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Felipe Lima
Felipe Lima| Foto:

Na rua tranquila, ainda mais pacata durante o mês de janeiro, às vezes cumprimento a faxineira que espera o ônibus ao fim da tarde ou o senhor que caminha apoiado na bengala e que faz uma pausa na subida. Outro dia é a moça que leva o golden retriever para passear e é arrastada por ele. Cumprimentava o homem que recolhia lixo reciclável usando um carrinho de supermercado. Ele me respondia muito timidamente. Nas ruas dos bairros e das cidades pequenas, estranhos não são estranhos, são vizinhos com quem ainda não tivemos tempo de conversar. Por isso fiquei triste ao saber que o catador de recicláveis deu fim à própria vida em uma manhã de domingo. Outro desses conhecidos com quem cruzo ao acaso me contou.

Quando caminhamos em uma rua sem movimento e passamos por alguém, não há como ignorar aquela presença humana da forma como ignoramos ao cruzarmos com dezenas de pessoas em cada quadra do Centro.

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Um dos livros interessantes que li no ano passado foi A História do Caminhar, de Rebecca Solnit – recomendo a leitura. Neste longo ensaio ela fala de urbanismo, de paisagismo, do artificialismo da vida moderna, do perambular como um privilégio masculino (mulher não perambula, faz trottoir…), dos filósofos-andarilhos. No fim do livro, entre várias citações ao hábito de caminhar, encontrei esta, que Solnit retirou do jornal americano San Francisco Chronicle: “Todos já ouvimos falar desse futuro que, pelo jeito, será muito solitário. Nesse novo país, a linha de raciocínio é que todos vão trabalhar em casa, fazer compras em casa, assistir a filmes em casa e se comunicar com os amigos por videofones e e-mail. É como se a ciência e a cultura tivessem evoluído com um único propósito: evitar que precisemos tirar o pijama”.

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Na Inglaterra, o governo de Theresa May encarregou uma ministra de fazer algo pelos atingidos pelo “futuro solitário” que virou presente, em especial os idosos. As comodidades citadas pelo Chronicle (“assistir a filmes em casa e se comunicar com amigos”) não resolvem o problema que o estilo de vida atual – no qual a tecnologia tem uma influência enorme – agudiza. Encontro um belo artigo no jornal The Guardian, assinado por Stewart Dakers, que define assim esse sentir-se só que preocupa os ingleses: “Tem a ver com pertencer e pertencer tem a ver com fazer parte de algo, e fazer parte tem a ver com ser útil, em tomar parte de uma tarefa. Solidão não tem a ver com ser inútil, mas sim com não ter seus talentos valorizados. Tem a ver com ser ignorado, desapontado, privado de um papel”.

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São Paulo nas Alturas, de Raul Juste Lores, conta a história dos arquitetos e empresários que fizeram a verticalização de São Paulo. Houve momentos iluminados, em que prevalecia a vontade de criar, de fazer algo novo e com a alma do Brasil. A São Paulo dos anos 40 e 50 queria ser moderna e para isso contava com a ousadia de arquitetos imigrados, fugidos do pós-guerra europeu ou de campos de concentração. Colocavam no mesmo prédio salas comerciais, quitinetes e grandes apartamentos. Abriam galerias comerciais conectadas às calçadas para que o privado e o público se misturassem. As pessoas podiam interagir, circular como se aquela rua fosse tudo de que elas precisavam. Foi um sonho que não durou muito.

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Agora leio O Rumor do Tempo, de Óssip Mandelstam. O título me faz imaginar como seria se, por algum fenômeno físico, o passar do tempo produzisse mesmo um som, um rumor, um zunido, um cicio, um murmúrio. Nós aqui, tentando nos concentrar no café da manhã, na conversa com o amigo, no trabalho, e lá no fundo aquele zunido, aquele murmúrio do tempo que passa. Seria apavorante e viveríamos ainda mais alarmados do que já vivemos pela constatação de que o tempo não para.

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O livro de Mandelstam, um russo que acreditava na revolução e foi perseguido por Stálin, registra as lembranças da infância de um menino. Uma infância passada na Petersburgo czarista, em que concertos de Tchaikovsky eram atração para multidões enlouquecidas. Memórias de meninos e meninas são sempre milagrosas porque, como Mandelstam diz, na infância há “mais essencialidade e organicidade que na vida dos adultos”. Na infância tudo é espanto.

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Por que os concertos causavam tanta comoção e hoje são procurados por tão poucos? Suponho que porque na infância de Mandelstam a única forma de se ouvir música era em execuções ao vivo. O gramofone já existia, mas quantas pessoas teriam um aparelho daqueles em casa? Quantas gravações estariam disponíveis? Então, ouvir a banda militar, a orquestra ou o organista da igreja era um momento especial. As pessoas se reuniam para compartilhar seu êxtase diante da música. A prática persiste, mas enfraquecida pela comodidade de, como registrou o San Francisco Chronicle, fazer tudo sem tirar o pijama.

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