Opinião

Marcel Proust e a busca por relevância

01/12/2021 09:00
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Encantado com a experiência de usar um telefone, Marcel Proust escreveu, no início do século XX, no quinto volume de sua obra “Em Busca do Tempo Perdido”, que os pintores da época, ao invés de continuarem produzindo retratos femininos em que a dama segura uma carta com ar sonhador, à moda do século XVIII, deveriam mostrá-la com o fone no ouvido “onde nasceria espontaneamente dos lábios da que escuta um sorriso…”.
O comentário de Proust me fez pensar na dificuldade que escritores contemporâneos encaram para retratar a tecnologia como elemento inserido no cotidiano de seus personagens. É arriscado citar um objeto que está em permanente mutação, que pode desaparecer ou se tornar irreconhecível nos anos seguintes.
Na obra de Proust, não há menção há uma tecnologia chamada Teatrofone, que ele utilizou. Tratava-se de um serviço que transmitia, para assinantes e em tempo real, concertos executados em teatros de Paris. A transmissão era feita por linha telefônica e o assinante usava um fone de ouvido em forma de cálice para ouvir a música que chegava em sua casa (relatos da época registram que o som era de péssima qualidade). Em 1911, em carta a amigos, Proust contou que assinava o Teatrofone. Que ele tenha falado do telefone em “Em Busca do Tempo Perdido”, mas não do teatrofone deve ter sido apenas uma conveniência narrativa, mas poupou sua obra do ruído que traria um elemento que, alguns anos depois dos livros lançados, ninguém mais conhecia.
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Proust estava encantado com o telefone que, naqueles dias, só era acessível a pessoas abastadas e que viviam nas grandes cidades, como era o caso dele. Seu entusiasmo não era o mesmo dos atuais maníacos por gadgets, que consomem tecnologia para renovar a experiência de ter algo novo e intrinsicamente descartável, até porque este comportamento é recente, surgido no século XXI. O que encantava Marcel Proust era a mágica da transposição do espaço pela voz desencarnada e uma oportunidade que ele identificou nesta situação. Proust usou a chamada telefônica para isolar a voz humana e colocá-la sob observação, sem outros elementos para distraí-lo, como a expressão facial, os olhos, os gestos. Para ele, o encantamento de usar o telefone estava todo em ouvir e não em falar.
Em uma passagem muito bonita do terceiro livro de “Em Busca do Tempo Perdido”, o narrador está em uma pequena cidade do interior da França e vai receber uma chamada da sua adorada avó na única cabine telefônica do lugar. Era a primeira vez que ouviria a voz dela daquela forma, longe fisicamente e viajando por um fio, “desencarnada”. A experiência é comovente: sem poder ler o rosto da avó, que ele define como uma “partitura aberta”, o narrador ouve a voz que chega alterada em suas proporções (já que a comunicação ali é 100% oral) e descobre nela “os desgostos que a tinham marcado no decurso da vida”, ou seja, o telefone expôs aquela senhora de uma forma que ela teria evitado com expressões faciais e olhares se estivesse diante dele.
Esta cena tão rica de fato aconteceu na vida de Marcel Proust. Em carta a um amigo, anos antes, ele contou sobre o dia em que recebeu um telefonema de sua mãe e experimentou o que, no livro, o narrador vivencia com a avó: ouvindo apenas a voz de uma pessoa muito familiar, sentiu a alma dela de uma forma nova. Naquele dia, a mãe de Proust teve dificuldade para conseguir a ligação, o que a angustiou porque sabia que o filho estava esperando a chamada. Ela pretendia usar o telefone de uma padaria, mas ao chegar lá na hora combinada descobriu que a linha não estava habilitada para fazer interurbanos e por isso teve que ir em busca de outro aparelho. Qualquer pessoa que já passou por situação semelhante, o que não era raro antes do aparecimento do celular, entende a angústia de madame Proust. Quando finalmente conseguiu telefonar, ela não pode esconder nem a angústia nem a extrema ternura que sentia e o filho percebeu o lado sombrio da maravilha tecnológica, que é a separação dos seres pelos instrumentos que supostamente eles devem conectar.
Nas tecnologias de comunicação, a modernidade exerce o poder sobrenatural de aproximar um pedaço de quem está separado de nós, mas trazendo junto a banalidade de uma vida urbana repleta de imagens e palavras que são distribuídas e consumidas coletivamente.
Proust retrata essa combinação esdrúxula em outro trecho muito bonito, que está no livro quatro. A amante do narrador liga de algum lugar público para ele. Junto com as palavras dela, chegam sons do mundo onde ela está: “a buzina de um ciclista, a voz de uma mulher que cantava, uma fanfarra distante ressoavam tão distintamente quanto a voz querida, como para me mostrar que era mesmo Albertine em seu meio atual que estava perto de mim naquele momento, como um torrão de terra com o qual foram trazidas todas as gramíneas que o cercavam.”
Proust viveu em um tempo em que as tecnologias entravam lentamente na vida das pessoas e causavam espanto. Ele, que como escritor desenvolveu uma habilidade impressionante para descrever sensações e experiências, registrou o espanto diante do novo, falando de sua própria experiência com o telefone e com o avião. Nos nossos dias, com a velocidade impossível da tecnologia, quem consegue descrever nossos primeiros contatos com as novas máquinas e softwares? Quais merecem ser registradas se todas parecem compartilhar o destino do teatrofone, com uma vida curta e irrelevante? Não sei. Por enquanto, tudo é distração e ruído.