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Liv Ullmann e Ingmar Bergman. Foto: Wikimedia Commons
Liv Ullmann e Ingmar Bergman. Foto: Wikimedia Commons| Foto:

“Tenho a sensação de ser um preso que, recluso há muitos anos, de repente é atirado para o tumulto da intensidade da vida. E logo se apodera de mim uma curiosidade imperiosa. Tomo notas, observo, mantenho os olhos abertos, tudo me surge irreal, fantástico, amedrontador ou ridículo. Apodero-me então de um grão de tudo isso, talvez nele haja um filme”. (Ingmar Bergman, Imagens)

Lembro-me com saudades de minhas conversas sobre cinema com meu amado pai, que desde 2012 foram interrompidas por sua morte repentina, aos 72 anos. Dr. Antônio da Cruz era um apaixonado pela Sétima Arte, e mesmo quando eu ainda não havia sido despertado para ela, em minha tenra adolescência, ele não se cansava de repetir os filmes de sua vida: A Rosa Tatuada (1955), de Daniel Mann; A Imitação da Vida (1959), de Douglas Sirk; The Fox (1967), de Mark Rydell; Teorema (1968), de Pasolini, são alguns que sempre estavam entre suas referências. Porém, foi Persona (1966), de Ingmar Bergman, um dos que me causaram mais curiosidade; e foi uma janela para um novo mundo quando o primeiro Bergman me chegou às mãos – e não foi Persona, foi Noites de Circo (1953), um de seus primeiros filmes.

Quando os filmes de Bergman começaram a ser relançados no Brasil, lembro como se fosse hoje, meu pai me ligando no trabalho e dizendo: “Estou aqui no shopping e os filmes de Bergman estão em promoção, quer algum?”. Eu, que ainda não tinha Persona, disse a ele: “Traga Persona e algum outro; agora só tenho dinheiro para isso”. Dez minutos depois ele me liga novamente: “Ah! Comprei todos que estavam lá!” – eram 6, se não me engano. “Dividi no cartão e a gente paga junto”. Esse era o meu pai, um homem que não deixava para amanhã o que se podia fazer hoje; ainda mais quando se tratava de cultura e educação. E assim comecei minha coleção de Bergman, que tenho completa – pelo menos o que foi editado no Brasil (44 filmes). Destaco alguns: Sorrisos de Uma Noite de Amor (1955), O Sétimo Selo (1956), Morangos Silvestres (1957), A Fonte da Donzela (1959), Luz de Inverno (1962), Vergonha (1968), A Hora do Lobo (1968), Gritos e Sussur ros (1972), Sonata de Outono (1978) e Fanny e Alexander (1982).

Ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918, em Uppsala, na Suécia, e foi um dos mais prolíficos e geniais mestres do cinema mundial. Suas obras, de forte carga existencialista e psicológica, tratam profusamente de temas como a solidão, a frustração nos relacionamentos – não à toa, pois Bergman, mesmo, foi casado cinco vezes e teve diversos relacionamentos extraconjugais – e a fé (mais precisamente, a falta dela). Um homem atormentado por demônios com os quais teve de lidar a vida toda. Curiosamente, num excelente documentário chamado A ilha de Bergman (2004), ao ser perguntado sobre seus relacionamentos interrompidos, seus olhos marejam, ele vacila e fica sem resposta – visivelmente arrependido do sofrimento que causara a tantas mulheres.

Famoso por trabalhar com os mesmos atores e atrizes em muitos filmes – o que não é incomum nos grandes cineastas –, Bergman tem uma lista de colaboradores da mais alta qualidade, dentre eles: Gunnar Björnstrand (1909-1986), Erland Josephson (1923-2012), Ingrid Thulin (1926-2004), Bibi Andersson (1935), Max Von Sydow (1929) e Liv Ullmann (1938) – esta última, com quem morou e teve uma filha, a escritora Linn Ullmann.

Eu poderia destacar muitos aspectos da vida e obra de Bergman – e, inclusive, já falei de alguns de seus filmes (aqui e aqui) –, mas, nesse pequeno artigo laudatório por ocasião de seu centenário, comemorado no mundo todo nesse mês de julho de 2018, gostaria de destacar seu relacionamento com aquela que, para mim, está entre as três maiores atrizes de todos os tempos: Liv Ullmann.

Liv Johanne Ullmann nasceu em 1938, em Tóquio (Japão), onde seu pai, um engenheiro de aviação, trabalhava à época. Iniciou sua vida artística no teatro norueguês, na década de 1950, e, após algumas atuações no cinema de seu país, conheceu Ingmar Bergman, em 1965, através de sua amiga Bibi Andersson, que já trabalhava com ele desde 1951. As duas protagonizaram Persona (1966), um de seus maiores clássicos, onírico e misterioso. Em seu livro de memórias, Mutações (1977), publicado pela Cosac Naify, Liv diz:

“Pela primeira vez encontrei um diretor de cinema que me deixou desvendar sentimentos e pensamentos nunca reconhecidos por ninguém. Um diretor que ouvia pacientemente, com o indicador na têmpora, e compreendia tudo o que eu tentava exprimir. Um gênio, que criava uma atmosfera em que tudo podia acontecer – mesmo aquilo que eu não sabia a respeito de mim mesma”.

Liv e Ingmar se apaixonaram e passaram a viver na Ilha de Fårö, localizada a poucos quilômetros de Gotland, a maior ilha de Suécia, paraíso inóspito e pedregoso onde realizou as filmagens de Persona e outros de seus filmes. O relacionamento dos dois durou cinco anos de altos e baixos: “Entramos na vida um do outro muito cedo e tarde demais”. Ela tinha 25 anos e ele 46. Ela “procurava a segurança absoluta, proteção. Uma grande necessidade de pertencer a alguém. Ele procurava a mãe. Braços que se abrissem, cálidos e sem complicações […] De certa maneira, cada um de nós semeou uma revolução no outro”. Os dois se amaram e quase se odiaram em Fårö. Após certo tempo, Bergman mostrou uma necessidade vital de isolamento e o impôs também a Liv; fora o ciúme quase doentio, que o levou a construir um muro alto em torno da casa e a proibi-la de sair. Ela passou a viver quase como sua prisioneira.

Bibi Andersson, que também já tinha se relacionado com Bergman, previu o fim triste desse tórrido envolvimento, mas Liv estava cega de paixão: “Olhei para ela lá do céu distante onde eu residia, na qualidade de primeira mulher da terra a amar e ser amada”.

Porém, Bergman disse a ela certo dia: “Tive um sonho a noite passada, que você e eu estávamos dolorosamente conectados”. E era verdade. Após terem se separado, nunca, de fato, deixaram um ao outro. Mesmo após o casamento de Bergman com Ingrid von Rosen – também conhecida como Ingrid Bergman, o que leva à confusão com a grande atriz, dirigida por ele no estupendo Sonata de Outono (1978), juntamente com Liv –, em 1971 (mulher com quem viveria até 1995, quando ela morreu de câncer), eles não se afastaram. O último filme que fizeram juntos, após um lapso de quase 30 anos – o último tinha sido Sonata de Outono (1978) –, foi Saraband (2003), uma continuação de Cenas de um Casamento (1973), roteiro retirado das próprias experiências frustradas de Bergman com Liv e outras mulheres. Foram quase cinquenta anos de amizade. E Liv diz que, em 30 de julho de 2007, ela, que estava na Noruega, sentiu um desejo enorme de vê-lo; fretou um jatinho (coisa que nunca tinha feito) e foi. Ele tinha passado por uma cirurgia no quadril e se recuperava com muita dificuldade. Passaram a tarde juntos. Após ela ir embora, naquela noite ele morreu, dormindo, aos 89 anos.

Liv Ullmann diz que, logo após a separação, sentiu falta dele e se esforçou por restabelecer o contato: “Senti falta da presença diária de Ingmar, mas eu sabia que tinha sua amizade e que cabia a mim, naquele momento em que mais precisava dela, encontrar um novo ponto de contato, onde ambos pudéssemos nos encontrar. Com todas as minhas forças, construí uma ponte entre nós e, depois disso, tudo melhorou”. Além de atuar em seus filmes, Liv ainda dirigiu dois roteiros: Confissões Privadas (1996) e Infiel (2000).

Em 2012, o diretor indiano Dheeraj Akolkar, utilizando trechos de Mutações e de Lanterna Mágica, a autobiografia de Bergman, filmou o belíssimo documentário Liv & Ingmar, no qual ela conta a história dos dois – que, segundo em entrevista recente, diz não se tratar exatamente da história dos dois, mas sobre “o relacionamento de qualquer pessoa”. O filme, realizado grande parte na casa onde eles viveram em Fårö – e onde ele viveu até sua morte –, é muito comovente, e tem seu ponto alto quando ela encontra, dentro de um ursinho de pelúcia que pertencia a ele, um pequeno bilhete que ela tinha lhe enviado havia quinze anos, e ele escondera dentro da roupa do ursinho. Ela chora, nós choramos. E percebemos então que se trata, realmente, do ele disse a ela em certa ocasião, quando ela reclama por ter de falar dele em toda entrevista: “Isso é porque você é meu Stradivarius”.

Nesse sentido, não só a obra de Ingmar Bergman, mas sua relação com Liv Ullmann é um exemplo daquilo que o historiador Robert Conquest disse: “todo mundo é conservador nos assuntos que conhece bem”. Sempre os mesmos atores e atrizes, os mesmos cenários, os mesmos temas, as mesmas músicas – ele tinha um amor profundo por J. S. Bach – e os mesmos amores. Bergman revolucionou o cinema preservando aquilo que ele tem de mais essencial – nas palavras do maior cineasta de todos (é o próprio Bergman que o diz), Andrei Tarkóvski: “a ânsia eterna e insaciável pelo espiritual”.

Por isso, caro leitor, nesta coluna que celebra as Coisas Permanentes, não poderíamos deixar de celebrar o cinema de Ingmar Bergman, esse gênio que, curiosamente, ao final de seus roteiros, numa imitação do que Bach fazia ao final de suas partituras, sempre escrevia SDG – Soli Deo Gloria.

Viva Bergman! Veja Bergman!

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