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O arcebispo de São Francisco, Salvatore Cordileone, em foto de 2020.
O arcebispo de São Francisco, Salvatore Cordileone, em foto de 2020.| Foto: Marc Arcas/EFE

Na catolicosfera norte-americana, quiçá mundial, não se fala de outra coisa: da carta do arcebispo de São Francisco, Salvatore Cordileone, à presidente da Câmara de Representantes, deputada Nancy Pelosi, afirmando que ela está proibida de receber a comunhão no território da arquidiocese, devido às suas posições a favor da legalização do aborto nos EUA. Pelosi, do Partido Democrata, representa o 12.º Distrito californiano, que compreende boa parte da cidade de São Francisco, e por isso Cordileone tem todo o direito de tomar esse tipo de decisão a respeito de alguém que pertence ao seu rebanho.

A discussão sobre a possibilidade de um político católico abertamente pró-aborto receber a comunhão é antiga na Igreja norte-americana, e data pelo menos de 2004, quando o católico democrata John Kerry disputou a presidência contra o republicano George W. Bush, que buscava a reeleição. A briga dentro da conferência episcopal foi feroz, com pesos-pesados em posições opostas: Seán O’Malley, arcebispo de Boston (a diocese à qual pertencia Kerry); Donald Wuerl, arcebispo de Pittsburgh (e, a partir de 2006, arcebispo de Washington); e os cardeais-arcebispos William Keller, de Baltimore, e Theodore McCarrick, de Washington (hoje ex-cardeal, ex-bispo, ex-padre, ex-tudo), eram contra a proibição; Charles Chaput, arcebispo de Denver; e Raymond Burke, de St. Louis, defendiam a medida.

No fim, a conferência adotou uma solução que não contentou plenamente nenhum dos lados: cada bispo deveria decidir como proceder em sua respectiva diocese. Uma postura bastante razoável, porque, de fato, o bispo é o chefe da Igreja na região que governa e, a não ser em casos muito específicos explicitamente previstos na lei canônica, não tem de se submeter à conferência episcopal. Depois de 2004, já houve um punhado de casos em que bispos proibiram políticos pró-aborto de receber a comunhão em suas dioceses, mas até agora nada com essa dimensão, um arcebispo de uma das maiores cidades norte-americanas se dirigindo a um parlamentar que é presidente de casa legislativa. Joe Biden, quando era pré-candidato democrata à Casa Branca em 2019, chegou a ter a comunhão negada por um padre na Carolina do Sul, mas não se tratou de medida específica adotada contra Biden, e sim de orientação geral relativa a qualquer político católico explicitamente defensor do aborto.

Dado o histórico de militância de Nancy Pelosi a favor do aborto, o arcebispo Cordileone até que foi bem paciente

Convenhamos: cá entre nós, dado o histórico de militância de Pelosi a favor do aborto, Cordileone até que foi bem paciente. E fez tudo exatamente dentro do script, como mostra o texto integral de sua carta. Pois, ainda que a USCCB (a conferência episcopal norte-americana) tenha deixado a decisão para cada bispo, individualmente, não se pode dizer que não houve uma orientação do Vaticano a respeito do tema – e assinada por ninguém menos que o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 2004, ele escreveu, em carta aos bispos norte-americanos:

“Quando a cooperação formal de uma pessoa se torna evidente (entenda-se, no caso de um político católico, sua consistente defesa e votos em favor de leis permissivas sobre aborto e eutanásia), seu Pastor deve procurá-lo, instruí-lo sobre o ensinamento da Igreja, informá-lo de que ele não deve se apresentar para receber a Sagrada Comunhão até que encerre essa situação objetiva de pecado, e avisá-lo de que ele terá negada a Eucaristia. ‘Quando, porém, se apresentarem situações em que tais precauções não tenham obtido efeito (...), o ministro da distribuição da Comunhão deve recusar-se a dá-la’”.

(No documento, Ratzinger cita uma declaração do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos sobre a comunhão para católicos que se divorciaram e voltaram a se casar civilmente, de 2000; a nota do arcebispo Cordileone coloca a data de 2002, provavelmente fazendo uma confusão com uma carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o mesmo tema. A aplicação da regra a respeito da segunda união a um político pró-aborto se justifica devido à situação de “pecado grave manifesto”, descrita no cânon 915 do Código de Direito Canônico).

E foi o que Cordileone fez, descrevendo tudo na carta: procurou Pelosi em particular, explicou-lhe bem explicadinho por que um católico não pode defender a legalização do aborto (como se ela não soubesse...), e só depois, como não houve nenhuma mudança de postura da parte dela, veio o aviso para não tentar comungar dentro dos limites da Arquidiocese de São Francisco.

“Ah, mas isso tem implicações políticas sérias.” Pouco importa. Ainda que as estratégias possam variar, umas vezes sendo melhor bater de frente, outras vezes sendo melhor ir pelas beiradas (penso aqui na forma como Pio XII lutou contra o nazismo), o principal critério a guiar os pastores da Igreja não são as eventuais consequências políticas de seus atos, mas a lei suprema, que é a salvação das almas. O arcebispo Cordileone, mais uma vez, agiu de acordo com as diretrizes da Congregação para a Doutrina da Fé e deu a Pelosi todas as chances de rever sua postura; a defesa do aborto por parte de um católico com a responsabilidade e o poder da deputada é algo grave demais para continuar passando incólume.

“Misericórdia” nem de longe significa passar pano para o erro e aceitar que alguém continue errando obstinadamente, ainda mais esse tipo de erro

“Ah, mas e a misericórdia?” A essa altura, duvido que alguém já não tenha sacado da cartola essa palavra. Mas usá-la para criticar Cordileone é entender mal a misericórdia, que nem de longe significa passar pano para o erro e aceitar que alguém continue errando obstinadamente (não falo, óbvio, de quem cai repetidamente nos mesmos vícios mesmo lutando contra eles), ainda mais esse tipo de erro. Jesus disse à adúltera “nem eu te condeno”, mas também disse “vai e não peques mais” – aliás, vejam nos Evangelhos o que acontece com quem escolhe persistir no erro. Além disso, “corrigir os que erram” (ou, em outras versões, “advertir os pecadores”) é uma obra de quê mesmo? Pois é, obra de... misericórdia.

“Ah, mas o papa não disse que a comunhão é remédio?” Pois é, temos dois extremos a evitar e um mal-entendido a esclarecer. Os extremos a evitar são achar que a Eucaristia é um direito de todos, independentemente do que pensem e de como se comportem, e achar que a Eucaristia é “prêmio para os perfeitos”, como disse o papa Francisco na Evangelii Gaudium. Sim, logo na sequência o pontífice afirma que ela é “um remédio generoso e um alimento para os fracos”, e aí temos o mal-entendido a esclarecer: o papa não está dizendo que as pessoas em pecado grave podem receber a Eucaristia sem problemas. Como já explicou uma vez o padre Paulo Ricardo, a comunhão é remédio, mas, assim como nas doenças do corpo você às vezes precisa prescrever algo para solucionar o problema mais urgente e eliminar o risco de morte, e depois segue o tratamento com outros medicamentos para o restabelecimento pleno da saúde, nas enfermidades graves da alma o primeiro remédio é o sacramento da Penitência, para evitar a morte da alma; a Eucaristia dá sequência à recuperação, para nos fortalecer na vida interior.

Se Roe v. Wade cair mesmo, teremos muito mais situações desse tipo. Porque até agora um presidente, governador, senador ou deputado podia sair pela tangente e dizer “a Suprema Corte decidiu assim, não posso fazer nada”. Mas, se o poder de legalizar ou proibir o aborto voltar totalmente para os estados, esses políticos não vão ter apenas de se posicionar, vão ter de votar leis ou sancioná-las. Biden já pediu explicitamente aos americanos que votem em candidatos pró-aborto nas midterms de novembro. Vamos precisar de muito mais bispos como Cordileone; mesmo que não tenham o “coração de leão” no nome, como ele, precisarão tê-lo na alma.

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