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YouTube diz que vai banir assédio: você acredita?
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As pessoas acham que encontram os conteúdos que buscam no YouTube. É exatamente em cima dessa ilusão que funciona o motor da gigante dos vídeos. Ninguém acha o que procura, acha o que a plataforma considera que manterá a pessoa online durante mais tempo. A avaliação é feita com os dados coletados em outras utilizações, outras plataformas e até pelo microfone do seu celular, cujo uso é liberado para o Google.

Com o que a gente gasta mais tempo? Com aquilo que causa ódio, revolta, ansiedade. Nos empenhamos quando acreditamos que nossa ação imediata é necessária para combater algo que consideramos profundamente injusto, errado ou imoral. Todas as redes sociais operam segundo essa lógica.

Outro dia estava procurando um vídeo do rabino Henry Sobel e, como próximos vídeos, me foram sugeridos outros que nenhuma relação tinham com a minha busca nem eram de canais que eu assisto. Um punhado de YouTubbers de quem eu já ouvi falar porque propagam mentiras e teorias conspiratórias na internet. Por que o YouTube os privilegia? Poderia privilegiar, por exemplo, informações reais sobre o rabino ou preceitos da moral judaica.

Nesse contexto, o que vale mais a pena fazer como criador do YouTube? Polêmica. Pode ser criar mentiras que difamem alguém, arrumar briga com outro YouTubber, espalhar notícias falsas de políticos.

Imagine que façam um vídeo falando mentiras sobre você, seus filhos, seu cônjuge. E que esse vídeo seja colocado num canal com milhões de inscritos e depois repassado pelas demais mídias sociais, com trechos recortados e distribuídos por whatsapp. O que você faria? Há quem entre na Justiça, que não tirará o vídeo do ar porque é "liberdade de expressão".

A pessoa será então aconselhada a processar o autor do vídeo por danos morais, calúnia, injúria ou difamação. O YouTube permite que a plataforma seja usada de forma anônima, permite ainda que a conta utilizada para recebimento da monetização seja em nome de qualquer pessoa, não necessariamente o responsável pelo conteúdo. Enquanto os anos vão se passando na tentativa de identificação, o material continua se espalhando e a pessoa atingida vai contabilizando perdas profissionais, sociais e sofrimento familiar.

Pense que um outro YouTubber, de olho nos bons acessos do vídeo difamatório, resolva pegar carona no assunto. Está formada uma bola de neve da difamação que o Ministério Público e o Poder Judiciário brasileiro não estão tecnicamente preparados nem para compreender, quanto mais para combater. Há, em todo o mundo, pessoas que tiveram prejuízos financeiros, carreiras arruinadas, famílias desfeitas, filhos com problemas psicológicos devido a vídeos com os quais o YouTube engorda o caixa.

Aqui não se trata de se "sentir ofendido" por um vídeo ou um comentário, mas por sofrer com as consequências objetivas de perseguição virtual sistemática, que rende abalos profissionais e nas relações sociais e familiares.

O YouTube anunciou ontem em inglês e hoje em português que aprimorou sua política contra o assédio, que é a perseguição sistemática e continuada utilizando a plataforma. Há quem diga que é liberdade de expressão fazer isso. Continua sendo. Adulto faz o que dá na telha e arca com as consequências. A lei não proíbe nem matar, as pessoas têm essa liberdade e arcam com as consequências. As principais mudanças serão:

1. Mais firmeza no combate a ameaças e ataques pessoais
O YouTube sempre tirou do ar vídeos que contenham ameaças explícitas a pessoas, que revelem informações pessoais confidenciais ou incentivem o ataque a terceiros. De agora em diante essas políticas serão ainda mais severas: estão proibidas não apenas ameaças explícitas, mas também veladas ou implícitas. Isso inclui conteúdo que incite violência contra alguém e linguagem que sugira a possibilidade de violência física. Ninguém deve ser vítima de assédio na forma de sugestão de violência.

2. Consequências do padrão de comportamento assediador
Nessas conversas, os criadores disseram que o assédio, com frequência, segue um padrão de comportamentos repetitivos em diversos vídeos e comentários – mesmo que um vídeo isolado não desrespeite a política. Para enfrentar essa questão, estamos reforçando a política do Programa para Parceiros do YouTube (YPP, na sigla em inglês). O objetivo é ser ainda mais rigorosos com comportamentos de assédio, garantindo que apenas criadores confiáveis sejam beneficiados. Canais que chegarem perto do limite tolerável repetidas vezes serão suspensos do YPP, e isso vai impedi-los de ganhar dinheiro com conteúdo veiculado no YouTube. Também poderemos retirar conteúdo do ar em canais que assediem várias vezes uma pessoa. Se o comportamento prosseguir, as medidas serão ainda mais rigorosas: poderemos 
emitir advertências e até encerrar o canal.

3. Comentários tóxicos
Sabemos que os comentários são um importante canal de contato entre fãs e criadores. Mesmo assim, muita gente vem afirmando que há práticas de assédio nessas manifestações, contra criadores e usuários. Esse comportamento não atinge apenas a pessoa a quem se dirigem as agressões: ele pode ter um impacto negativo sobre toda a interação no canal.
Para enfrentar o problema, o YouTube apaga comentários que contenham violações explícitas às políticas da plataforma. Só 
no terceiro trimestre de 2019, apagamos mais de 16 milhões de comentários especificamente por causa de assédio. As atualizações que descrevemos aqui também serão aplicadas a comentários, e por isso esse número deve aumentar ao longo dos próximos trimestres.

Após receber o comunicado do YouTube, fiz um experimento: procurei vídeos que são objetos de ações judiciais, alguns difamatórios e outros com ameaças a diferentes pessoas. Todos são de canais que praticamente vivem desse tipo de conteúdo. Os 5 continuam no ar e os canais aparentemente continuam produzindo.

Em seguida, acessei o YouTube com a minha conta e fui diretamente à página inicial, sem fazer nenhuma busca. Na primeira linha de sugestões, o próprio YouTube me recomendou um vídeo difamatório que, segundo o comunicado, é desses que não estão mais no ar porque violam as políticas de assédio.

Outra sugestão, também na primeira linha, é um vídeo falando da aparição de um demônio no velório do Gugu, conteúdo que o YouTube deve julgar informativo e de grande qualidade.

Também é promovido um canal que simula ser jornalístico pela estética e pelo nome, mas apenas coleta vídeos de outros canais e divulga com títulos sensacionalistas - algumas vezes esses títulos não tem nada a ver com o conteúdo. Por que o YouTube considera que eu gostaria de ver esse vídeo?

Outro vídeo sugerido é o de uma defesa da terra plana, coisa que o YouTube deve provavelmente considerar muito interessante e válida. Não duvido que muitos cliquem, é oferecido na primeira página mesmo a quem não acompanha esses canais. Os diálogos nos comentários são sempre abaixo da cintura, uma pérola.

Não sei como adjetivar o fato de o comunicado do YouTube não mencionar uma vez só a palavra "algoritmo", a base do sistema que promove a indicação ativa dos vídeos que agora a plataforma diz não tolerar.

As redes sociais estão sendo pressionadas em todo o mundo para que assumam responsabilidades pelos danos que causam conscientemente. Se o sistema sugere sistematicamente a todos os usuários vídeos difamatórios, com ameaças e teorias da conspiração, fica difícil acreditar nesses grandes esforços para evitar que vidas sejam destruídas com ajuda das plataformas.

O YouTube diz no comunicado que se preocupa com liberdade de expressão. Complicado. À medida em que ativamente amplia o alcance de conteúdos que interditam o debate e afugentam participações saudáveis, a plataforma promove o contrário: inibe a expressão de todo aquele que tiver algo de útil a acrescentar.

Muitos que dependem financeiramente da disseminação de conteúdos mentirosos, caluniosos e de incitação à violência falam em censura. Outra mentira. Censura é sempre prévia e sempre vinda do Estado. Ninguém impede que esse tipo de conteúdo seja postado, a sociedade só exige que seus criadores e disseminadores arquem com as consequências dos próprios atos, cometidos com propósitos financeiros, de poder ou por pura vilania. Arrisco dizer que, se o YouTube não lucrasse tanto com esse tipo de conteúdo, o problema já teria sido resolvido.

Numa sociedade lotada de adolescentes de 40 anos, falar em responsabilidade pode ser algo tratado como pecado. Não é. Se a ilusão de anonimato e impunidade liberou demônios que se escondiam em almas humanas, está na hora de mostrar que o mundo não pertence a eles.

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