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Você faz parte do centrão da sociedade brasileira?
| Foto: Pedro França/Agência Senado

Não houvesse um "centrão" na sociedade brasileira, não haveria o centrão do Congresso Nacional. É simples assim. No sistema democrático em que vivemos, podemos até discutir abusos, exageros e manipulações, mas é certo que ninguém tomou o poder à força. Os que estão no poder hoje, gostemos ou não, chegaram ali porque parte da sociedade crê que eles são seus representantes. E todos fazemos parte da sociedade.

Se você pensar nas pessoas que conhece, é muito claro quem representa a direita, a esquerda ou o centro. Mas e o centrão? Quem você conhece que tem cara de centrão? Difícil dizer, mas tenho uma dica: as pessoas não são o que pregam, são o que toleram.

A expressão "centrão", que parece nova para muitos na política, ficou consolidada nesta fase da nossa democracia já na Assembleia Nacional Constituinte, quando o bloco que se autodenominou centrão servia como algodão entre os cristais nas brigas ideológicas entre direita e esquerda. Na época, havia chagas recentes e o papel do centrão foi fundamental para tornar possível a Constituição de 1988.

Praticamente todas as figuras importantes do centrão de hoje já faziam parte do bloco há 30 anos e agora ele é recheado por filhos, netos e apadrinhados do grupo original. (Se tiver curiosidade de ouvir um arquivo histórico, aqui há alguns de Roberto Jefferson.) Num primeiro momento, o centrão parecia ter como principal característica o pragmatismo político. Mais recentemente, a sociedade brasileira carimbou fisiologismo na testa do grupo que foi base de apoio de todos os governos.

Qual é realmente a principal característica do centrão? Fisiologismo, corrupção, adesismo, ausência de princípios, oportunismo, já ouvi de tudo e discordo. A principal característica é tolerar o intolerável por conveniência - e aí temos uma marca da cultura brasileira.

Obviamente o nível de esculacho moral que se tolera no ambiente político é muito além do que ocorre no dia-a-dia do cidadão comum, mas lavar as mãos diante da injustiça e da imoralidade é uma característica do centrão que faz parte da nossa vida cotidiana. "O que me preocupa nem é o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que me preocupa é o silêncio dos bons", disse Martin Luther King.

Há situações em que não temos condições de reagir nem de impedir a injustiça e a imoralidade, mas temos a tradição de ser condescendentes com quem tem condições e se cala por conveniência. Esse é o centrão, tão forte na nossa sociedade quanto no nosso Congresso Nacional.

O centrão não deixará de ter força na política enquanto sua lógica imoral e irresponsável de atuação for aceita pela sociedade. Não são comparáveis os escândalos dos quais o centrão se torna cúmplice com silêncio e omissão àqueles deslizes do cotidiano que o cidadão comum opta por fingir que não viu, mesmo sabendo que alguém será prejudicado. Também não é comparável o poder de uma liderança política e o que nós temos. Tudo o que aceitamos na sociedade terá seu superlativo representado na política.

Em troca de pequenos poderes, favorecimento de familiares e conhecidos, vantagens financeiras e status, o centrão cala diante das maiores transgressões de quem estiver no poder. Adota o discurso majoritário, não importa se de direita ou de esquerda, brada como se realmente defendesse aquela ideia e faz da omissão a tônica do comportamento. É contra a corrupção mas, se obtiver vantagem, fica bem quietinho e vira amigo do corrupto.

Com toda razão o cidadão se escandaliza com isso, mas precisa lembrar que figuras assim jamais chegariam ao poder se o método de escalada delas não fosse largamente aceito pela sociedade. O hipócrita, que prega uma coisa e age de outra forma, que cala diante de injustiças por pequenas vantagens tem caminho livre no Brasil. Jamais será cobrado socialmente ou moralmente pela imundície da sua atuação se tiver sucesso. Os mais bem sucedidos estão no poder graças a nós.

Toleramos no dia-a-dia pessoas que calam diante dos piores tipos de ação humana na sociedade e nos negócios. Pai que abandona filho, chefe que pratica assédio, funcionário que desvia dinheiro, profissional que rouba ideia do outro, tudo isso é tolerado desde que seja bem sucedido. Quem reclama será estigmatizado como "criador de problemas" e provavelmente haverá uma legião de difamadores disposta a inventar fatos que dêem proteção ao delinquente bem sucedido.

O principal problema da nossa sociedade nem é a tolerância com o irresponsável, o cruel, o abusador, o sádico. A esses a reputação pouco interessa. Nossa chaga é a aceitação social de quem cala diante da ação dos maus, como se não fossem cúmplices e igualmente imorais.

Todos nós conhecemos inúmeros casos de alguém que tentou denunciar algo muito errado e sofreu consequências e perseguições terríveis. Seja desvio de dinheiro numa empresa, professor que assedia alunas, empresa que acoberta assédio, político corrupto, propostas indecentes, pedidos de propina, aposto que cada um de vocês conhece quem resolveu se insurgir e pagou uma conta caríssima enquanto via o delinquente triunfar. Isso não ocorre porque o delinquente é forte, mas porque somos tolerantes com os imundos que calam diante da delinquência mesmo podendo agir.

Somos um país adolescente que crê no Estado-babá para resolver todos os seus problemas. Ah, a empresa acoberta assédio sexual? Vá ao Judiciário. Fulano desviou dinheiro? Vá ao Judiciário. Fulano está difamando alguém? Vá ao Judiciário. O Pôncio Pilatos do século XXI lava as mãos mandando os outros prestarem queixa ao poder público e finge que, sendo adulto, não é cúmplice quando cala. Essa é a lógica do centrão, ensinamos a eles e eles, no poder, querem que este seja o nosso normal.

De certa forma, tem sido. Não fosse, os que calam diante de imoralidade e injustiça jamais chegariam nem a níveis médios de poder ou sucesso, seriam corrigidos logo no início da caminhada profissional. Mas, ao contrário, a falta de honra e princípios rende e muitos acabam até abandonando aquilo em que acreditavam em nome da sobrevivência social e profissional.

Eu acredito que o brasileiro repudia a lógica do centrão na política, mas só se verá livre dele quando agir para eliminar a vantagem de ser centrão na sociedade. Tratamos como pessoas honradas aqueles que calam diante das piores imoralidades, mesmo sabendo que inocentes estão pagando, porque é mais conveniente em algum momento. Todos têm o direito de fazer isso, mas têm de sentir o peso da decisão de trocar a honra e a decência por vantagem social, profissional ou financeira.

Damos muita importância ao que as pessoas pregam, ao que dizem, ao que defendem e é assim que nos enfiamos nesse atoleiro moral em que estamos agora. Pouco importa o que alguém diz, importa o que tolera. Não mudaremos fazendo as mesmas coisas e esperando resultados diferentes.

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