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Selvagens e livres: as crianças durante a pandemia.
| Foto: Daniel Nardes/Gazeta do Povo

Diante da situação excepcional que vivemos, eu, Marleth Silva, julgo importante registrar como tem sido nossa vida com as crianças em casa em tempo integral. Veja bem: não tenho crianças. Mas elas abundam na vizinhança e estão todas em seus lares, desaparecendo por poucas horas quando, suponho, fazem aula online, dormem e comem. No resto do tempo, os novos selvagens correm livres, especialmente embaixo da minha janela e na quadra ao lado da minha casa. Por isso fiz anotações que poderão ser úteis nos estudos sobre os danos causados pelo isolamento social à sanidade mental da população.

30 de março: Os vizinhos do condomínio estão preocupados com o ânimo dos filhos pequenos. Por isso teremos uma pequena confraternização ao redor da fogueira. Vou levar marshmallow para as crianças. São tão queridas!

15 de abril: Meu filho reclama da gritaria constante. Eu gosto. A alegria das crianças me lembra que a vida segue apesar de tudo.

28 de maio: As áreas externas do condomínio estão tomadas por brinquedos deixados para trás pelo “bandinho”. Abandonaram também objetos que pegaram para brincar: talheres, manta de bebê e até um penico, daqueles esmaltados, que eu não via há uns 30 anos.

30 de maio: O penico desapareceu. Surgiu agora uma colher de pau, o que parece ser uma antena de tevê e uma lista telefônica. De onde as crianças desenterram essas coisas?

7 de junho: Os pequenos viram a vizinha fazendo tricô e não saem mais da casa dela. Querem aprender a tricotar. São sete crianças desmanchando os novelos, usando as agulhas como espadas e, o que é pior, fazendo perguntas sem parar.

13 de junho: Sugeri à vizinha que não atenda a campainha. As crianças continuam querendo aulas de tricô, especialmente a menorzinha, de quatro anos.

24 de julho: Meu filho grita com as crianças dia sim, dia não. Elas brincam lá fora das sete da manhã às nove da noite, sempre aos berros. Vou ter que mandá-lo desrespeitar o isolamento e dar umas voltas. Lá fora o vírus, aqui dentro a turba ensandecida...

31 de julho: O menino mais velho da gangue (uns oito anos) gritou tanto, tão alto e ininterruptamente, que imaginei uma fratura exposta ou picada de cobra. Mal cheguei à porta e ouvi a voz dele chamando os outros para brincar novamente. Nem chorando estava! Por essas e outras é que me coloco no lugar dos pais e rezo por eles.

4 de agosto: Quando veem algum morador, os pequenos bárbaros querem saber onde vai e o que vai fazer. Há pouco fui levar o lixo e cinco deles me seguiram: “quantos anos você tem?”, “por que você é tão baixinha?” Voltei correndo para dentro.

19 de agosto: A Marci veio devolver um livro. Nem entrou, trocamos poucas palavras. Quando chegou ao portão, foi abordada por uma das menininhas. Pobre amiga! Ouviu meia hora de monólogo naquele tatibitate de quem tem quatro anos. Fiquei olhando de longe. Estou ficando esperta...

7 de setembro: Me sinto como um herói de filmes de zumbi. Mal ponho o nariz para fora, eles se aproximam.

19 de setembro: Coitada da vizinha! Ofereceu brigadeiro para a legião de recém-alfabetizados. Agora eles aparecem todo dia e até fazem exigências! Hoje quiseram bolo do chocolate. Não sei do que seriam capazes se ela não corresse para a cozinha...

18 de outubro: Acordei assustada por causa de um pesadelo: às três da madrugada, as crianças brincavam lá fora, no escuro, gritando como sempre, e eu trancada em casa, com medo de sair. Será que chegaremos a esse ponto? Não duvido de mais nada.

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