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Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Marcos Correa/PR| Foto: PR

A grande ironia da última terça-feira é que nem de longe a Rede Globo cogitou o envolvimento do presidente no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Bem ao contrário, a emissora fez questão de salientar que o então deputado estava em Brasília quando os fatos aconteceram.

Tudo indica, por meio de trabalho conduzido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que o porteiro do Condomínio Vivendas da Barra mentiu ao afirmar que o ex-policial militar Élcio Queiroz, suspeito de ser cúmplice no crime, contou com a liberação de Bolsonaro para passar da guarita. O ok teria sido dado por Ronnie Lessa, também ex-policial, apontado como autor dos disparos.

Cautela nunca é demais com tantas suspeitas ainda carentes de explicação. As investigações precisam esclarecer, por exemplo, a motivação para que o crime de falso testemunho fosse cometido. Não parece razoável que o porteiro do condomínio — onde moram, além do principal indicado como sendo autor do duplo assassinato, o presidente e um de seus filhos (Carlos Bolsonaro) — tenha simplesmente decidido caluniar o mandatário a troco de nada.

Não que esse detalhe faça diferença na hora de avaliar a postura do presidente da República em live do outro lado do planeta e em meio a uma viagem internacional. O destempero de Bolsonaro diminuiu o cargo que ele ocupa e, por extensão, a própria imagem do país no exterior — algo recorrente nesses primeiros dez meses do novo governo.

De todo modo, a vídeoconferência serviu para mostrar a força da retórica presidencial. Em que pesem os problemas graves apresentados até aqui em sua gestão — como a pasta da Educação relegada a um ministro inimigo da norma culta, o comando da Justiça esvaziado e o do Meio Ambiente sob a responsabilidade de alguém em franco desalinho com a comunidade em que se insere —, é inegável, Jair Bolsonaro conseguiu tourear a situação para investir-se do papel que mais lhe interessava: o de vítima.

A falta de comedimento do presidente e sua reação tão tresloucada acabam gerando dúvidas. Ainda por cima levando-se em conta que ele já sabia do teor do depoimento. Um discurso durante décadas pertencente ao corolário argumentativo da esquerda, de repulsa pela imprensa, no fim das contas é hoje envergado sem pudores pelo bolsonarismo, ávido para estabelecer o seu tão almejado projeto de perpetuação no poder.

A boa notícia é que nem tudo está perdido, como ficou comprovado pela capacidade do jornalismo profissional em ainda pautar o debate. O processo de lavagem cerebral comum ao populismo acaba gerando uma nação de ombudsman, entretanto ainda há voz para além das trincheiras do sistema.

De certa forma, o nervosismo do presidente da República e a ousadia de seu filho em acenar com a volta do AI-5 acabam fazendo sentido. A estratégia de plantar espantalhos para desviar o foco do descalabro gerencial e de assuntos espinhosos é o que restou.

Para quem não nutre apreço pela ordem democrática, deve ser detestável imaginar que existam pessoas dispostas a questionar e jogar luz sobre o despreparo na gestão do Brasil e em relacionamentos na melhor das hipóteses intrigantes.

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