Marleth Silva

Cadê o samba daqui?

13/02/2021 22:28
Thumbnail
Começou assim: em novembro, Marcelo ouviu falar que o carnaval tinha sido cancelado. Brincou com a única colega de trabalho com quem ainda interage presencialmente. “Como vai ficar o meu bloco? Estou arrasado!” Puro deboche. Marcelo é daqueles brasileiros que se afastou do carnaval aos nove anos quando a mãe parou de levá-lo aos bailinhos do clube.
Desde então, só fala mal da festa. Carnaval para ele é fuga: fuga para a praia ou fuga para o exterior quando o dinheiro permite. O som da cuíca é um alerta: hora de desligar a televisão, de fazer as malas e encarar aquele livro grosso. Fujam para as montanhas, o carnaval chegou!
Claro que agora as circunstâncias são especiais. “Veja a que pontos chegamos! Não vai ter carnaval…” Até para Marcelo, isso é motivo de espanto. Meses antes, quando soube que o Vitamina planejava fazer um bloco chamado “Maricas da Vacina” ele pensou “é com esse que eu vou!” Bloquinho com máscara e distanciamento social, protesto bem humorado, quem sabe até uma chuvinha fina para dispersar os foliões. Enfim, o carnaval perfeito para o curitibano Marcelo.
Mas então vieram os versos:
E o asfaaaalto como passarela Será a tela do Brasil em forma de aquarela
Era o Marcelo cantarolando. De onde surgiu esse samba que ele repetia mentalmente?
Fiquei radiante de alegria Quando chegueeeei na Bahia
“Coisa mais linda!” – pensou o Marcelo. “Mas de onde tirei isso?” O espanto ficou maior ainda quando “gugou” aquelas palavras que seu cérebro desencavou e sua boca já cantava. Um samba-enredo! Da Império Serrano! De um tempo em que o Marcelo nem tinha nascido!
Era só o começo. No dia seguinte, foi a vez da Imperatriz Leopoldinense invadir sua memória.
Liberdade, liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz
Marcelo estava surpreso. Carregava um carnavalesco dentro de si e não sabia. Lembrou-se que na infância era louco por uma marchinha:
Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é? Será que ele é?
Bem, quem é que não cantarolou isso uma vez na vida? Não dá para nascer no Brasil e ficar imune às marchinhas de carnaval. É como um vírus. Uma pandemia. É isso! O Carnaval é uma pandemia que dura quase 500 anos. Marcelo se acreditava vacinado e descobriu que não é. Só que foi contaminado pela cepa mais fraca, a que circula pelo Sul do Brasil. Ainda assim, agora tem que reconhecer, sempre sentiu inveja dos foliões com que cruzou na literatura, aqueles que saem de casa na sexta-feira e voltam na Quarta-Feira de Cinzas. O que mais o impressiona nesses contos e crônicas é alguém se sentir tão à vontade na rua, convivendo com desconhecidos, se juntando a quem tiver o melhor batuque. Que liberdade! Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós, e que a voz da igualdade, seja sempre a nossa voz. Lá vem o samba de novo.
O Ruy Castro chamou o carnaval de 1919 de Carnaval da Revanche porque o povo dançou e cantou como louco para comemorar o fim da Gripe Espanhola. Para o Marcelo, o carnaval de 2021 é que é a revanche, a revanche do samba que ele tanto desprezou e que agora, quem diria, não para de cantarolar. O ano que vem é outra história, talvez Marcelo fuja de novo, talvez se arrisque na rua para então confirmar que não nasceu para a folia. Mas neste fevereiro pandêmico, tomado por essa nostalgia da beleza e da extravagância que nunca desfrutou, ele cantarola sem parar.
Hoje o samba saiu, procurando você
Quem te viu, quem te vê.
  • MARLETH SILVA é jornalista. Nasceu no interior do Paraná e hoje vive às margens do Rio Uvú, em Curitiba. Gosta de ler, escrever, viajar e bater papo. Devido às circunstâncias, ultimamente só lê e escreve.