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Foto: Sergio Lima/AFP
Foto: Sergio Lima/AFP| Foto: AFP

Corria o ano de 1992 quando Fernando Collor de Mello — primeiro presidente democraticamente eleito no Brasil desde o fim da ditadura militar — sofreu impeachment. Tendo a insatisfação popular pelo confisco da poupança como pano de fundo, as denúncias do irmão do presidente (Pedro Collor) à revista Veja pavimentaram um processo que marcaria a Nova República. O fim prematuro do governo Collor se deu por meio de acusações de corrupção envolvendo o presidente. Não é pouca coisa.

Passados 24 anos foi a vez de Dilma Rousseff deixar a presidência antes da hora. Assim como no processo envolvendo Collor, o motivo pelo qual a nossa primeira presidente mulher foi afastada do poder não pode ser diminuído: Dilma lançou mão de engenharia financeira para maquiar o uso indevido de dinheiro público. A rejeição ao PT depois que inúmeros casos de corrupção foram descortinados é usada até hoje pelo partido para sustentar a narrativa do golpe, mas golpe não houve. Houve crime de responsabilidade.

E então chegamos a este que, de longe, é o pior presidente da República desde a reabertura democrática. O pior presidente, no comando do pior governo e no pior momento possível.

Para que não reste dúvida: já existe embasamento para afastar Jair Bolsonaro da presidência. E quem o diz é a Constituição, por meio da Lei nº 1.079 (1950), precisamente em seus incisos II e IV:

“São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

IV - A segurança interna do país”

Antes de enveredar pelos desatinos do presidente que remetem à redação acima, vale tirar da frente um ruído comum sempre que o tema impeachment ganha o debate público: afinal, o que é crime de responsabilidade?

A fonte da discórdia foi oportunamente pinçada por Paulo Brossard (1924-2015) — especialista na Lei nº 1.079 e ministro do Supremo Tribunal Federal — em sua obra O impeachment (1964): “Se aos crimes de responsabilidade se reservasse a denominação de infrações políticas, por exemplo, melhor se atenderia à natureza das coisas”.

Antes, outro parlamentar que também chegou ao STF e até mesmo à presidência da República, Epitácio Pessoa (1865-1942), sentenciou: “O impeachment não é um processo criminal; é um processo de natureza política, que visa não a punição de crimes, mas simplesmente afastar do exercício do cargo o governador que mal gere a cousa pública”.

Foi o próprio Brossard, entretanto, quem resumiu melhor o instituto responsável por assombrar todos os quatro presidentes democraticamente eleitos após o regime militar, culminando com o afastamento de dois deles: “O impeachment constitui a técnica adotada pela Constituição para proteger-se de ofensas do chefe do Poder Executivo. A pena através dele aplicável nada tem de criminal; é apenas política, relacionada a um ilícito político, aplicada por entidades políticas a autoridades políticas”.

Milícia e militância virtuais a serviço do presidente têm demonstrado habilidade para embaralhar os fatos e assim ludibriar incautos, mas a realidade é que Jair Bolsonaro convocou  direta e indiretamente o povo para ir às ruas participar de uma manifestação que mirava na intimidação do Congresso Nacional, de juízes e governadores em meio a uma pandemia global.

Não só isso. O presidente fez questão de ter contato físico com populares, apertando mãos e tirando fotografias emolduradas por cartazes contra os Poderes Legislativo e Judiciário. Tudo isso enquanto ainda aguardava o resultado do seu exame para covid-19 — diagnóstico esse que diz ter dado negativo, mas cuja prova física jamais foi divulgada.

Na última quinta-feira (2), o presidente declarou o seguinte, durante entrevista concedida à rádio Jovem Pan: “Eu tenho um projeto pronto na minha frente, para ser assinado, se preciso for, considerando atividade essencial toda aquela exercida por homem ou mulher, que seja indispensável para que ele leve o pão para a casa todo dia”. Logo depois disse que “um presidente pode muito, mas não pode tudo”, em outro clássico momento de recuo para empanar sua fala imprópria, mas a ameaça já estava consumada.

Pois bem, se a Carta diz que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes dos Estado”, e se coloca a “segurança interna do país” na mesma prateleira, então o simples debate sobre a culpabilidade ou não de Bolsonaro perde o sentido.

A conversa que a sociedade brasileira, o STF e a Câmara, sobretudo o Senado precisam ter não é sobre o “se”, mas sobre o “quando”.

Há quem defenda que o momento não permite outro processo traumático como um impeachment. Além disso, o presidente conta com um grupo de fiéis seguidores.

Por outro lado, Fernando Collor e principalmente Dilma Rousseff também se apoiavam em claques ferrenhas. Seus afastamentos não se deram do dia para a noite. Houve a construção de um consenso diante de fatos então inquestionáveis: para além dos crimes de responsabilidade cometidos, ambos haviam perdido as condições para governar. Exatamente como acontece hoje, dada a fúria do presidente para instigar o caos, posicionando o país na contramão do mundo e pondo em risco a vida de milhares de brasileiros.

Não há de ser por acaso que Jair Bolsonaro experimenta um isolamento raro para um presidente com pouco mais de um ano no poder. Ou que a sociedade tenha passado a depositar suas esperanças no ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em figuras como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e nos governadores.

“Bolsonaro, acabou. Você está recebendo mensagem no celular. Todo brasileiro está recebendo mensagem no seu celular. Você não é presidente mais”, disse há coisa de duas semanas um imigrante haitiano para Bolsonaro, na frente do Palácio da Alvorada.

Ele tem razão.

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