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Secretário do Ministério da Saúde é esculachado na imprensa por acertar
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Nunca serei capaz de concluir se é por incompetência, preguiça ou implicância que parte da imprensa brasileira insiste em dar palco para preguiçoso falastrão e não ouvir quem está certo. Desta vez, a vítima foi o coronel Luiz Otávio Duarte, secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde, que deu uma orientação correta a diversos gestores públicos e está sendo injustamente esculachado na mídia e nas redes sociais.

Para noticiar uma denúncia contra alguém, o mínimo que se espera do profissional que ganha para isso é que leia todos os documentos e tire dúvidas com quem tem preparo acadêmico para entender aquilo. Isso não é função do público, é função de quem vive disso, de quem lucra com isso. Por uma infinidade de questões, que vão desde a evolução tecnológica até o contexto econômico, cada vez tem feito mais sucesso um tipo de espetáculo que eu chamo de "jornalismo declaratório", uma forma de enganar o público. As pessoas crêem que estão consumindo jornalismo, mas se trata de entretenimento. É o caso em questão.

Houve uma audiência na Câmara dos Deputados para discutir um problema técnico grave enfrentado em todo o país por Estados e Municípios: o pessoal que quer lucrar com o coronavírus. Um produto hospitalar custava X até ontem, você tenta comprar hoje e ninguém vende por menos de 3X. Não se trata nem da situação emergencial da pandemia, mas da emergência de ter determinados medicamentos nos hospitais, afinal os preços em alta são para todo o tipo de coisa. Como se deve proceder num caso desses? Foi esse o esclarecimento feito por Luiz Otávio Duarte, de forma correta e dentro da lei.

"Quem está na função de ordenador de despesas ou quem está na função de gestor do hospital que vai fazer a compra de tais medicamentos, é muito simples: senhores, o medicamento está acima do preço. Comprem o medicamento fundamentado em salvar vidas. Ao mesmo tempo, os senhores abram um processo administrativo ou uma simples sindicância para apurar sobrepreço do medicamento." - orientou o secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde. É a orientação correta. O principal bem jurídico a ser protegido pelo servidor é a vida e, ainda que a compra seja feita com sobrepreço, o assunto não é ignorado, já que se pede a apuração.

Ocorre que tem um jeito muito mais fácil de fingir que se faz apuração de corrupção e jornalismo: investigar só um lado do processo licitatório, o do Poder Público. São entrevistas maravilhosas e comentários eletrizantes contra a corrupção que, invariavelmente, não têm consequência por não ter fundamento. Em vez de assumir o truque, se brada contra a impunidade.

Claro que seria necessário ouvir todo o trecho da reclamação dos gestores para entender a resposta. Duvido que tenham ouvido antes de esculachar o secretário. Seria dever jornalístico ir atrás de algumas licitações reais citadas por aqueles servidores e entender do que eles estão falando na prática, por onde sai o dinheiro e se há possibilidade de envolvimento de propina ali nas situações reais. Eu tive esse trabalho, vi algumas daqui de São Paulo que estão sendo escrutinadas por técnicos do Legislativo. Conversei com especialistas em auditoria e entendi a reclamação: tem gente se aproveitando da pandemia e, mesmo sabendo disso, não se pode deixar gente morrer em hospital.

Todas as investigações que nós temos visto apontam unicamente para os servidores públicos. Por quê? Porque dá muito menos trabalho a investigação e jornalista que não lê processo nem vai atrás de informação adora dar um destaque fenomenal para estes casos. Quanta gente gritando Covidão você vê por aí? Não duvido que haja abusos também do lado público, mas vimos na Lava Jato que é preciso investigar também as empresas. Nos casos que eu vi, há uma orquestração muito estranha de elevação de preços de vários medicamentos sem nenhuma justificativa nem de oferta nem de demanda, mesmo após tomada de preços com o setor público. Por que não se investiga isso? Maldosos diriam que é porque dá trabalho e não dá tanta mídia, eu não acredito.

O coronel Luiz Otávio Duarte orientou corretamente o que fazer, passo a passo, no caso de precisar comprar um produto que salva vidas e verificar que há um sobrepreço. Você compra e já investiga o fornecedor. "Peguem o resultado dessa sindicância. Se há indício de enriquecimento ilícito por parte da empresa ou se há um sobrepreço que irá causar dano ao erário, entreguem essa sindicância ou esse processo administrativo para o Ministério Público.", defendeu. "Então, dê publicidade a esse ato que ninguém vai ser preso. Faça isso. Eu orientei o governo de Natal. 'Ah, coronel, [o preço do medicamento] está 600% acima'. Compre. Abra o processo administrativo e entregue ao Ministério Público. Faça o Ministério Público Federal trabalhar, o Ministério Público estadual", afirmou.

O Ministério Público já declarou à imprensa que moverá representação para apurar as declarações do Secretário. Reparou? Nenhum documento feito e nenhum documento lido. O jeito mais fácil de fazer uma boa reportagem e aparecer como herói é esculachar alguém que só estava trabalhando, mas tem um trabalho difícil de explicar.

Houve uma reclamação concreta de Natal, capital do Rio Grande do Norte, sobre um medicamento que é necessário na rede pública e agora só é vendido com sobrepreço de 6 vezes o valor normal. O poder público tem um procedimento que se chama tomada de preços, onde fica arquivado o parâmetro dessas compras. O que fazer se todas as empresas aptas a contratar com o poder público resolvem combinar entre si que um remédio que salva vidas só será vendido mais caro? Deixa o pessoal morrer? Não, compra, investiga e pega o dinheiro de volta. Só que dá trabalho.

Essa foi a orientação do Ministério da Saúde que, se não for seguida, pode gerar tragédias humanas em todo o Brasil. Vários gestores relataram que estão sendo ameaçados de prisão pelos promotores locais devido ao problema com sobrepreço, que existe. Não falta oportunista na hora do desespero. Por que esses mesmos promotores não investigam o motivo de, de repente, todas as empresas resolverem vender mais caro para o poder público? Há sanções para isso e essa é a notícia que nós todos teríamos de saber, a verdade.

O Conselho Nacional dos Secretários de Saúde divulgou uma nota que concorda com a orientação do Ministério da Saúde, mas acabou sendo divulgada pela imprensa como se fosse contrária. "O Conass entende que todos os gestores do SUS devem praticar seus atos conforme a legislação. Não é possível garantir que os órgãos de controle, independentes e autônomos, se pautem conforme almejamos. Por isso, devemos seguir com precaução, respeito à legislação e diálogo com os órgãos de controle." O texto repete a orientação com apenas uma ressalva: as ameaças de prisão podem ser concretizadas, mesmo que injustas, inclusive com todo o espetáculo midiático típico desses casos.

Se queremos coibir a corrupção, é necessário apurar o que ocorre e isso é impossível sem investigar todo o fluxo de dinheiro. Ainda não há investigação de combinação entre empresas para sobrepreços, como é possível então determinar se e em que medida há participação de gestores? Não há como. Mas dá uma bela de uma bomba jornalística para aqueles acostumados ao espetáculo do jornalismo declaratório, em que ninguém lê documento nenhum e amanhã se encontra outra pessoa para esculachar.

Secretários estaduais e municipais demandaram ao Ministério da Saúde que a ordenação de várias despesas seja feita pelo Governo Federal porque eles têm medo de ir presos se seguirem a lei. Luiz Otávio Franco Duarte sabe que sua Secretaria de Atenção Especializada à Saúde não tem operacionalmente como fazer o que foi solicitado. De acordo com a lei, ninguém pode impedir promotores e procuradores de investigar pela metade nem de ameaçar servidor público de prisão. Este problema terá de ser resolvido porque há cidadãos que podem morrer sem os tais remédios e insumos com sobrepreço.

Infelizmente, se essa discussão serve à cidadania e ao jornalismo, não serve à sociedade do espetáculo, do esculacho e da bravata. É preciso esculachar alguém e deixar de lado toda essa chatice de ler documentos e lidar com a realidade para que algo sem graça conquiste a ribalta. Está travestido de jornalismo, mas tem um militar recomendando fazer algo errado e um bravo procurador dizendo que vai averiguar. Uma legião de comunicadores que não leu um documento faz bravatas indignadas e ironias divertidíssimas. Amanhã, farão tudo de novo com outro tema e outros personagens. O cidadão que se vire com seus problemas.

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