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Primeiramente é preciso esclarecer de qual vacina contra o COVID eu estou falando: é daquela que todos nós sonhamos que um dia exista. Por enquanto, infelizmente, na vida real não existe vacina contra o coronavírus e nem sabemos se ou quando existirá. Seguimos torcendo pelos cientistas e descobrindo novas formas de conviver com o vírus, tratar os doentes e curar as feridas da alma. O debate público tem sido conduzido de uma maneira que realmente dá a impressão de já terem descoberto uma vacina.

Todas as decisões sobre vacinas são técnicas, com base em parâmetros científicos objetivos. E quem toma essas decisões segundo a legislação brasileira? A Anvisa e ponto final. Mas é claro que os nossos políticos não iam perder a oportunidade de tirar uma casquinha do momento mais dramático da vida do país.

Meu colega Wilson Lima, repórter da Gazeta do Povo em Brasília, explicou detalhadamente cada uma das 5 ações que já tramitam no Supremo Tribunal Federal sobre a vacina que ainda não existe. Todas elas são de autoria dos partidos políticos. Quantas vezes você já viu o Congresso Nacional reclamar do ativismo judicial do Supremo? Pois é, os próprios políticos agora subiram um degrau e estão recorrendo ao Judiciário para pacificar assuntos que só existem na intenção.

O mais impressionante da política brasileira é a aparente regressão de idade mental. As declarações de homens grisalhos parecem-se, cada vez mais, com o que costumávamos esperar da turma do fundão da 5a série C. O que os políticos postam em redes sociais cada vez mais se parece com o que a gente escrevia para desafetos no primário e jogava em aviõezinhos de papel. O que os partidos apresentam como demanda ao STF, por sua vez, está cada vez mais parecido com o que se espera de uma postagem em rede social.

Se há alguma vantagem em envelhecer, é aumentar o espaço amostral. Há muitos anos, quando os processos ainda eram de papel, surgiu a moda de colocar, além da argumentação e das provas, reportagens investigativas para dar mais contundência ou contexto à acusação. Depois, no natural processo de esculhambação a que nos dedicamos com afinco, passaram a surgir processos só com as reportagens. Agora, o pessoal vai ao STF sem ter nem reportagem nem documento, com a declaração de uma autoridade na mão e uma ideia na cabeça.

Não creio que nossos políticos sejam incompetentes, muito pelo contrário, são competentes demais. As ações no STF servem de marketing pago pelo povo e isso diz quase nada sobre os políticos, mas tudo sobre nós: somos tão viciados no Estado-babá que judicializar sonhos serve de marketing.

Há uma Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental conjunta entre 5 partidos com base naquele teatro protagonizado entre o presidente Bolsonaro, o governador de São Paulo e o ministro da Saúde nas redes sociais. Quem decide a parte técnica é a Anvisa, não o ministro. Mas ele, em reunião com os governadores, garantiu que o governo federal pagaria pelo plano de São Paulo para tornar o Instituto Butantã um produtor de vacinas caso o laboratório Sinovac consiga produzir algo que imunize contra COVID.

O combinado é comprar 46 milhões de doses e ter, do laboratório Sinovac, transferência de tecnologia para produzir a vacina aqui. O líquido vêm em contêineres do exterior e é ainda algo na fase de testes, não há garantia de que essa fórmula funcione. Daí, o presidente declarou que não iria comprar a "vacina chinesa". Ocorre que ele próprio empenhou R$ 1,9 bi para trazer vacinas em teste da China para um projeto semelhante na FioCruz, no Rio de Janeiro, em parceria com a Universidade de Oxford. Resultado: PT, PSOL, PC do B, PSB e Cidadania foram ao STF pedindo garantias de que a União possa adquirir todas as vacinas aprovadas pela Anvisa sem “valorações estranhas e contrárias aos parâmetros e princípios constitucionais”.

Objetivamente, as vacinas nem existem, portanto não há aprovação nem liberação ou veto de nenhuma compra. A FioCruz é um órgão do Governo Federal, que empenhou o dinheiro para uma pesquisa de viabilidade de vacina. O Instituto Butantã é um órgão do Governo do Estado de São Paulo, que já fretou até o avião para trazer os insumos da pesquisa sobre viabilidade de vacina. Nada impede que haja apoio entre União e Estado, mas isso não é papel do Judiciário, é trabalho dos políticos.

Outras duas ações esbarram no mesmo problema. Os políticos, que são parte do Estado, recorrem ao Estado-babá para decidir e dar ordem sobre o que eles próprios teriam de dar jeito. O PDT quer tornar a vacina que não existe obrigatória. O PTB, base de apoio do governo, entrou no STF contra o decreto do presidente Bolsonaro que prevê vacinação obrigatória caso necessário.

Há ainda uma outra ação, da Rede Sustentabilidade, que tenta forçar o STF a fazer o que os políticos tinham o dever de fazer e não fizeram: cobrar um plano concreto para enfrentamento da pandemia do Governo Federal. O presidente Jair Bolsonaro jamais apresentou um plano, os governadores aproveitaram-se politicamente da situação e saíram no cada um por si, o Congresso aproveitou para emplacar a ascensão do centrão e também não cobrou.

Tivemos muita turbulência política nesse período e, até hoje, ninguém sabe claramente quanto dinheiro temos para comprar vacina por ano, se e quando teremos caso ela surja, o que será cortado se não tivermos, qual o critério para assinar protocolos internacionais de intenção de compras e como está sendo estruturada a análise de pedidos internacionais de registros de vacinas, caso eles ocorram. Não sei para você, mas para mim isso é mais importante do que quem xinga o outro de Nhonho ou da mais nova performance tiozão do pavê do presidente.

Estamos confundindo marketing pessoal custeado por dinheiro público com trabalho. Meu colega Olavo Soares, repórter em Brasília, foi especialmente feliz em sua primeira reportagem como pai: mostrou quais pedidos judiciais feitos por deputados e partidos são incumbências do Congresso Nacional. Ou seja, eles não fazem o trabalho deles, passam para o Judiciário e a gente fica aqui batendo palminha para live e post lacrador.

Não podemos, no entanto, perder de vista que o melhor do Brasil é o brasileiro. Hoje, o Superior Tribunal de Justiça se dedicou a julgar duas ações sobre o mesmo tema que não existe, propostos por cidadãos do meu glorioso estado de São Paulo, locomotiva da nação brasileira. Políticos, tremei. Eram dois habeas corpus contra vacina obrigatória feitos por cidadãos de São José do Rio Preto.

Muitos advogados já assustaram por aqui. Ficaram alarmados pensando que já haviam inventado a vacina e ela havia ficado presa em Curitiba, então dois bravos paulistas estavam tentando libertar. Infelizmente, não era o caso. É uma particularidade técnica do nosso direito: qualquer cidadão pode entrar com habeas corpus em órgãos superiores sem precisar de advogado, como se fosse uma ação nos tribunais de "pequenas causas". Os dois cidadãos paulistas, também fundamentados em palavras de político sobre a vacina que ainda não existe queriam um salvo conduto para não ter de se vacinar.

Diante do pedido de não ser obrigado a tomar a vacina que ainda não existe, o ministro Og Fernandes, do STJ, respondeu: "não há informação nos autos a respeito do momento em que a mencionada vacina será, em larga escala, colocada à disposição da população, tampouco foram especificadas quais serão as sanções ou restrições aplicadas pelo Poder Público a quem deixar de atender ao chamamento para vacinação." O brasileiro tem mesmo de ser estudado pela NASA.

Nós nos acostumamos tanto ao Estado-babá que nenhum adulto acha que precisa fazer mais nada se um juiz não mandar. Chegamos, na guerra da vacina que ainda nem existe, a um nível de fuga da realidade que não podemos continuar alimentando. Os políticos estão investindo em não trabalhar e fazer ações de marketing com ações judiciais que só existem porque eles não trabalharam devido a uma única razão: dá retorno.

As discussões sobre uma vacina que ainda nem foi descoberta e que, quando for, pode colocar um ponto final nesse pesadelo que temos vivido já são uma catástrofe. A lógica de explorar o medo e a ansiedade para se vender como solução, o famoso "criar dificuldade para vender facilidade" nos coloca em exaustão psicológica coletiva. Pesquisa feita pelo poder 360 mostra que o apoio a uma eventual vacina contra o COVID caiu de 82% para 63% de julho para cá. Quem ganha com isso? Não somos nós.

Precisamos nos nutrir mais de realidade e ter olho muito atento a quem ganha em confusão. Numa questão profissional bem delicada, coincidentemente trabalhando com vacinação, em Angola, um político experiente me deu uma lição que nunca mais esqueci. Só há dois tipos de liderança, as que ganham na guerra e as que ganham na paz. Quem ganha na guerra precisa produzir cada vez mais caos, quem ganha na paz pode assentar bases para construir um futuro. Passe a reparar nisso. Espero que para você, nesses tempos tão turbulentos, faça tanta diferença quanto fez para mim.

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