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Fim da pandemia
| Foto: Daniel Nardes/Gazeta do Povo

Esta revista nasceu e cresceu durante a pandemia. Como um lembrete de que a vida prosseguiu em meio à excepcionalidade do período, com todos nós perseguindo nossos sonhos e lutando pela nossa sobrevivência da forma que foi possível. Algumas vezes fiz destas crônicas o meu “diário do ano da peste”. É justo, portanto, que agora registre como é bom saber que a crise está se aproximando do fim.

Não acabou ainda, eu sei, mas vai perdendo força graças ao avanço da vacinação. A grande nuvem preta que desceu sobre nós vai se dissipando. Eu vou saindo da nuvem escura como quem desperta no meio de um sonho intenso: não quero continuar dentro dele, mas não me sinto totalmente pronta para despertar e ir para o mundo assim, em um estalar de dedos.

Um pedaço de mim continua lá, na longa noite com seus sonhos e pesadelos. O que me retém, eu sei, é que preciso de um fim, preciso saber que estamos todos seguros do lado de cá, fora da nuvem. Uma epidemia é um fenômeno coletivo em que cada um cuida de si para cuidar de todos. Tenho filhos em casa e, a cada saída de casa, é neles que penso.

Então vou despertando devagar e, mesmo com o ritmo lento, percebo que as memórias dos sonhos vão sendo esquecidas na mesma cadência em que minha atenção se volta para o novo dia. Tudo o que vivi no sonho vai caindo em um esquecimento típico das experiências extraordinárias demais. Isso tudo realmente aconteceu?

No entanto, é preciso lembrar. A memória é o nosso instrumento para manter a posse de vivências. Sem memória, a inconsistência e a transitoriedade minariam todo o valor de nossas vivências. Sem memória, o tempo seria um inimigo ainda mais cruel: tudo que não é o presente não existiria mais, estaria perdido, desperdiçado. A perda dos dias passados, das experiências vividas, do que foi sentido e acabou, essa perda que é real, seria também absoluta. A memória é nossa arma contra a perda absoluta. É o artifício que os humanos usam para diminuir a angústia provocada pela passagem do tempo.

O ser humano vive da narrativa que cria, individual ou coletivamente, para dar sentido as coisas. Na história da pandemia, somos os sobreviventes, e será nosso papel festejar, contar o que houve e lembrar os que ficaram no caminho.

Me deparo com este poema do americano W.S. Merwin:

“O futuro me desperta com seu silêncio
Eu me junto à procissão
Uma porta aberta
Me chama
De novo”

O futuro silencioso do primeiro verso pode ser, no nosso contexto, o resultado do efeito cumulativo de um período de repetição, isolamento e estresse que induziu a uma acomodação no familiar. Quem atravessou o portal e se viu cara a cara com a vulnerabilidade de si mesmo e de suas pessoas amadas não consegue fingir que não esteve lá. Então, como criancinhas, sondamos o mundo pela porta aberta (o futuro pós-pandemia) e vamos dando pequenos passinhos até o ponto em que tenhamos certeza de que dá para correr e brincar lá fora.

Quando este ponto chegar, quero muito que haja festa para comemorar o fim, com barulho nas ruas e brindes com os amigos.

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