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Um novo ciclo da política, por Gaudêncio Torquato
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Momentos de renovação e mudança são difíceis de compreender. Quanto maior a distância histórica, maior a clareza. Como prever o que podemos esperar na política? Com conhecimento e experiência. Recorri ao meu professor, Gaudêncio Torquato, um pioneiro da comunicação política no Brasil, profundo conhecedor dos personagens e dos mecanismos que sustentam nossa República.

O material que trago aqui é muito mais que um artigo, é um estudo aprofundado sobre sociedade, economia, política e, sobretudo, a alma humana, nossos desejos e limites. Fala da história de dos valores do nosso povo, das tendências políticas mundiais, da crise da democracia representativa e do nosso papel no mundo. Boa leitura!

UM NOVO CICLO DA POLÍTICA

por Gaudêncio Torquato

A incerteza tem ampliado consideravelmente seu espaço no ambiente da política nacional, puxando questões como estas: Bolsonaro chegará ao fim do governo? A campanha eleitoral deste ano será regulada pelos territórios do “Nós e Eles”, dando continuidade à polarização que acirra os ânimos desde o correr do pleito presidencial de 2018? A economia em crescimento terá influência sobre a política ou esta não será fator tão decisivo como muitos analistas argumentam?

A resposta para tais interrogações passa necessariamente por uma teia de observações sobre nossa cultura política, os fatores que pesam sobre o comportamento social, as circunstâncias que delimitam o sistema decisório dos cidadãos, enfim, um agregado de situações que explica a viabilidade dos atores políticos, o vaivém que, nos últimos tempos, tem passado a sensação de que o Brasil é o “país do eterno retorno”.

A propósito, batizar nosso território como o “país do eterno retorno” condiz com o desenvolvimento de sua identidade. O conceito remete ao filósofo e filólogo alemão, Friedrich Nietzsche (1844-1900), que, em sua obra, referia-se aos ciclos repetitivos da vida, eis que a humanidade está sob a conjugação de um aglomerado de eventos, coisas que ocorreram no passado, acontecem no presente e se repetirão nos dias de amanhã. Tragédias, guerras, acidentes/incidentes revelam um continuum de fatos repetidos dentro de um planeta formado por polos opostos e incongruentes.

Outra marca que nos caracteriza é a do “país de Sísifo”, aquele personagem da mitologia grega, condenado a passar uma temporada no Hades, por ilícitos cometidos. Em um gesto de clemência, as divindades permitiram que retornasse à terra para expurgar seus erros. Sob uma condição: voltar ao novo habitat depois de curta licença. O espertalhão desapareceu. Os deuses mandaram procurá-lo e, ao regressar, aplicaram-lhe o castigo: carregar uma imensa pedra sobre os ombros até o cume da montanha. Tarefa que jamais conseguiria completar. Prestes a cumprir a missão, a pedra resvalava dos ombros e rolava ao sopé da montanha. Exercício que Sísifo haveria de repetir por toda a eternidade.

O chiste poderia se aplicar ao Brasil, onde as mazelas do processo civilizatório impediriam o país de chegar ao cume da montanha. 

Entremos na análise com uma observação. A política brasileira deixou de ser missão, nos moldes do pensamento aristotélico de servir à polis, para se transformar em profissão. Sendo assim, a política deixou de ser um sistema-meio para suprir e administrar as necessidades do povo, para ser um fim em si mesmo. Transformou-se em escada para promover pessoas e facilitar negócios, um dos melhores da Federação. O empreendimento é a conquista do mandato; o produto político é a intermediação; e o mercado cobre um território com 27 Estados (com o DF) e nichos de interesses distribuídos em três esferas: federal, estadual e municipal.

Nesses espaços, mesmo sob um conjunto decontroles, principalmente pelos Tribunais de Contas, desenvolve-se uma “indústria do superfaturamento”. Obras públicas nas três malhas da administração geralmente são feitas com um “plus”, um dinheiro a mais, que é desviado para cofres de campanhas, formando o círculo vicioso responsável pelo lamaçal. O PIB informal da política é algo escandaloso, chegando a superar a imaginação dos alquimistas financeiros mais sofisticados.

O negócio da política mexe com cerca de 150 milhões de consumidores, que formam o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta, em média, R$ 15 reais por eleitor, quantia que pode ser três a quatro vezes maior, se o político for um iniciante e rico. Numa campanha para deputado federal em São Paulo gastam-se entre R$ 1,5 milhão (custo menor) a R$ 3,5 milhões (custo médio). A maioria dos eleitos gasta bem mais que a soma dos salários em quatro anos de mandato.

Se a campanha política no Brasil é tão dispendiosa e se os candidatos gastam acima do que ganham, por que se empenham tanto em assumir a espinhosa e sacrificada missão de servir ao povo? 

E mais: nesse momento de escassez, acerta-se um fundo eleitoral que este ano deverá ser de R$ 2 bilhões. Um passo em falso.

O PATRIMONIALISMO 

Como é sabido, por aqui os papéis entre os campos público e privado são facilmente trocados, gerando superposição e invasão. A coisa pública se transforma em feudos de domínio pessoal. A corrupção, que tem sido alvo de investigações da Operação Lava Jato, resulta de ausência de institucionalização política eficiente. As autoridades subordinam seus papéis a demandas pessoais. Quando mais atrasadas as regiões, quanto menos controle das instituições pelos mecanismos de acompanhamento dos fazeres públicos, maiores os desvios.

No escalão burocrático federal, as repartições, historicamente, são divididas entre pessoas e grupos de influência, a maior parte constituída de políticos que dão seu apoio e sustentação ao Governo. Nos Estados, os cargos são divididos entre os deputados federais, que montam nas estruturas burocráticas fortes exércitos de ocupação. Essas cotas integram o arsenal do que se conhece como “presidencialismo de coalizão”. Infelizmente, mesmo com a disposição do atual governo de implantar a meritocracia, o que seria muito aplaudido, com a nomeação de técnicos, na prática há farta divisão de posições pela esfera política ou por nomes de simpatizantes das crenças do presidente e seu entorno.

A dilapidação da coisa pública é um fenômeno inerente a todos os regimes políticos, mas nas culturas políticas subdesenvolvidas assume a conformação de tragédia.

Quando o cidadão não é impelido por suas necessidades, impelem-no pelo menos os seus desejos, pois, entre todos os bens que o rodeiam não há nenhum que esteja inteiramente fora de seu alcance. Ele se considera em condições de se apoderar de tudo. Principalmente, quando investido de poder normativo e institucionalizado.

Essa sinalização do ethos de nossa política vem lá de trás, de D. João III, ao criar as 14 capitanias hereditárias, fez uma distribuição aos donatários amigos do Rei. Que se acharam donos daqueles imensos pedaços de terra. Começou por aí a invasão do espaço público pelo interesse privado, dando lugar aos “ismos” de nossa política: mandonismo, grupismo, fisiologismo, caciquismo, galhos da árvore patrimonialista.

Certos mandatários acham que cargos públicos são suas posses. Portanto, o mandato não deixa de ser uma forma de conquista de recompensas e amortização de débitos. 

Esboça-se, assim, um quadro global de amoralidades e ilicitudes que só vêm à tona quando as águas sujas transbordam no copo dos donos do poder. Além disso, a imanência da corrupção nas diversas esferas do domínio público acaba por conferir efeito anestésico à sociedade. Acaba-se achando normal roubar, contanto que se faça alguma coisa para compensar o roubo.

O ETHOS NACIONAL 

Uma historinha hilária diz haver quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, a mais civilizada, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido. A segunda é a alemã, sob rígidos controles, onde tudo é proibido, salvo o que é permitido. A terceira é a totalitária, pertinente às ditaduras, na qual tudo é proibido, mesmo o que é permitido. E a quarta é a sociedade brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que é proibido.

Que explicação pode se dar para inserir Brasil na caricatura da esquisitice? É possível explicar em parte o chiste quando se atenta para a formação do ethos nacional.

A engenharia social brasileira, assentada sobre a miscigenação de raças (portugueses, índios e negros), expressa heterogênea coleção de valores. Conservamos, porém, uma unidade étnica básica, apesar da confluência de tão variadas matizes formadoras, que poderiam, na visão de Darcy Ribeiro, resultar numa sociedade multiétnica, “dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis”. Complementa o nosso famoso antropólogo e ex-senador em seu livro O Povo Brasileiro“Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários”. 

A adjetivação para qualificar o homo brasiliensis é vasta e, frequentemente, dicotômica: cordial, alegre, trabalhador, preguiçoso, verdadeiro, desconfiado, improvisado. Afonso Celso, em seu Porque me Ufano do meu País, divide as características psicológicas do brasileiro entre positivas e negativas, dentre elas a independência, a hospitalidade, a afeição à paz, caridade, acessibilidade, tolerância, falta de iniciativa, falta de decisão, falta de firmeza, pouco diligente. Nessa linha, Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, pontifica: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”. 

OS MITOS 

É rica a literatura que trata da formação do caráter nacional. As abordagens são múltiplas, a começar pelos mitos que formam o pano de fundo sobre o qual se teceu nosso tecido valorativo. Primeiro, o mito do Éden. Ao aportarem, os nossos colonizadores se depararam com a exuberância da natureza e seus habitantes, rudes e inocentes, índios sem vestes, uma paisagem deslumbrante, o jardim do paraíso, tão bem emoldurados por Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Visão do Paraíso, ao mostrar a atmosfera mágica que as novas descobertas proporcionaram ao europeu.

Sob essa primeira visão, a seara valorativa produziu seus primeiros frutos: o ócio, a indolência, a sensualidade, a voluptuosidade, a glutonaria, a improvisação, a festa, a dança, o eterno carnaval. O segundo mito: o Eldorado. As riquezas apareciam ao longo das descobertas do ouro e das pedras preciosas. Na esteira da exploração predatória, outro conjunto de valores tomou corpo: a cobiça, a ganância, a traição, a destruição da natureza, a ambição, a disputa, a guerra entre grupos, os conflitos.

O inferno verde é o terceiro mito. A cobiça levou os colonizadores ao interior profundo. A floresta despontava como ambiente inóspito, selvagem, agressivo. As doenças debilitaram corpos, fustigando as mentes. Claude Lévi-Strauss, em seu celebrado Tristes Trópicos, radiografava o Brasil como o lugar mais inabitável do planeta, onde seria impossível a um homem sobreviver. Na paisagem da conquista do interior do País, outro feixe de características aparece: a miséria, a desorganização, a improvisação, a sujeira, a marginalidade, o desleixo.

A par dos mitos, outros conjuntos valorativos surgiam, frutos da miscigenação. Quem não conhece o perfil individualista do brasileiro? “Você sabe com quem está falando?” E a nossa propensão para a imprecisão, para a ausência de objetividade? “Quantas horas você trabalha por semana?” Previsível resposta: “trabalho mais ou menos 40 horas”. O mais ou menos é coisa muito nossa. O fingimento é outro traço. O político, ao cumprimentar o interlocutor, pisca para alguém que está ao lado. Quem não já de defrontou com a expressão catastrófica ou o complexo de grandeza, comuns em nossa interlocução diária? Somos os melhores e os piores do mundo em matéria disso e daquilo; temos os maiores potenciais, as maiores riquezas ou a mais degradante miséria. Não somos imediatistas, mas treinados na arte da protelação. Cultivamos a semente da anarquia. Ou, como bem o diz Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil“os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes.” 

Apreciamos o apadrinhamento, o patrocínio dos favores, o ludismo. Somos o País do futebol. Um vulcão de explosões emotivas. Trocamos com facilidade o riso pelo choro. A festa pela briga.

Tentar compreender o ethos nacional é um exerício fundamental para o próprio entendimento da política e dos fenômenos que patrocina. A recorrência a eixos valorativos e a presentes nas abordagens sobre o comportamento do homo brasiliensis. 

O COMPORTAMENTO ELEITORAL 

Vejamos, por exemplo, o comportamento eleitoral. Quem e como vota o brasileiro? Eis uma pergunta central que os Institutos de Pesquisa procuram responder ao longo dos pleitos, com atenção para os aspectos de sexo, idade, renda e classe social. (Fazemos a ressalva de que milhares de eleitores estarão fora do traçado sócio-psicológico aqui descrito, porque incorporam heranças culturais de outros povos. A racionalidade dominante na cultura anglo-saxã, por exemplo, contrapõe-se à emotividade e ao arcabouço criativo-festivo que influencia comportamentos, ações e decisões dos eleitores dos nossos Trópicos).

A tipologia essencialmente brasileira se rege por um alfabeto nítido que começa com a parte mais visível, a cor da pele. Os morenos e os pardos, que carregam a mistura do sangue do branco colonizador, do negro e do indígena, são a própria expressão da cultura do mais ou menos que sua pele exibe. J. O. de Meira Pena assinala este aspecto em sua obra Em Berço Esplêndido. “Quantas horas trabalha por semana? Mais ou menos 40 horas. É religioso? Sou católico, mas não praticante. Ou, ainda: sou ateu, graças a Deus”.

A tendência de querer ficar no meio termo é reforçada pela condição de contemporizador, que transparece nas frequentes locuções “deixar estar para ver como fica”, “deixa pra lá”, “fulano está empurrando com a barriga”. 

Não por acaso, essas expressões continuam a ser usadas pra explicar as reformas política, tributária, administrativa etc. Também não por acaso, milhões de eleitores deixam para escolher seus candidatos às vésperas do pleito. A indicação de mudança de voto recebe altos índices de intenção, reforçando os traços de incerteza e dubiedade que caracterizam o perfil do eleitor, fruto dos elementos de improvisação que se fazem presentes no caráter nacional. Há nisso alguma indicação de displicência? Sem dúvida. Decisões, que identificam uma forte cultura de protelação, são deixadas para a última hora na esteira de um comportamento que se identifica com um misto de lerdeza e negligência, despreocupação e negação de critérios de prioridade. Basta lembrar o rol de obras mal construídas, trabalhos mal feitos, acabamentos defeituosos, sujeiras nos lugares públicos.

O brasileiro tem prazer pelas coisas que lhe trazem conforto ou benefício imediato. Só nesses tempos de turbulência política, com a divisão do país em três bandas – a bolsonarista, a lulopetista/oposicionista e a centrista – o brasileiro começou a se interessar pela macro-política, a política dos grandes projetos, das obras que gerarão efeitos benéficos no longo prazo. Mas o eleitor é exigente em relação às coisas de seu cotidiano: a escola perto da casa, o transporte fácil, a segurança na rua, a comida barata, o emprego perto de casa.

Outra historinha diz que Deus carimbou alguns povos com tintas bem acentuadas. Aos gregos concedeu o amor à ciência; aos povos asiáticos, o espírito combativo; aos egípcios e fenícios (sendo estes últimos os atuais libaneses), imprimiu a marca do amor ao dinheiro. Aos brasileiros, Deus deu a capacidade de improvisar mais que outras gentes. Daí a propensão do eleitor para improvisar, mudando de candidato até se fixar naquele que melhor proposta fizer para seu bolso.

Daí o arremate: o eleitor brasileiro é infiel. Há grupamentos fiéis, particularmente entre estratos médios, formadores de opinião, segmentos engajados em partidos, setores religiosos, imigrantes de sangue anglo-saxão e núcleos ideológicos. Os grandes contingentes são amorfos, alheios ao cotidiano político e capazes de mudar de posição, de acordo com as circunstâncias e as necessidades imediatas. 

A infidelidade do eleitor tem a ver com a incultura política que semeia florestas de desinteresse pelos espaços nacionais, incluindo os centros mais evoluídos. Basta lembrar que eleitores da metrópole paulistana elegeram Jânio Quadros, Luiza Erundina, Paulo Maluf, Marta Suplicy, José Serra, Fernando Haddad e João Dória, entre outros. Alguns de estilo e pensamento opostos. Nas veias eleitorais, corre um sangue versátil, inseminado nos tempos da Colônia. A sinuosidade, a desconfiança, a versatilidade, a capacidade de adaptação aos espaços são traços de nossa cultura, decorrentes das grandes lutas pela conquista do Interior, no início da colonização. A luta pela sobrevivência, a pressão da natureza e o mundo de hostilidades formaram o cinturão mutante que aperta o estômago nacional, sujeitando-o às circunstâncias e ao meio ambiente.

Os vetores de decisão do eleitorado são influenciados, ainda, por dois elementos que parecem paradoxais. De um lado, um pessimismo galopante, que se faz presente nas locuções de que o “o país não tem jeito, estamos todos perdidos, não vale a pena lutar por isso etc”. De outro, um otimismo extravagante, que evidencia a superlativa dose emotiva da alma nacional. Nesse sentido, as alavancas de força se apresentam nas festas de época e fora de época, no Carnaval, nas folias cotidianas dos bares e até na esteira da bagunça que, em maior ou menor grau, transparece na fisionomia das cidades, na improvisação dos motoristas de trânsito e na linguagem desabrida das ruas.

O pessimismo induz o eleitor a se afastar dos políticos, que, indistintamente, ganham a pecha de “ladrões e corruptos”. Perfis populistas e messiânicos levam a melhor, ao sintonizarem a linguagem com a imprecação popular.

Não por acaso, o chavão “bandido bom é bandido morto, lugar de bandido é na cadeia” (Jânio Quadros), e, mais recente, o presidente Jair Bolsonaro. Já o otimismo tem nuances ufanistas e também marca o caráter nacional. Nossas grandezas ganham a expressão superlativa: o maior carnaval do mundo, o maior São João do mundo, o maior produtor disso e daquilo, as mulatas mais bonitas, as melhores iguarias, algumas das maravilhas do planeta.

Se o pessimismo é oposicionista, o otimismo tropical se aproxima do situacionismo, ou, em outras palavras, tende a reforçar o status quo. A vitória do Brasil numa Copa do Mundo é catarse geral. Até o Flamengo é entronizado do altar da felicidade nacional, contribuindo como estrutura de consolação da sociedade. O voto da permanência do governante identificado com o Produto Nacional Bruto da Felicidade será firme. Defino essa probabilidade com a equação BO+BA+CO+CA= BOlso Cheio, BArriga satisfeita, COração agradecido, CAbeça disposta a votar no candidato que proporcionou a felicidade. Por aí, podemos ter parte da resposta à questão: Bolsonaro será reeleito?

Se o eleitor gosta de mudar de posição, se navega tanto pela nau do pessimismo quanto pelo navio do otimismo, o que se deve aguardar é uma decisão que terá a influência das ondas oceânicas nas margens do pleito. Mar turbulento revirará o estômago e o passageiro pessimista irá para a oposição; mar tranquilo levará o eleitor para a continuidade de uma travessia sem turbulências.

TERREMOTO NA POLÍTICA 

O epílogo da primeira década do século XXI tem trazido mudanças na política. Aqui e alhures. O fato é que a democracia representativa está em crise nos quadrantes do planeta. E por aqui a carga é maior em função das mazelas de nosso sistema democrático. 

Lembremos Norberto Bobbio, para quem a democracia tem deixado de cumprir compromissos básicos, entre eles, a defesa de uma sociedade pluralista, o fim das oligarquias, a ampliação dos direitos dos cidadãos, a eliminação do poder invisível (os arcana imperii – o Estado informal dentro do Estado formal), a realização da meta de educação para a cidadania, combatendo o estado de apatia social (a cidadania passiva), e o enfrentamento à emergência da tecnocracia.

Este último aspecto projeta a crise no ciclo da sociedade pós- industrial. A hipótese central que dá embasamento a este argumento e que incentiva a recorrer a uma permanente crítica sobre a democracia contemporânea é a que Maurice Duverger expõe em seu livro sobre as Modernas Tecnodemocracias. De acordo com sua reflexão, a clássica democracia liberal, assentada na competição entre pequenas unidades empresariais, concorrentes e autônomas, cedeu lugar a vastas organizações, hierárquicas, racionalizadas, amparadas em imensos conjuntos e em sólidas bases empresariais, com ramificações e imbricações entre grupos de interesse.

O resultado desse jogo intrincado é a ressurgência de uma nova oligarquia econômica, que abriga não apenas os proprietários dos meios de produção e seus fideicomissionários, mas os técnicos, os administradores, os quadros governamentais e os organizadores. Roger-Gérard Schwartzenberg, ao alinhavar os componentes da nova composição de forças, sublinha o argumento que a inspira: a administração das coisas materiais passa a substituir o governo dos homens.

Esse novo triângulo do poder reúne o poder político, a alta administração e os grupos de negócios. Portanto, uma tecnoestrutura econômica se integra a uma tecnoestrutura política, gerando uma interpenetração pela qual o Estado passa a exercer importante influência na produção, nas trocas e no consumo, por meio da planificação, da regulação monetária, do controle dos preços e dos salários, do incentivo aos investimentos, do auxílio às empresas e da segurança social.

Esta simbiose interburocrática é responsável, em consequência, por um dos paradoxos da sociedade pós-industrial: a alienação se expande com a abundância e a democracia entra em declínio com a expansão dos negócios. 

O terremoto na política moveu placas tectônicas em muitas frentes:

• Arrefecimento doutrinário – As doutrinas, como flores velhas, passam a murchar, fazendo fenecer as utopias, estiolando as vontades cívicas e maltratando valores fundamentais do Huma- nismo. O esforço humano voltado para prover a sociedade com mais abundância de bens e serviços serve também para instru- mentalizar a política, ajudando a arrefecer as lutas ideológicas e a atenuar as batalhas políticas. A débâcle do socialismo clássico, após a queda do Muro de Berlim, deu sua contribuição para atenuar o ímpeto ideológico. As antigas clivagens ganharam novos paradigmas. A antiga luta de classes perdeu lugar no novo cenário da sociedade de consumo. A sociedade incorporou novos escopos - dentre eles, a tecnetrônica, reunindo a tecnologia e a eletrônica, cujos eixos apontam para a explosão da economia de serviços; o predomínio de especialistas e técnicos; a emergência do saber teórico como fonte de inovação e de elaboração política da sociedade; a multiplicação dos saberes autônomos; e a maior organicidade dos grupamentos sociais. Os próximos passos se darão na fusão entre inteligência artificial com a biotecnologia. Nessa moldura, decresce a densidade ideológica da competição política e se expande a tecnoburocracia; os grupos sociais aproximam suas convergências; os problemas de natureza técnica se sobrepõem às contundentes questões sociais; e os aparelhos do Estado burocrático monopolizam as informações.

• Arrefecimento partidário – No campo partidário, as consequências são concretas e visíveis, a partir do estiolamento doutrinário, arrefecimento ideológico e consequente declínio dos partidos políticos. Os partidos de massas, que nasceram sob o signo das lutas operárias, mudaram seus paradigmas, modificando-se qualitativamente, moderando atitudes, ajustando- se aos contextos econômicos, integrando-se à expansão econômica, atenuando seu fogo ideológico. O interesse e o desempenho dos aderentes e participantes diminuíram sensivelmente na esteira de um pragmatismo que satisfaz necessidades imediatas, concretas e palpáveis. Muitas siglas absorveram por completo o epíteto cunhado por Otto Kirchheimer: catch-all parties (partidos do “agarra tudo que puderes”). No Brasil, basta ver 33 partidos em funcionamento e perspectiva de serem criados mais 70.

• Declínio dos Parlamentos – No campo parlamentar, a crise solapa as arenas dos Parlamentos, com sensível redução das fun- ções da representação política. Parcela de sua força foi transferida para as tecnoestruturas do Poder Executivo. (No caso brasileiro, basta verificar-se a origem das pautas do Parlamento, grande parte proveniente do Executivo). As mazelas geradas pelo não cumprimento de compromissos fundamentais, por parte do sistema parlamentar, acabam por afastar a sociedade da esfera política, gerando imensos vácuos no meio social.

• A redução do papel do Estado – Grandes mudanças ocorrem nas máquinas governativas. O Estado tende a reduzir seu papel como fonte de direitos e como arena de participação. Serve apenas como instrumento de controle e regulação econômica. Pinço, aqui, reflexão feita por José Murilo de Carvalho a pro- pósito da questão. Ele receia que estejamos diante de um fato: o deslocamento da Nação como principal fonte de identidade coletiva. Quando o Estado tem seu papel diminuído em detri- mento de mecanismos de controle (sob a égide de organismos internacionais), o que se pode esperar é um impacto sobre os direitos políticos dos cidadãos. Por exemplo, na União Europeia, os governos nacionais perdem relevância ante os órgãos burocráticos supracionais, a ponto de os cidadãos se distanciarem cada vez mais de seus representantes reunidos em Bruxelas. Em suma, grandes decisões são tomadas fora do âmbito nacional. No Brasil a expectativa é a de privatização de cerca de 600 empresas estatais.

• A força do mercado – O liberalismo renovado insiste na im- portância do mercado como mecanismo autorregulador da vida econômica e social, e, por consequência, no próprio papel tec- noburocrático do Estado. Sob esse prisma, o cidadão encarna o perfil do consumidor intensamente preocupado com questões materiais e insensível a sentimentos cívicos. Observa-se, então, arrefecimento do ideal coletivo.

• A tecnodemocracia e a organodemocracia – “democracia” dos departamentos criados nos ambientes hierarquizados do trabalho privado – amortecem o calor da sociedade convivial, aquela voltada para os cidadãos e não para a produção. Burocratas, afastados do odor das ruas, não raro procuram fórmulas para expandir impostos e tributos.

• A ascensão da micropolítica – Em decorrência de uma reversão de expectativas, comunidades passam a se inspirar pela moeda do pragmatismo, ou seja, a satisfação de demandas imediatas e reprimidas. A macropolítica é substituída pela micropolítica, a política das pequenas coisas, das necessidades próximas aos conjuntos sociais: a iluminação do bairro, a escola próxima de casa, o alimento barato, o transporte rápido e acessível a todos.

• A organicidade social – Um dos fenômenos mais interessantes da contemporaneidade, com reflexos sobre a moldura institucional, é a organicidade social. Em todas as esferas sociais e em todos os quadrantes, formam-se grupos em torno de entidades que passam a intermediar interesses e a fazer pressão. As organizações não governamentais constituem reflexos da onda organizativa da sociedade. As entidades intermediárias, até para dar respostas ao não atendimento das demandas de natureza polí- tica, começam, elas próprias, a mobilizar a sociedade, atuando junto aos Poderes, fazendo articulação para escolha de representantes e formando bancadas corporativas.

Nos últimos anos, o mundo ganha a agitação das ruas. Cita- se como referência a Primavera Árabe, que inaugura um período de transformações históricas nos rumos da política mundial. Uma onda de protestos e revoluções ocorreu no Oriente Médio e norte do continente africano quando a população foi às ruas para derrubar ditadores ou reivindicar melhores condições sociais de vida. Tudo começou em dezembro de 2010 na Tunísia, com a derrubada do ditador Zine El Abidini Ben Ali. Em seguida, a onda de protestos se arrastou para outros países. No total, entre países que passaram e que ainda estão passando por suas revoluções, somam-se à Tunísia: Líbia, Egito, Argélia, Iêmen, Marrocos, Bahrein, Síria, Jordânia e Omã.

No Brasil, uma onda de protestos tomou as ruas em junho de 2013. A partir de São Paulo, o movimento se expandiu por várias cidades brasileiras, mobilizando milhares de pessoas no que se tornaria, naquele momento, a maior série de manifestações de rua desde o movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor, 21 anos antes. Manifestantes se opunham ao aumento no preço das passagens de ônibus, de R$ 3 para R$ 3,20.

Há duas leituras que se extraem deste fenômeno. A primeira é a de que a organicidade social, dentro de limites restritos, absorve práticas da democracia participativa, a democracia direta. A sociedade opina e clama por demandas em seus núcleos de base. A outra leitura mostra que movimentos setoriais começam a questionar as Cartas nacionais, como nos Estados Unidos, onde as discussões baseadas em gênero, raças, opções sexuais, são condenadas por fragmentar a identidade nacional. A organicidade social emerge como tendência na direção da democratização do poder. Sinaliza o contraponto ao Estado clientelista.

• A personalização do poder A sociedade pós-industrial é, por excelência, a sociedade da espetacularização. No Estado Espetáculo, transparece a figura dos olimpianos da cultura de massa – atores e atrizes do universo das artes e representantes do universo da política. Eles povoam os espaços dos meios de comu- nicação, alcançando, em função de intensa visibilidade e exposição pública, um perfil dual – divino-humanizado. Os meios de comunicação têm interesse em endeusá-los e glorificá-los, quando não em derrubá-los de seu altar no Olimpo da cultura de massas, principalmente nos momentos em que são flagrados em posição de pecado (flagrantes de corrupção). No Brasil, a espetacularização ganhou força no bojo da Operação Lava Jato.

Na moldura de glorificação, sobra espaço para a personalização do poder, que se concentra nos indivíduos. Sérgio Moro, ex-juiz e hoje ministro da Justiça e Segurança Pública é o ícone mais prestigiado do Estado-Espetáculo. 

Na sociedade de massa, o poder escapole das estruturas clássicas de autoridade e converge para pessoas e grupos. O processo é simbólico: para compensar a rigidez e os excessos da burocratização, personaliza-se o poder, expressando a propensão das comunidades para encontrar a figura do pai, do irmão protetor, do grande amigo. Nos dutos da sociedade pós-industrial, ressurge a figura do líder que procura substituir a falta de carisma por populismo.

Desta forma, a personalização do poder abre os espaços do fulanismo/beltranismo na esfera político-partidária. Os partidos se dividem em domínios de A, B e C. E os escopos doutrinários são substituídos por visões estreitas e individualistas.

• A degradação da política – Este fenômeno se espraia pela comunidade mundial. A rede da representação não tem passado no teste de qualidade. Aqui e noutras praças. Expande-se por todos os continentes o sentimento de que a política, além de não corresponder aos anseios das sociedades, não é representada pelos melhores cidadãos, como estatuía o ideário aristotélico.

Governantes das mais diferentes ideologias dão efetiva contribuição à degenerescência da arte de governar, pela qual Saint Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, já expressava, nos meados do século 18, grande desilusão: “Todas as artes produziram maravilhas, menos a arte de governar, que só produziu monstros.” No Brasil, a fraseologia do presidente Bolsonaro acirra ânimos. Nos EUA, o mesmo tipo de expressão desleixada faz parte da maneira de governar de Donald Trump.

O que explica a propensão de homens públicos a assumirem o papel de atores de peças vis, cerimônias vergonhosas e, ainda, abusarem de linguagem chula, incongruente com a posição que ocupam? O que explica a imagem de um governante recebendo pacotes de dinheiro ou a de um parlamentar escondendo propina na cueca? A resposta pode ser esta: a despolitização e a desideologização, que se expandem na sociedade pós-industrial. 

Os mecanismos tradicionais da democracia liberal estão degradados. Não por acaso, o profundo desinteresse das populações pela política ainda se explica pelos baixos níveis de escolaridade e ignorância sobre o papel das instituições, e pelo desinteresse dos políticos em relação às causas sociais. Este fenômeno – a distância entre a esfera pública e a vida privada – se expande de maneira geométrica.

Sensível mudança se processa. Agora, a esfera pública vira arena de interesses. Disputas abertas e intestinas são deflagradas, na esteira de discussões violentas. Bifurca-se o caminho da Res publica com a vereda do negócio privado. O diagnóstico é de Hannah Arendt: “A sociedade burguesa, baseada na competição, no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia.” Em suma, a atividade econômica passou a exercer supremacia sobre a vida pública. Os eleitores se distanciaram de partidos, juntando-se em núcleos ligados ao trabalho e à vida corporativa – sindicatos, associações, movimentos. Essa é a nova face da política.

Se há participação dos aglomerados sociais, ela ocorre dentro das organizações intermediárias. O discurso institucional, levado a efeito por atores individuais e partidos, não faz eco. Mas a estética da política pontua e remanesce nos sistemas cognitivos, emoldurando a policromia e o polimorfismo do modus operandi dos atores em seus palcos: parlamentares se atacando em plenários, recebimento de propina, ovos atirados em autoridades etc.

A GLOBALIZAÇÃO ASSIMÉTRICA 

Mudanças de governos abrem intensa polêmica sobre o fenômeno da globalização, sinalizando a ascensão da tecnocracia ao centro do poder político e contribuindo para mobilizar massas, até então amorfas. Abrigados nas margens do espectro ideológico, grupos de todos os matizes passam a agir como exércitos deste- midos, tomando as ruas, exigindo a saída de governantes açoitados pela crise financeira e a entrada na cena política de figurantes e de propostas inovadoras. O status quo é jogado no colo de “elites” identificadas com mandatários responsáveis pela adoção de modelos ultrapassados.

Espraia-se na Europa uma agitação que clama por mudanças drásticas, tendência que se enxerga na ação de partidos de extrema-direita em muitos países.

A globalização passa a ser questionada. Uma onda nacionalista se forma no interior de muitos sistemas democráticos, O Reino Unido está saindo da União Europeia. Nos EUA, a chama nacionalista começa a se acender com força.

Setores populistas tentam sacudir alguns territórios. O Brasil entra em governo de extrema-direita. A par de explícitos interesses de grupos radicais, que esquentam a polêmica e partem para o embate, o que está em jogo neste momento é o próprio equilíbrio do sistema democrático, a ensejar a instigante questão: os valores da democracia estão morrendo?

Partamos da análise dos efeitos da globalização na vida dos Países. A crítica mais comum é quanto à sensível perda das identidades nacionais. E as nações passaram a ter governos manietados, ou, para usar termo mais leve, controlados pelo mandatário-mor do planeta, o capital internacional. Parcelas expressivas das populações europeias se queixam de que a erosão de suas fronteiras, a eliminação das moedas nacionais e a imposição de uma nova ordem. Não se conformam com o enxerto em suas culturas de sementes estranhas ao solo pátrio e apontam para o esgarçamento da teia de valores que formam o caráter de seus povos. A expressão das comunidades resgata a tese de que as economias continentais diferem bastante para ficarem sob as rédeas de uma única política monetária. As assimetrias, como agora se mostram, eram previsíveis. O discurso é consistente.

O ordenamento do império financeiro – inspirado na proteção dos cofres e no fortalecimento dos PIBs nacionais – acaba tapando os olhos para o conforto social, ainda que as equações produzidas pelos formuladores de plantão tentem demonstrar relação de causa e efeito, ou seja, a estratégia de defender o bem da nação seria chave para abrir as portas do bem-estar geral. O fato é que as democracias vêem suas engrenagens navegarem nas ondas do império financeiro global, entidade que enquadra as esferas políticas e governamentais, centrais e periféricas, de potências ou territórios de pouca expressão.

O painel político da humanidade locupleta-se de figurantes sem o glamour de líderes que marcaram presença na História. Os tempos são outros. Queixumes se ouvem nas praças do mundo: quem lembra a sabedoria e o tino de figuras portentosas como De Gaulle, Churchill e mesmo Margaret Thatcher ou Willy Brandt? As nações dispõem hoje de quadros funcionais de limitado ciclo de vida política. 

Os conflitos do passado, cujo foco era a geopolítica e a expansão de domínios, cedem lugar às lutas internas contra o dragão que devasta as finanças e corrói os Tesouros. É natural, pois, que o perfil do momento seja o treinado nos salões da tecnocracia. Aliás, o termo vem a calhar nestes tempos de insegurança, eis que agrega habilidade (tekné) ao poder (krátos).

Em suma, a democracia dos governos representativos esbarra nas avalanches da contemporaneidade. As nações politicamente avançadas, desde o século XIX, vivem em estado de crise, particularmente na frente da representação social. Os conjuntos representativos desviaram-se de seus papéis.

Não se descartam otimistas previsões sobre a maior influência brasileira no mundo, a partir da posição de “forte agrobusiness”. E ninguém duvida que o patrimônio brasileiro no campo da mega-biodiversidade haverá de conferir grandeza à Nação, abrindo múltiplas possibilidades. Por outro lado, o desenvolvimento sustentável é a linguagem do momento numa infinidade de países. Mas o Brasil, nesse campo, retrocede, podendo até comprometer o acordo entre EU e Mercosul.

Infelizmente, avanços consideráveis têm sido guiados por uma política que nunca conseguiu eliminar a tendência para a gastança pública, o esbanjamento e o desbaratamento de nossas riquezas. Tem sido assim em todas as fases de progresso, incluindo os ciclos da borracha, açúcar, café e algodão. Desde o século passado, o País vive entre saltos e recuos: o primeiro impulso da industrialização dado por Getúlio Vargas; o boom industrial do Sudeste nos anos Juscelino Kubitschek; o “milagre econômico” da ditadura do general Emílio Garrastazu Médici; o salto das telecomunicações nos tempos sisudos do general Ernesto Geisel; os desacertos do período de José Sarney; a abertura estabanada da era Fernando Collor de Melo; a chegada, quase sem fôlego, ao Plano Real de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando os trens foram atrelados à locomotiva; a política de incentivo ao consumo de Lula chegando à maior recessão de nossa história, perpetrada pelo governo Dilma.

Nossa incultura política permanece a despeito das mudanças no mapa populacional e no próprio corpo da representação popular.

Nos últimos 60 anos, a população urbana cresceu, no País, de 31% para 82%, agigantando cidades, expandindo demandas, mas propiciando a continuação de vícios, dentre eles o voto por encomenda. É verdade que mudanças sociais e políticas, a partir das décadas de 30-40, contribuíram para melhorar a participação do povo no processo eleitoral. Mas não se pode negar a imensa distância, hoje muito perceptível, entre a fortaleza econômica e a nossa frágil estrutura política.

Desde o final do século XIX, o Brasil tenta construir, lenta e gradualmente, o altar da Cidadania de sua gente. Em 1881, tinha 12 milhões de habitantes, dos quais poucos eram imunes à ma- nipulação dos governos. Ainda hoje traços de uma população amorfa impregnam nossa identidade, reflexo da carga negativa que paira sobre a fisionomia nacional: a pobreza educacional das massas; a perversa disparidade de renda entre classes; o sistema político resistente às mudanças; o sistema de governo ortodoxo (hiperpresidencialismo de cunho imperial); e a continuidade de mazelas históricas, entre as quais reinam, absolutas, o patrimonialismo e o assistencialismo de caráter paternalista.

AS RESPOSTAS 

O brasileiro, é oportuno ressaltar, ainda não alcançou um grau avançado na escada da Cidadania e, nessa condição, participa do processo em curso. Sob esta perspectiva, podemos compreender as causas para o ressurgimento de novos coronéis da política em pleno século 21, os quais, enveredando pelas trilhas abertas no passado, continuam a manipular “o cidadão precário”, que faz parte do maior contingente nacional, hoje em torno de 150 milhões de eleitores e 210 milhões de habitantes. São os aglome- rados que se aboletam nas periferias congestionadas do Sudeste, região que abriga 44% da população, e os bolsões carentes do Nordeste, onde vivem 28,5% dos brasileiros.

A vassalagem de ontem muda de patrão, mas não de atitude. O drible moral continua a dar as cartas, a despeito da moldura geopolítica e recentes. 

Nesse ponto, chegou a hora de responder as questões que abrem este texto. Bolsonaro chegará ao final do seu mandato? Sim, caso a economia consiga transferir mais um dinheirinho ao bolso das massas. Mas a economia sozinha pode não ser suficiente. As condições da política também devem ser consideradas. O sentimento de indignação que contribuiu para eleger o capitão pode se voltar contra ele. O eleitor brasileiro é mutante. O discurso social pode continuar a exigir avanços. Escândalos envolvendo familiares do presidente- o senador Flávio – poderão se voltar contra a própria figura do presidente.

Observemos, ainda, que a razão ganha espaços no território social. O voto sai do coração para se fixar na cabeça. Prenúncio que o povo deve continuar a exigir avanços. Esse ano que fecha a primeira década do século XXI pode ser também o início de um novo ciclo da ética. 

A sociedade toma consciência de sua força, da capacidade que tem para mudar, pressionar e agir. É a ascensão do conceito de auto-gestão técnica. Trata-se de uma aculturação lenta, porém firme, no sentido do predomínio da razão.

Começamos a experimentar a democracia direta, esta que se expressa quando os cidadãos, por regiões ou dentro de suas categorias profissionais, tomam decisões, escolhem representantes e exigem deles mudanças de comportamento.

Tal democracia social é fruto de um poder ascendente que se consolida pela força das entidades intermediárias, pela organização da sociedade civil. A sociedade se torna cada vez mais policrática, multiplicando os centros de poder dentro do Estado, muitos deles com posições completamente diferentes da visão do Estado.

O resultado dessa combinação é altamente positivo. Estamos, sim, caminhando firmes nessa direção e a prova mais eloquente da tendência se verifica na formidável malha de centros de poder instituídos em todos os âmbitos e níveis.

Estamos percebendo o emergir de uma força ascendente- centrípeta, de baixo para cima e de fora para dentro, que se desenvolve não apenas para reforçar a democracia representativa, inoculando-a com valores da democracia direta, entre os quais as manifestações e decisões dos cidadãos reunidos nas assembleias de suas entidades, mas para se contrapor a uma força descendente-centrífuga, de cima para baixo e dentro para fora, estruturada pelos eixos de uma forte tecnoestrutura.

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche expressa um pensamento muito apropriado para radiografar o estado de espírito da força social emergente: “novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga; como todos os criadores, cansei-me das velhas línguas. Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas”. O sapato esburacado da elite tradicional está sendo paulatinamente abandonado, junto com as línguas de centros tradicionais que, historicamente, têm assumido a função de porta- voz do pensamento nacional.

É de esperar, ainda, que a campanha eleitoral deste ano seja muito polarizada, em razão do interesse dos polos adversários em querer manter questionamentos, mas o bom senso das populações pode travar essa tendência por causa de sua saturação. A economia, com a agenda econômica sob garantia do Parlamento, avançará. Idem para a política, que atribui nota ruim para os representantes. Daí a irrefreável tendência das casas congressuais para arrumar alternativas e projetos que venham atender às demandas sociais.

Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário deverão formar um acordo para atenuar os conflitos que os fragilizam. A impunidade generalizada, que atesta a fragilidade da ação governamental, reforçará o sentimento de que chegou a hora de darmos vitalidade ao conceito de Estado Democrático de Direito. 

Que as eleições de outubro serão uma batalha acirrada, não há dúvida, mas haverá reação social contra impropérios, fake news, denúncias vãs contra adversários, calúnia e difamação, compra de votos, cooptação pelo empreguismo e distribuição de benesses. Veremos um tom mais ponderado sobre a política como exercício democrático da defesa de um ideário social, como missão para salvaguarda dos interesses coletivos.

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político 

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