizer que elas não estavam tão feridas e precisavam liberar o campo para a partida.

No meio do caos, chega a São Januário o Secretário de Defesa do Rio de Janeiro com uma ordem direta do governador do Estado, Antony Garotinho, para cancelar a partida. Eurico Miranda entrou num bate-boca com o governador porque acreditava que ele estava interferindo em decisões internas do Vasco da Gama, não poderia mandar em São Januário.

O bate-boca segue pela imprensa e, então, as coisas escalam. Eurico Miranda manda o time pegar a taça, já que seria campeão com um 0 x 0 e comemorar no gramado. Os jogadores fizeram a comemoração efusiva ao lado de dezenas de torcedores feridos recebendo atendimento.

Claro que, olhando em perspectiva, é muito fácil julgar diante do absurdo que é comemorar um campeonato de futebol ao lado de torcedores sofrendo de dor e médicos prestando socorro. O fato é que não apenas Eurico Miranda, com todas suas particularidades de caráter, decidiu que isso era o melhor a fazer. Sozinho, nada teria feito.

Se o vilão da história obviamente foi Eurico Miranda, que já tinha essa imagem por diversos outros motivos, os planos dele só foram executados graças a outros: os jogadores.

Você acataria a ordem de comemorar efusivamente uma vitória dos seus, sonhada por muito tempo, diante do sofrimento de dezenas de pessoas? Não sabemos, estamos descobrindo agora.

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