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O “desalinho” do corpo de uma pessoa e sua identidade de gênero é um dos dogmas principais da ideologia transgênero | Pixabay
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E se alguém tivesse a ideia de transformar em crime o discurso de ódio sem deixar claro de forma objetiva que discurso é esse? Obviamente alguém já teve essa ideia ótima. Vivemos tempos em que patrulhar vocabulário é uma das tarefas preferidas dos que dizem combater crimes de ódio. Aparentemente, não tem sido efetiva em diminuir os crimes de ódio, mas a patrulha temos de elogiar, cresce cada vez mais.

Você já deve ter ouvido sobre punição a discurso de ódio na Europa, mas agora é algo diferente, relacionado à União Europeia em si. Temos, até hoje, legislações individuais dos países. Na Alemanha, por exemplo, é crime fazer propaganda nazista, usar símbolos nazistas, montar associações nazistas, propagar ideias nazistas em associações ou partidos e pregar frases nazistas. Mas isso não vale para toda a União Europeia.

A European Commision abriu uma consulta pública para incluir crimes de ódio e discursos de ódio entre os delitos que são considerados crimes em toda a União Europeia. Os primeiros da categoria são falsificação do Euro, fraudes de cheques e cartões, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, invasão de computadores, corrupção no setor privado e poluição marinha. Estavam na lista: tráfico de órgãos, corrupção nos contratos públicos, discriminação racial e incitação ao ódio racial. Esses dois últimos foram transformados num combo do politicamente correto.

O movimento da Legislação pela Lacração é difundido mundialmente. Fazer leis que não servem para nada ou prejudicam quem deveriam proteger é uma tarefa nobre. Importa é que o marketing seja bom. Preconceito e ódio racial são questões objetivas e com um longo histórico legislativo, por isso há leis sobre o tema no mundo todo. A lacração consiste em pendurar na mesma lei homofobia, misoginia, transfobia, antirreligiosidade e o que mais der para enfiar no balde da "minoria". Essa é a base do que se pretende fazer na União Europeia.

No Brasil temos uma experiência parecida. A nossa lei do racismo é tão cheia de frases bonitas que esqueceram de fazer alguma que funcionasse. Vai que estraga a poesia. Ela fica sensacional para citar em entrevistas daquelas que parecem revolucionárias. Tem trechos lindos para recitar e emendar um "racistas, fascistas, não passarão!!!". Até arrepiei aqui. Ocorre que jamais uma pessoa foi condenada por essa lei no Brasil. Acabam todos condenados pela lei que funciona só que é mais feinha, a da injúria racial.

Avalia se tivessem feito uma lei feinha que funciona para o racismo ou ódio racial. Ia ser horrível lacrar nas entrevistas, deixa como está. Para melhorar o angu, já na redação inicial penduraram na mesma lei o preconceito religioso. Agora, recentemente, o STF pendurou também a homofobia. Foi uma comemoração geral da galera, só que eu ainda não entendi bem. Por mim, quero que pendurem a misoginia, a parte que me toca, em outra lei. Qualquer uma que funcione já me contenta.

Caso passe, a nova lei de discurso de ódio e incitação a crimes de ódio da União Europeia funcionará bem para o bate-boca e confusão. Resolveram colocar como princípio a "identidade de gênero", o que na prática anula os direitos das mulheres, gays e lésbicas porque eles têm base nas diferenças sexuais e características biológicas. O melhor é que o documento não especifica o que entende por "identidade de gênero", então depende do juiz dizer o que seria crime.

Há uma diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Comecemos pela ciência. Orientação sexual é a capacidade de atração sexual e vivência afetiva com um determinado sexo. Mulher que gosta de homem, homem que gosta de mulher, mulher que gosta de mulher e homem que gosta de homem. Em muitos países há grupos que são violentos com pessoas homossexuais e há uma necessidade de reverter essa tendência. Em diversos países há uma série de violências que ainda são sofridas majoritariamente por mulheres e precisam ser contidas.

Ocorre que tudo isso é baseado na biologia. Os conceitos de direitos das mulheres, lésbicas e gays foram todos construídos historicamente sob a lógica do sexo biológico. Homens não agridem mulheres só porque são mais fracas fisicamente, mas porque temos uma história milenar que justificou agressões. As garantias de direitos para casais homossexuais foram construídas legalmente com base na diferença biológica, na possibilidade de união entre pessoas com o mesmo sexo biológico.

Identidade de gênero não é algo definido no documento que pretende transformar em crime discursos de ódio e ações de ódio que têm como base a identidade de gênero. Assume-se que serão utilizados os Princípios de Yogyakarta, acordados em 2016. De acordo com eles, "a identidade de gênero é entendida como se referindo à experiência interna e individual profundamente sentida de cada pessoa de gênero, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o sentido pessoal do corpo (que pode envolver, se escolhido livremente, modificação corporal aparência ou função por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, incluindo vestimenta, fala e maneirismos".  

Funciona muito bem para lacrar enfiar identidade de gênero no meio de direitos das mulheres, gays e lésbicas. O desafio da União Europeia será saber como isso funciona legalmente. Toda a legislação de proteção a homossexuais e mulheres tem como base a biologia, o sexo biológico e o contexto histórico que o envolve. Ela será eficiente se você mudar a premissa depois de feitas as leis? Especialistas têm duas preocupações: censura e perda de direitos das mulheres.

O documento de consulta pública da União Europeia mistura diversas vezes sexo e identidade de gênero. Muita gente não acredita em disforia de gênero, que é nascer com um sexo biológico mas se acreditar com outro. A ciência acredita e os anos 1980 também. Está aí Roberta Close que não nos deixa mentir. Legalmente, a questão é outra. Qual seria a premissa legal para se falar em identidade de gênero e disforia de gênero? Não está claro se há algum diagnóstico ou se basta a pessoa declarar. Sendo declaratório, não é arriscado atrelar crimes às declarações dos interessados? O documento não esclarece isso.

Leis são decorrentes da realidade. O documento prioriza uma das preocupações dos países sobre as outras. "A proteção legal varia significativamente na UE. Atualmente, 21 Estados Membros incluem expressamente a orientação sexual no discurso de ódio e/ou na legislação criminal como um fator agravante, enquanto 12 entre eles também incluem a identidade de gênero e 2 cobrem características sexuais.", diz o site de consulta da União Europeia.

Mudar a premissa de sexo biológico para identidade de gênero e continuar usando a mesma lei traz questões práticas. Considere um casal de lésbicas, que sempre foram lésbicas porque nascidas mulheres, com uma série de direitos e proteções porque são alvos de discriminação e ódio em um país. Se uma delas se identifica com o gênero masculino, então deixam de ser lésbicas, passam a ser um entediante casal heterossexual e perdem todas as proteções criadas justamente porque há a necessidade? Não deveria nem perguntar isso para não estragar a lacração, mas sou chata.

Qual conceito sobrepõe qual? O sexo biológico continuará se sobreponto como baliza legal para garantir direitos e proteções? Ou se adotará o conceito de identidade de gênero? Nos Princípios de Yogyakarta fica bem claro que a identidade de gênero se sobrepõe ao sexo biológico. Só não fica claro como se define isso. Houve um caso na Argentina em que um funcionário público casado com a mesma mulher há décadas disse ter se descoberto mulher e conseguiu oficializar sem mudar nem o nome. O critério é puramente declaratório. Depois, pediu aposentadoria 5 anos antes. O governo não deu, mas conseguiu na Justiça.

Obviamente trata-se de um deboche completo da lei que existe para casos sérios e reais. Ocorre que, se o critério legal é meramente declaratório, a lei abre um precedente para todo tipo de deboche e oportunismo, não fica restrita às pessoas em quem se pensou quando a lei foi feita. Aqui estamos falando de dinheiro, aposentadoria mais cedo. E se passar isso para crime, para definir ou não o que é um crime de ódio ou discurso de ódio? Como vai ficar essa história?

A madre superiora do colégio passionista onde estudei ficaria muito orgulhosa ao ver como a turma da lacração despreza a sexualidade, os impulsos sexuais e fala de relacionamento como algo apartado da atração sexual. Certeza que a irmã Therezinha não perderia uma oportunidade de esfregar na minha cara como essa turma aprendeu a sublimar fantasias sexuais e excitação. Nem a irmã Therezinha ousou dizer que a intimidade e o prazer sexual vêm da personalidade e pouco importa que órgão sexual entrará em cena na hora H. Amor espiritual, né?

A briga da militância trans com as feministas é nessa seara. As mulheres trans, mesmo as que continuam tendo órgão sexual masculino, alegam que verdadeiras lésbicas não ligam para um órgão sexual masculino na relação. E é evidente que as lésbicas não só ligam como querem distância. Vi também, em vários grupos lacradores e homofóbicos, a defesa de que homem que se relaciona com mulher trans é necessariamente hetero, mesmo que sua parceira tenha o órgão sexual masculino. A militância lacradora diz isso para lacrar. A militância homofóbica diz isso para acalmar os que estão aflitos com a própria homossexualidade, explicando que gostar do órgão sexual masculino não faz de ninguém gay.

As feministas europeias têm 4 perguntas não respondidas pelo documento:
- Como criminalizar as atividades com base na “identidade de gênero”, uma crença auto-sustentada, em comparação com o sexo, que é biológico e real?
- Como podem as partes interessadas, como os cidadãos da UE, ser consultadas sobre esta iniciativa se não existe uma definição adequada para “identidade de género”?
- O que significa “características sexuais”? As características sexuais podem ser explicadas sem referência ao sexo? Significa roupas ou comportamentos estereotipados quanto ao sexo, que segundo a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) ou a Convenção de Istambul, os Estados Partes se comprometem a remover?
- Como podem os Estados signatários dessas convenções legislar com base nas características sexuais?

Suponhamos que uma mulher lésbica não queira manter relações sexuais com uma mulher trans porque não gosta do órgão sexual masculino. As reações dela são discriminação, são discurso de ódio? Ela pode ser punida criminalmente a depender do que disser sobre isso? Aparentemente, ficará a cargo dos juízes, já que a proposta legal não esclarece. O interessante é que esse tipo de caso será elevado legalmente ao mesmo patamar do antissemitismo.

Existe muita injustiça decorrente de preconceito no mundo. Imaginar que todas elas possam ser resolvidas com um mesmo remédio legal parece ingênuo. Não há precedente de sucesso com a medida. Outro ponto é o controle do vocabulário como projeto-chave. Sabe-se que violência começa na palavra e deriva para ação, mas deixar pontas soltas para cada um decidir o que pode ou não ser ódio e ter a cadeia como consequência não seria temerário? Seria mais um caso em que a ação dos justiceiros sociais pode prejudicar justamene quem eles dizem proteger. Até parece que se importam.

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