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Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF| Foto:

Salvo esperadas discordâncias em círculos comuns aos apoiadores governistas mais ortodoxos, o fato de Jair Bolsonaro ter se apoiado em muletas retóricas para vencer as últimas eleições presidenciais não merece grandes contestações. Nunca houve projeto de governo. Houve, cabe reconhecer, apurado senso de oportunismo. O rancor provocado pelo Partido dos Trabalhadores por meio de condutas antiéticas, e um projeto de poder que incluía o sequestro do próprio sistema eleitoral, foi tão profundo que só uma guinada ao extremo oposto do espectro ideológico aplacaria o momento catártico vivido em outubro de 2018.

Não que os estandartes hasteados por Bolsonaro à época pecassem pelo excesso de originalidade. Bem ao contrário, eram conhecidos — assim como são conhecidos os interesses por trás de seus manuseios, precisamente por políticos experimentados nas mesmas práticas que condenam. A falta de coerência em pinçar alguém há trinta anos na cena política e com passagens por nove legendas, entretanto, acabou sucumbindo para a ânsia coletiva por uma purgação.

O governo não demorou a se desvencilhar da narrativa que pregava uma revolução moral na política. A expectativa frustrada de que a composição ministerial atentaria para critérios exclusivamente técnicos — promessa de campanha — foi um dos primeiros sinais de que a sociedade havia contratado um estelionato eleitoral de almanaque. Hoje, mais do que cumprir seus papéis, somente os ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes conseguem passar um quê de normalidade institucional. Não, em momento algum o critério foi técnico. Se na Economia e na Justiça Bolsonaro foi eleitoreiro, nas demais pastas foi ideológico. E só.

A idolatria em torno do ministro da Justiça e a torcida daqueles puramente interessados na pauta econômica não conseguem abafar os ruídos provocados por tantas “caneladas”, para usar um termo presidencial. Há, contudo, caneladas perigosas.

Aos olhos de sua militância, Jair Bolsonaro até pode nomear perfeitos ineptos para ministérios importantes como os da Educação, do Meio Ambiente e das Relações Exteriores. Também pode tirar da cartola personagens inauditos como a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Pode inclusive entregar a Cultura nas mãos de um sujeito com simpatia por referências nazistas. Não pode, todavia, ridicularizar o eleitor que ainda hoje estufa o peito para defender o governo sob a ótica moral.

Bolsonaro há de entender, mas por via das dúvidas esclareço: para além de raras exceções, o eleitor é incapaz de distanciar-se do voto. A escolha feita nas urnas, especialmente em pleitos febris como o último, impõe uma espécie de pacto inquebrantável entre ele e o político. Não há de ser por outro motivo que o sujeito não cobra seus eleitos, mas somente aqueles que não mereceram a sua confiança. Condenar aquele a quem designou seria como condenar a si próprio.

É apenas por essa razão que o eleitor fiel ainda não consegue admitir as quebras de parâmetros afiançados durante a campanha e que diferenciariam o atual governo de todos os anteriores, não apenas os do período petista.

O primeiro momento em que a atual administração esticou tal corda se deu logo com oito dias de mandato. Antônio, concursado do Banco do Brasil e filho do vice-presidente, General Hamilton Mourão, deixava a assessoria da área de agronegócio e era promovido para o cargo de assessor especial da presidência da instituição. Seu salário triplicou, passando de R$ 12 mil a R$ 36 mil mensais. O vice-presidente garantiu que nada tinha a ver com o fato e alegou que o filho era merecedor da promoção. O desconforto geral foi abafado com o frisson habitual em torno de um governo recém-eleito.

Em agosto houve aquele que já pode ser tomado como um dos flertes mais explícitos de um presidente com a prática do nepotismo em toda a história da Nova República: Jair Bolsonaro defendia a nomeação de seu filho Eduardo, sem qualquer experiência diplomática, para liderar a Embaixada em Washington. Um escárnio que ganhou contornos ainda mais vexatórios para os apoiadores fiéis do presidente quando este garantiu: “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon”.

Por sorte, um parecer da Consultoria do Senado considerou a possível nomeação como caso de nepotismo. Receoso não apenas de uma tão provável quanto gigantesca derrota política, o presidente decidiu recuar.

Pois este recente episódio, envolvendo as seguidas exonerações e nomeações do servidor Vicente Santini, não apenas reforçou a habilidade incomum do governo para gerar crises desnecessárias, mas escancarou a real natureza de um grupo que jamais nutriu apreço por condutas diferentes daquelas que o cidadão atento ao cenário político está cansado de conhecer.

Enquanto escrevo estas linhas, o presidente anuncia que tornará sem efeito a recondução de Santini para um novo cargo no Ministério da Casa Civil, após sua demissão do cargo de secretário-executivo da Casa Civil por ter usado um jato da Força Aérea Brasileira para ir à Índia. Seria apenas mais um dentre tantos recuos presidenciais, não tivesse dado tempo de seus apoiadores celebrarem, orgulhosos, o primeiro ato.

Uma canelada reveladora.

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