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Pedro Caetano da Silva, o avô Pedrinho, é o senhor sentado, ao centro da foto, ao lado de sua esposa Bernardina e cercado de filhos, filhas e netos.
Pedro Caetano da Silva, o avô Pedrinho, é o senhor sentado, ao centro da foto, ao lado de sua esposa Bernardina e cercado de filhos, filhas e netos.| Foto: Arquivo pessoal

Foram muitos os que disseram que toda pessoa morre duas vezes: a primeira, quando ocorre a morte física; e a segunda, quando se é totalmente esquecido. Ou, como colocou Roland Barthes ao perder a mãe, em 1977:  “A morte, a verdadeira morte, é quando morre a [última] testemunha”. Barthes entendia que sua mãe só desapareceria definitivamente quando desaparecesse ele próprio, a última testemunha da vida dela, em quem a lembrança da voz, dos pensamentos e dos sorrisos daquela mulher persistiriam.

Cada vez que a imagem da mãe passava, por fugidio que fosse o momento, pela memória do filho; cada vez que alguma frase que costumava repetir saía naturalmente da boca do filho, aquela senhora ressurgia, ainda que de forma imaterial e passageira.
Para o ser humano, a vida é memória.

Por isso, ao escrever pequenas anotações sobre minha família, me impressionei com a ausência de informações sobre meu avô paterno. Sobre o avô Pedrinho, quase nada se conta. Ele aparece na foto do casamento de sua filha Alice, nos anos 1940. Era mencionado pelos filhos de forma carinhosa. Referiam-se a ele pelo diminuitivo porque carregava o mesmo nome do pai: Pedro Caetano da Silva. Esta é uma dedução minha. Ninguém me disse, como quase nada se disse sobre este avô que morreu muito tempo antes da esposa e que teve contato com poucos netos. Essa sucessão de fatos fez com que a presença da avó prevalecesse e, consequentemente, a presença da família dela, os Machado Homem. O avô Pedrinho e seus familiares ficaram ali, naquele ponto onde ele, a última testemunha, nos deixou.

Meu avô Pedrinho é um exemplo de como a vida na memória é persistente, como se agarra às novas gerações. Ele faz parte de uma história e sempre haverá alguém que sentirá necessidade de conhecer a história toda

“Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome.
Os nomes, embora mais resistentes do que a carne, rendem-se ao poder destruidor do tempo, como as lápides.”

Os versos são de Manuel Bandeira. Novamente, a ideia da morte dupla, em etapas.

Gosto desta frase da artista plástica Olga Bilenky, dita em entrevista sobre a escritora Hilda Hilst, de quem foi amiga durante muitos anos: “Eu sou essa pessoa que fez parte daquele tempo, e que por algum erro do destino ficou para contar a história”.

Olga se descreve como um elo de ligação. Seu tempo, o que passou; sua presença aqui, um acidente. Mas é ela que mantém vivo o mundo desaparecido, onde se sentava em um sala de estar com a amiga brilhante para falar de arte e de amores. A amiga se foi, mas volta pelas palavras de Olga.

Meu avô Pedrinho é um exemplo de como a vida na memória é persistente, como se agarra às novas gerações. Como um gene teimoso que não se manifesta em duas gerações e depois reaparece, poderoso, na terceira. Seus conterrâneos desapareceram há décadas, mesmo seus filhos não podem mais falar deles, seus netos não têm muito o que dizer. Mas algo ficou e ressurge teimosamente porque ele faz parte de uma história e sempre haverá alguém que sentirá necessidade de conhecer a história toda. Em outras palavras, de conhecê-lo.

Consegui a parceria de uma parente que ainda vive em Minas Gerais, lá por onde nasceu e cresceu o vô Pedrinho, e que se prontificou a procurar referências a ele nos registros oficiais.

Se conseguirmos, serão algumas datas, o que tem muita importância na historiografia, e um pouco menos para nós, familiares, que, preferíamos ouvir alguma historieta, qualquer que fosse, sobre ele.

“A memória deve ser estruturada em datas. Não pode haver coerência ou sequência nela a menos que seja ancorada no tempo.” As palavras são de Martha Gelhorn, que era jornalista. Também era escritora, poeta e pessoa sensível e por isso logo adiante admite: “Mas eu não tenho noção do tempo nem controle sobre minha memória. Não posso ordená-las antes de falar delas. Inesperadamente, ela me traz imagens desconectadas do que veio antes e do que vem depois”.

As lembranças surgem como criaturas teimosas que não aceitam serem deixadas de lado. O que foi vivido ainda existe em algum lugar e, vez por outra, irrompe.

A maioria de nós depende totalmente da memória de quem nos ama para sobreviver um pouco mais

O filósofo italiano Paulo Rossi diz que a memória é entendida na tradição filosófica como persistência. Por isso – veja que interessante –, estudar a memória significa entrar num campo de discussões que envolve o esquecimento e uma área muito sutil, a reminiscência. A reminiscência, ele explica, é a capacidade de recuperar algo que se tinha e que se perdeu. Devagarzinho, imagem por imagem, palavra por palavra, que vão voltando enquanto se rememora.

Podemos “reminescer” até sobre a experiência de ouvir as reminiscências de outros. De nossos pais e avós, por exemplo. As reminiscências dos outros às vezes são tão vívidas que nos confundem, como se tivéssemos estado lá, testemunhado aquela cena, da mesma forma que um grande livro nos faz ver situações que nunca aconteceram. Reinventamos essas experiências alheias, redesenhamos as cenas com a nossa imaginação. Recontamos como se tívessemos certeza sobre falas e fatos. Elas não são o que de fato foram e, mesmo assim, sobrevivem. Ou melhor, só assim elas sobrevivem.

Voltando ao meu avô Pedrinho, que era agricultor. As pessoas humildes vivem anônimas e não deixam pistas e registros. Tenho outro avô, o Manoel Machado Homem, que ocupou cargos públicos e foi professor. Foi “pessoa importante” em uma pequena cidade do interior de Minas. Sobre ele há registros, há datas. A maioria de nós está mais próxima da realidade do vô Pedrinho. A maioria de nós depende totalmente da memória de quem nos ama para sobreviver um pouco mais.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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