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Cair, machucar, chorar e começar tudo de novo
| Foto: Felipe Lima

Quem não arrisca não petisca. Irmãs, primas, amigas e eu, todas repetíamos esse ditado para provocar a medrosa ou para encorajar a si mesmas. Não fique aí parada! Medo de pular, de correr, de subir no muro? Quem não arrisca não... só pensávamos no petisco, que era a diversão. As crianças são assim, quem teme os acidentes são os pais. Ferimentos fazem parte da infância. Cair, cortar-se, arranhar-se, torcer o pé, esfolar a pele, ser picado por insetos, coçar a picada até ela virar uma ferida, carregar feridas eternas que não saram porque a “casquinha” foi arrancada de novo, ralar o dedo do pé, quebrar o braço.

A dor assusta e faz chorar, abrir berreiro. A mente demora a aprender a administrar esse corpo que é menos resistente que a vontade de correr, de saltar, de voar. Voa-se muito quando se é criança.

Correm todos, em disparada, e um tropeça em algo que não se vê, e voa. Os braços estendidos para a frente, a boquinha entreaberta revelando o susto, os olhos arregalados ou, ao contrário, bem fechados. Pooooom! A aterrisagem desajeitada é um espetáculo a ser visto e lamentado. Machucou? E a criança responde com um choro de boca aberta porque nem sabe o que responder. Se a brincadeira for boa e o machucado leve, levanta rápido e volta a correr. Não quer ficar para trás.

Quem teme os acidentes são os pais. Ferimentos fazem parte da infância. Cair, cortar-se, arranhar-se, torcer o pé, esfolar a pele

Também se voa de cima de árvores e muros, um voo involuntário, que não era para ser. Uma vez caí do galho da ameixeira (hoje sei que era uma nespereira, mas nós chamávamos de ameixeira). Eu gostava muito de subir em árvores, fazer de conta de que eram outra coisa. Uma casa, por exemplo. Naquele fim de tarde, escorreguei e caí de cabeça para baixo. Bati a cabeça no toco de outra árvore. Chorei muito, pelo que me pareceram horas. Veio a irmã me consolar. Mandei embora. Veio o irmão. Mandei embora. Só queria a mãe. Veio a mãe. Eu exigi o pai. Veio o pai e eu ainda chorava. A palavra final foi da mãe, lembro bem. “Então deixa pra lá.” Meu sofrimento real, reconhecido por eles, tinha virado manha. Foram todos para dentro porque já estava escurecendo. Fiquei eu chorando mais um pouco entre a ameixeira e o toco que quase me arrebentou o coco.

Em outra ocasião caí de cima do muro, onde brincava sozinha. Caí e destronquei o braço. Falávamos assim: destroncou. Se era entorse, luxação ou outra coisa, tarde demais para esclarecer. Não lembro se sarou sozinho ou se meu pai me levou ao homem que punha os ossos da gente no lugar depois de acidentes desse tipo. Morávamos em cidade pequena e era assim que se resolvia as coisas. Uma velhinha benzia, um homem punha ossos no lugar, o farmacêutico cuidava dos resfriados e o médico era lembrado quando o caso era grave mesmo.

Outro dia vi a Gigi levar um tombo. A Gigi cai muito porque brinca muito. Em geral, se levanta, ajeita a sainha de bailarina que sempre usa e corre para alcançar as outras crianças. Neste dia ela chorou com o rostinho escondido pela cabeleira esparramada pelo rosto. Um dos gêmeos que brincavam com ela se agachou ao seu lado, ofereceu conforto, ofereceu a mãozinha para ajudá-la a se levantar.

Gosto de ver estas cenas da criançada da vizinhança quando não há adultos por perto. Quando há, as crianças se intimidam porque temem levar bronca. “O que foi que aconteceu?”, diz o adulto. “Quem empurrou a Gigi?” – e todos se sentem implicitamente acusados.

De casa, escuto os gritos e às vezes saio às pressas para descobrir quem foi desta vez. Precisa de ajuda? Geralmente não. Os casos mais graves que vi foram mordidas de cachorro, dedo quebrado por uma bolada e, o pior de todos, saco rasgado. Isso mesmo, um menino caiu da bicicleta e rasgou o saco escrotal. Segundo consta, a recuperação foi completa.

Uma vez meu filho insistiu para raspar a cabeça com máquina zero. A cabelereira e eu sugerimos um corte menos radical, mas ele estava decidido. Então vai lá, vamos ver como fica. Quando a moça estava quase terminando, o couro cabeludo bem à mostra, ela e eu notamos as pequenas cicatrizes. Ficamos ali, estudando aquela cabeça de menino pontilhada por marquinhas de cortes feitos sabe-se lá quando e como. Como foi que aconteceu isso? – queríamos saber. Ele foi tateando a cabeça e foi dizendo “ah, esse aqui deve ter sido quando eu...” Pequenas e grandes aventuras que já estavam esquecidas. Tatuagens desenhadas na marra, sem arte, mas com vida. Nada com que se preocupar.

O que me faz lembrar daquela vez em que levei meu filho para brincar na casa de amiguinhos. Quando fui buscá-lo, notei um corre-corre. O garoto mais velho, mal entrado na adolescência, havia sofrido uma queda de bicicleta. Tinha se estatelado no asfalto da rua. Bateu tudo o que tinha para bater: cabeça, cotovelo, joelho. Rolou, esfolou. Talvez tivesse até arrancado a pontinha do dedão do pé, me disseram as crianças. Quando o vi estendido na cama, muito pálido, olhos semicerrados, respiração curta, conclui que era um caso sério. Esperavam um parente chegar de carro, por isso me ofereci para levar a mãe e o acidentado até o hospital mais próximo. No dia seguinte, liguei para saber notícias. “Tudo bem”, disse a mãe. “Tá lá fora brincando.”

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