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Vamos derrubar estátuas?
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Nos anos 90, em São Paulo, fazia um sucesso estrondoso o esquete de rádio "Sobrinhos do Ataíde". Havia um personagem que todos nós conhecíamos naqueles anos imediatamente após a abertura da economia no governo Collor, o Marquinho. "Xiiii, Marquinho" era gíria para dizer que algo deu errado e o personagem sempre garantia que, fosse nos Estados Unidos ou feito pelos americanos, daria certo.

A porção gourmet da elite paulistana não gosta de admitir, mas é coalhada de Marquinhos. E uma moda muito útil tem sido a importação de protestos. Quando a vida não dá muitos motivos para protestar, é conveniente ver uma coisa legal na internet, fingir que se importa e abraçar a causa. A moda agora é derrubar estátuas históricas, só que uma coisa muito diferente do proposto pelos ministros de Bolsonaro.

Em 5 de dezembro do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mandou retirar uma estátua de Carlos Lamarca de um parque em Cajati, interior de São Paulo. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, sinalizou que gostaria de fazer o mesmo com um mural de Paulo Freire, no ministério. Agora, progressistas que se consideram monopolistas da virtude resolveram aderir a esse movimento, mas juram que é uma coisa totalmente diferente. A gente acredita, né?

A história toda começou em um protesto do #BlackLivesMatter em Antuérpia, na Bélgica, que obviamente deve ser copiado por tratar-se de lugar muito chique. Os manifestantes vandalizaram uma estátua do rei Leopoldo II, que promoveu uma carnificina na colonização do Congo, com chagas que até hoje aterrorizam o país. A área chegou a ser propriedade particular dele e as torturas incluíam até amputações em crianças. Ficou decidido tirar a estátua do parque público, onde se entendeu que ficam os personagens que devem ser homenageados, fazer uma restauração e manter a peça em um museu, onde se conta a história.

Como a notícia hoje corre mundialmente, diversas outras cidades começaram a raciocinar sobre seus monumentos históricos. Acredito que alguns tenham passado despercebidos por muito tempo e o questionamento é novo e válido. Como tudo feito por multidões, isso também descambou e já tem montes de vídeos de gente derrubando estátua mundo afora. Como nós vamos sobreviver sem copiar isso também?

Qual é exatamente o movimento que queremos copiar? Apontar quais personagens históricos que compactuaram com a escravidão têm monumentos para parecer que somos boas pessoas. É muito melhor do que a chatice de precisar realmente dar atenção ao sofrimento e às demandas de quem sofre com preconceito.

Já surgiu uma lista enorme de monumentos que deveriam ser derrubados no Brasil. Todos os de Duque de Caxias, qualquer um que mostre um bandeirante e, se brincar, vai respingar até em Tiradentes a história. Qual o critério? Não fica muito claro, parece ser mesmo espernear em rede social tentando sinalizar virtude apontando os defeitos de caráter dos nossos personagens históricos. Fosse proibido fazer estátua de quem tem defeito de caráter, não sobrava nem estátua de santo no Vaticano.

O jornalista Laurentino Gomes, autor dos livros mais comentados sobre a nossa história, colocou-se contra a derrubada de estátuas e atraiu a ira de muita gente desesperada por parecer boazinha e sem preconceitos, muito diferente desses nossos antepassados terríveis.

De acordo com os critérios dos justiceiros sociais de internet, nem a Irmã Dulce qualificaria para ter uma estátua no Brasil. Somente as pessoas que jamais tiveram uma mácula na vida, como eles próprios, os progressistas, monopolistas da virtude, poderiam virar estátuas. E entenda-se, de uma vez por todas, que isso é muito diferente do que fez o ministro Ricardo Salles com a estátua de Lamarca ou do que gostaria de fazer Abraham Weintraub com o mosaico de Paulo Freire. Qual a diferença? Pois é.

Sequestrar pautas legítimas e usá-las como recurso para sinalizar virtude é uma tática cada vez mais comum na era dos likes e só serve para esculhambar discussões sérias. A questão das estátuas é séria e precisa ser discutida. Não se acha uma estátua de Stálin ou de Hitler onde foram originalmente colocadas. Por quê? Porque foram feitos debates sérios e profundos sobre como preservar a memória do povo sem desrespeitar a memória dos mártires. E não há solução pronta, fácil nem rápida para isso.

Cada fase extremista e violenta da história de um povo fará heróis que gostam de ostentar superioridade e mártires que merecem ser lembrados. Como equacionar esses dois valores respeitando a nação mais do que autoridades passageiras. Na Hungria, optou-se por reunir em um parque, o Memento Park, todas as estátuas e símbolos do período de ditadura comunista.

Seria essa uma solução para o Brasil? Ou levar para museus? Deixar onde estão? Vale lembrar que não temos ainda nem solução para conter a pandemia, coisa que o Paraguai já conseguiu equacionar, então talvez seja um caminho mais complicado do que julgam os tuiteiros.

Qualquer que seja a solução, ela tem de ser para o povo, para a valorização da nossa história, da nossa cultura e do sofrimento do cidadão comum que construiu o Brasil. E esse processo, infelizmente para muitos, inclui ouvir o que as pessoas querem e não apenas dizer a elas o que devem querer.

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