Trata-se de um problema geracional. Uma questão de referência. Há coisa de poucas semanas — portanto antes deste último fim de semana, marcante na história do Flamengo —, pipocou um debate no mínimo inusitado para quem, como eu, já não consegue disfarçar os fios brancos: qual time rubro-negro é melhor, o de agora ou aquele liderado por Zico no início dos anos 1980?
Não tenho nada a ver com isso, sou tricolor de dar cambalhota na arquibancada, mas, confesso, fiquei incomodado. Se entendo o papel da imprensa esportiva, disposta não é de hoje a criar falsos debates para segurar a audiência? Entendo. Outra coisa é o próprio Júnior fazer média e opinar que a equipe atual, se reforçada pelo Galinho, superaria o timaço responsável pela conquista de três brasileiros, uma Libertadores e de lambuja o Mundial — contando com a sua inestimável colaboração.
Anote aí, você, que me lê, tão ávido por enaltecer o presente que periga injustiçar o passado: Raul, Leandro, Figueiredo, Mozer e Júnior, Andrade, Adílio e Zico, Tita, Nunes e Lico não apenas construíram um momento hegemônico no futebol brasileiro. Hegemonias já houve várias. Aquele Flamengo impôs um ponto de inflexão no nosso futebol. Tanto assim que colaborou com o desenho de uma seleção brasileira festejada até hoje em todo o mundo, mesmo sem ter conquistado a Copa de 1982.
O conjunto liderado por Gabigol, Bruno Henrique e William Arão não merece um lugar na mesma prateleira daquele comandado por Arthur Antunes Coimbra, todavia também cortou o baralho.
É batata, o Flamengo não pode vencer sem que seus fãs citem frases de Nelson Rodrigues em louvor ao clube. Beber da fonte de um confesso torcedor rival para validar a própria alegria não deve ser fácil, mas nesse caso faz sentido: em primeiro lugar, o texto é insuperável. Bem melhor que o dos cronistas atuais. Depois, Nelson e seu irmão Mário Filho — talvez a pessoa mais importante na construção das mitologias em torno do Fla —, vivenciaram um período bem menos cáustico do que este. Época em que elogiar o rival, além de ser elegante, não era incomum. E ainda servia como apoio para enaltecer o próprio time de coração.
Pois, por meio deste Flamengo, eis a segunda mudança de curso no nosso esporte predileto: o definitivo fim do equilíbrio.
Os comentários e as postagens de rubro-negros nas últimas horas, exaltando “o manto sagrado” e tentando construir uma espécie de fábula em torno de seus sucessos, não conversam com a realidade. Se o campeonato Brasileiro foi vencido com um pé nas costas, isso nada teve a ver com São Judas Tadeu. Tampouco com uma garra incomum dentro de campo. Teve a ver, isso sim, com o fato de o Flamengo, hoje, ser um clube rico. Tão rico que foi capaz de mudar a sua história durante a competição, por meio de reforços decisivos no time e no comando. Inclusive com jogadores aptos a disputar torneios europeus.
É inexorável: os belos textos de Nelson Rodrigues não teriam razão de ser nos tempos atuais. Para além da ausência de quem os compreendesse, o dramaturgo não teria como se valer de disputas renhidas, nas quais o resultado nem sempre é garantido. Em sua época, os times grandes se equivaliam e os pequenos incomodavam. Isso quando não levantavam, eles também, taças e troféus.
Ao ler essas linhas, o flamenguista pode se sentir injustiçado. Não deveria. O Flamengo não tem nada a ver com esse quadro, apenas coube a ele emoldurá-lo.
O Flamengo não tem culpa por ser o clube popular de maior torcida no Brasil, fato que por si só lhe confere vantagens financeiras inalcançáveis por seus rivais. O Flamengo não tem culpa se soube gerir suas dívidas e recursos justo quando a indústria do futebol começa a mudar, abarcando volumes de dinheiro até outro dia fora de cogitação. O Flamengo não tem culpa se, inexplicavelmente, a Rede Globo optou por estabelecer patamares díspares na distribuição de cotas de tevê, aprofundando ainda mais um vão inevitável.
Não é de hoje que os principais campeonatos na Europa vivem o que só agora estamos começando a testemunhar. A diferença é que lá os modelos são outros, tanto de gestão quanto de premiação, na estrutura dos clubes e na capacidade financeira dos torcedores.
Que o debate comece, os demais clubes busquem melhorar suas políticas internas e a televisão reveja a distribuição em plataformas como o pay-per-view. Até lá, a menos que um novo ponto de inflexão surja — como o possível advento do clube-empresa, possibilitando a chegada de capital estrangeiro pesado —, não faz sentido imaginar o fim do reinado rubro-negro.
O Flamengo, insisto, não tem nada a ver com isso.
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