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Receita contra a ressaca e outros clássicos do carnaval brasileiro
| Foto: Felipe Lima

Enquanto escrevo, espero a chuva, o vento ou um milagre que diminua o calor. Para imaginar o que sinto neste momento, visualize a palavra “canícula” escrita em grandes letras de neon vermelho a brilharem sobre o deserto. Você e eu nos arrastamos, temos a boca seca, os pés pesados e o letreiro infernal nos avisa lá de cima: não há saída para vocês, tolos humanos!

Segundo me informa a revista National Geographic, a palavra “canícula” surgiu na Grécia e se referia à época do ano em que a constelação do Cão Maior alcançava uma posição central no céu, o que correspondia aos dias mais quentes do ano no Hemisfério Norte, os tais “dias de cão”.

Escrevo em um dia de cão, que pode muito bem ter se transformado em um dia de chuva agora que você me lê. São assim os verões neste país tropical onde vivemos.

As nossas canículas coincidem às vezes com o carnaval. Carnaval combina com canícula. Não combina com chuva e frio, o que explica a distribuição geográfica da folia no Brasil.

Carnaval combina com canícula. Não combina com chuva e frio

Ganhei um livro de 1945 intitulado Antologia de Carnaval, que folheio agora. São textos escritos há cem anos, pouco mais ou pouco menos. Escrevia-se muito bem há cem anos e o carnaval já era o que é. Provavelmente mais louco, insano mesmo. A julgar pelos cronistas da época, ninguém estranhava, ninguém criticava. Está lá Machado de Assis dizendo que “o dia em que o Rei Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba”. Ele cita o Eclesiastes para afirmar que o que é já foi, e o que foi é o que há de vir.

Pois naquelas descrições de velhos carnavais, alguns velhos de séculos, está a comprovação de que o carnaval de hoje já foi o carnaval de ontem: são relatos de folias que avançam Quaresma adentro, bloquinhos que atraem milhares em um ano e desaparecem no outro, bebedeiras, receitas mirabolantes para curar bebedeiras. “Canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada”, ensinava Artur Azevedo. Mas, se a ressaca durar mais um dia, “que tome um laxante”. Houve um tempo em que todos os problemas se resolviam com uma passagem bem-sucedida pelo vaso sanitário.

Olavo Bilac diz que o verdadeiro carnavalesco é uma raça à parte “que conta os anos de vida pelos carnavais que tem atravessado”. Bilac os admirava, talvez até os invejasse, porque conheceu alguns homens bem estabelecidos que viviam o carnaval como um hiato, uma síncope. Gosto da escolha de palavras feita por Bilac. Seu carnavalesco é um herói porque assumiu seu destino: “ei-lo que se despede dos seus, e parte para o delírio, com os olhos acesos em febre e o coração rufando”.

Então vem Graça Aranha festejar a festa da “inversão universal. Homens-fêmeas. Mulheres-machos”. Ele observa, como vários desses autores do século 19, as origens religiosas da festa e a influência africana: “Missa negra, tragédia negra, magia negra. Triunfa a negra, triunfa a mulata”. Eu, que nunca tinha lido Graça Aranha, gostei do estilo dele.

Luís Edmundo narra um episódio que aconteceu no carnaval de 1902. Uma verdadeira cena de ópera. Um bloco carnavalesco fazia seu percurso pelas ruas do Rio quando foi atacado cruelmente pelos membros de outro bloco. “A faca. A tiro” – escreve Luís Edmundo, revelando o estilo literário que lhe valeu uma das primeiras cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Dois foliões morreram. No dia seguinte, o bloco levou seus dois mortos até o cemitério em um cortejo condizente com as circunstâncias da tragédia. Todos vestiam fantasias “as mais escandalosas e berrantes” e seguiam em silêncio. Deve ter sido uma visão impressionante, especialmente quando, um a um, outros blocos encontraram o cortejo. Homens travestidos, palhaços e arlequins, marinheiros e baianas formaram continência para os caixões e depois os seguiram. Reinava o silêncio, os sacos de confete escondidos embaixo dos braços. Até que pela altura de Botafogo, alguém teve a ideia de fazer soar “sobre a pelica de seus tambores, rufos melancólicos, em ritmada e fúnebre surdina: pram... pram... pram...” Outros músicos o imitaram. Em seguida, conta Luís Edmundo, rompeu uma voz misteriosa:

“A toada impressiona. Comove. É profunda. É serena. A princípio desenha angústia. É pranto e é sofrimento. Depois, desenrolada, ganha um ímpeto mais vivo, mais decisivo. Aquece. Arredonda-se. Alteia-se. Destaca-se. Domina.” Assim, com essas frases curtíssimas, o cronista de cem anos atrás descreve como o canto triste contaminou aqueles foliões contidos, que vão cedendo, lentamente, quando o primeiro reco-reco se manifesta e é seguido pelos pandeiros e chocalhos. Os quadris não resistem e se movem, saracoteiam. Todos dançam e cantam e assim entram no cemitério. A cena termina com um folião fantasiado de morte, segurando uma tíbia (que o cronista especula que talvez fosse autêntica e arranjada por ali mesmo), que sobe em um mausoléu e é ovacionado pela turba que chora e canta. Lá do alto, talvez agarrado a um anjo de mármore, ele grita: “Viva o carnaval!”

Bravo!

Naquelas descrições de velhos carnavais, alguns velhos de séculos, está a comprovação de que o carnaval de hoje já foi o carnaval de ontem

Mas nem todo mundo acha graça na festa. Dante Milano confessa: “A alegria me dá tristeza”. Jorge de Lima fala de dois homens que se esforçam para arranjar alegria, mas não conseguem, nem recorrendo à cachaça. A excitação da festa piora o estado do namorado ciumento e ele mata a porta-estandarte no famoso conto de Aníbal Machado que antecipa as notícias que lemos hoje sobre feminicídio. O contista se demora na descrição da reação das mães à notícia de que uma moça tinha sido morta: “Todas se levantam e saem a campear a filha. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada”.

Lá se vão quase cem carnavais desde que Rubem Braga escreveu: “As amplas massas imploram. As implorações não serão atendidas. As amplas massas amaram. As amplas massas hoje estão arrependidas”. Parece um poema, mas era uma despretensiosa crônica publicada em uma Quarta-feira de Cinzas.

O conto Antes do Baile Verde, da Lygia Fagundes Telles, não está no meu velho livro. Foi publicado muito mais tarde, em 1970. Lembro dele porque é uma referência forte de carnaval para mim. Eu mesma só “pulei” carnaval quando era pequena, nas matinês de um clube do interior. Não tenho nada contra, só nasci em situações desfavoráveis à folia. Estou acostumada a ver os três dias de festa passarem em brancas nuvens e as pessoas que me cercam ficam muito confortáveis com o silêncio. Voltando ao Baile Verde, a empolgação das duas moças que preparavam a fantasia enquanto os sons da festa entravam pela janela é para mim a imagem eterna desse carnaval de pessoas comuns que sonham se fantasiar e se divertir uma vez no ano. Mesmo que haja um drama ocorrendo no quarto ao lado.

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