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Onde irá meu pensamento
| Foto: Felipe Lima

Neste mês de julho, faz quatro anos que minha mãe morreu. Lembrei da data quando uma imagem do rosto dela me passou pela cabeça. Um segundo, um flash de memória. Me dei conta, então, de que o rosto que agora recordo é sorridente e saudável e não mais o rosto vazio da paciente de Alzheimer.

A morte da minha mãe teve essa particularidade. Aconteceu depois de mais de dez anos de Alzheimer. A perda, portanto, aconteceu muito antes da extinção da vida. O Alzheimer, ao esvaziar o cérebro do paciente, tira dele a personalidade que se manifestava em expressões faciais, sorrisos, no erguer da sobrancelha, no olhar. O rosto fica vazio. Logo depois que minha mãe morreu, era este rosto que eu via quando lembrava dela. Agora, não mais. A minha mãe voltou a minha memória do jeito que mais fortemente me marcou: está na faixa dos 60 anos e sorri.

Esta experiência me faz pensar que, fisicamente, somos vários ao longo da vida, e que ao longo dos anos convivemos com muitas versões das pessoas próximas de nós. Já mencionei neste texto duas imagens de minha mãe, que são como duas versões dela, a que mais marcou minha memória e que fica como referência – uma mulher na meia-idade, tranquila e sorridente – e a imagem da doença.

Temos todos a tendência a fixar uma única imagem de nós mesmos, que tende a ser a de jovens adultos

Tenho medo de generalizar, mas me parece que temos todos a tendência a fixar uma única imagem de nós mesmos, que tende a ser a de jovens adultos. Foi para sermos aquela pessoa que nascemos. Mas não paramos ali, continuamos mudando, envelhecendo, numa traição do projeto de vida que viemos realizar. Por isso os sustos quando o tempo avança e olhamos no espelho. As novas figuras que vão surgindo não passam de usurpadoras.

Os outros cruzam com vários de nós ao longo dos anos. Eu, por exemplo, quando encontro alguém que conheço desde criança, sempre me recordo, nem que seja por um segundo, daquela pessoa na infância. Não falo nada, claro. Que chatice seria! Mas meu cérebro precisa rapidamente se ajustar à realidade: quem está diante de mim é mesmo aquele que eu peguei no colo e não é. São dois que se mesclaram, que se fundiram.

A popularização de alguns conceitos da física têm ajudado muitos a fantasiar sobre essa experiência perturbadora que é a consciência da passagem do tempo e de seus efeitos sobre nós. A partir de especulações sobre o que significa o contínuo espaço-tempo, filmes e séries exploram à exaustão a possibilidade de universos paralelos e de “rachas” ou “frestas” por onde se escaparia para um ponto no tempo que não é o presente. O que mais encanta quem cria e quem assiste a essas fantasias é a possibilidade de ver a si mesmo ou o outro no passado e no futuro. Fica sempre evidente esse estranhamento diante do ser que fomos ou que seremos. Maior ainda é o estranhamento dos personagens que veem seus pais em outras fases da vida. Eles não são eles. Ou são? Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio... Lembram da frase de Heráclito? As águas do rio já são outras, eu já sou outra, mesmo que apenas alguns minutos tenham passado. Heráclito chamou de dialética o que Einstein chamou de relatividade.

A memória é uma traidora. Uma caixa mal organizada. Um álbum de fotografias de onde algumas fotos foram arrancadas e outras ficaram sem identificação

Voltando a falar de minha mãe, a mineira Maria do Carmo, costureira por profissão, gostava de cantarolar. Cantava bem, minha mãe. Cantava canções que nunca mais ouvi. Por isso o susto quando, lendo Ana em Veneza, de João Silvério Trevisan, que já comentei em outra coluna, encontrei os versos de uma modinha composta por Carlos Gomes, na época em que dom Pedro II era imperador do Brasil. É aquela que diz:

“Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento
Quisera, saber agora
Se esqueceste, se esqueceste o juramento.”

Eu não sabia que a modinha era de Carlos Gomes (a letra é de Francisco Leite de Bittencourt Sampaio). Provavelmente, minha mãe conheceu Tão Longe na voz de Francisco Petrônio, que “ressuscitou” a canção no século 20, com muito sucesso. Se é que a minha mãe a conheceu mesmo, porque não tenho mais certeza de que a ouvi cantar. A memória me voltou forte, mas depois de alguns dias passei a duvidar dela.

É neste ponto que tudo isso fica triste. A memória é uma traidora. Uma caixa mal organizada. Um álbum de fotografias de onde algumas fotos foram arrancadas e outras ficaram sem identificação. Quero lembrar mais da minha mãe e quero ter certeza de que não estou fantasiando, misturando lembranças, completando lacunas com falsas recordações. Impossível. Esquecer é trair? Neste momento, eu acredito que sim.

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