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“Um verdadeiro pesquisador está consciente de seu saber, mas, sobretudo, de seus desconhecimentos”. (Laurent Schwartz)

Semana passada fomos surpreendido com uma das histórias mais escabrosas dos últimos tempos. A cientista Joana D’Arc Felix de Souza, graduada por um das mais prestigiadas universidades do país, a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp –, com mestrado e doutorado pela mesma universidade, que leciona e tem projetos muito interessantes com alunos da Etec Prof. Carmelino Corrêa Júnior, em Franca (interior de SP), foi pega numa mentira grosseira – e muito grave: a falsificação documental, crime previsto no artigo 299 do código penal.

Sua emocionante história de vida – cuja singularidade a levou, por exemplo, a palestrar em eventos como os prestigiados TED Talks – são o resultado de muito esforço, dedicação e superação, afinal de contas, todos sabemos a dificuldade que é, para quem tem o ensino básico deficiente, passar no vestibular de uma universidade pública. Ela narra, com detalhes que saltam aos olhos, que, por exemplo, aprendeu a ler com 3,5 anos e entrou na universidade aos 14, sempre enfatizando os sofrimentos pelos quais passou – dentre os quais, a fome e o racismo. Joana diz, numa de suas palestras, que durante seu período de pesquisas para o doutorado teve oportunidade de passar uma temporada na Universidade de Clemson, na Carolina do Sul (EUA). E mesmo o seu orientador brasileiro alertou se tratar de uma região muito racista, ela decidiu ir. No entanto, diz que passou lá o pior ano de sua vida, “como um fantasma, invisível”. Terminando o doutorado recebeu um convite para fazer um pós-doutorado em Harvard (EUA), uma das mais importantes universidades do mundo.

Mas essa história comovente começou a ficar estranha quando os jornalistas Felipe Resk e Renata Cafardo, do Estadão, a entrevistaram, no ano de 2017, a fim de realizarem o seu perfil biográfico e profissional, como outros jornalistas, aparentemente, já tinham feito. O problema é que, como diz Felipe, ao perguntar, já no final da entrevista, a sua idade, ela disse ter 37 anos – quando, na verdade, tinha 54. Felipe achou estranho que ela tivesse mentido e, depois, ao confrontar outras informações, percebeu que, em seu currículo Lattes não continha o pós-doutorado. Questionada, ela disse que não revelou a idade correta pela presença de uma aluna no local, e que enviaria o certificado do pós-doutorado a ele. Recebendo, perceberam tratar-se de um certificado falso. Ao ser questionada novamente, disse que era um diploma feito para uma encenação teatral. Enfim, o castelo de cartas caiu. Harvard negou que ela tenha estudado lá e o orientador, cuja assinatura consta no diploma, negou conhecê-la e que o diploma era realmente falso. Ela tentou consertar, dizendo que, apesar de não ter concluído o curso, teve orientação à distância; mas essa informação também não foi confirmada. Para agravar, descobriram que ela não entrou na Unicamp aos 14 anos, mas aos 17, e que a bolsa de estudos da Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –, que ela diz ter utilizado no período, não existe. Para complicar ainda mais, o FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SP –, a processou, em 2013, por não prestar contas pelo dinheiro recebido para pesquisas sobre reaproveitamento de retalho de couro. Foi condenada, em 2014, a pagar R$ 278.166,19 à instituição; no entanto, apesar dela não ter se pronunciado durante o processo, que correu à revelia, a ação foi arquivada, em 2017, pois ela não possui bens penhoráveis que equivalham ao valor da dívida. A Globo Filmes, que preparava um filme para contar a história de Joana D’Arc, escolhendo Taís Araújo para o papel da cientista – do qual teve de renunciar por não ser, segundo as críticas da militância negra, tão negra quanto Joana D’Arc –, parece que vai desistir do longa.

Por fim, Joana D’Arc Felix, ao se pronunciar sobre o caso, usou de um expediente ainda pior: disse estar sofrendo uma perseguição racista. Em nota publicada em sua conta numa rede social, afirma:

Tudo que foi publicado já está sendo apurado por um advogado ligado ao movimento negro brasileiro, porque tenho certeza que ainda estão achando que os negros(as) ainda têm de viver na senzala, ou seja, estão achando que os negros(as) não podem estudar, não podem ser doutores, não podem desenvolver pesquisa de ponta. Tudo isso em pleno século 21.

Uma saída patética e tristíssima para um caso no qual perdemos todos. Perde Joana Felix, cujo doutorado na Unicamp já faz dela um exemplo excepcional; perde a pesquisa brasileira, que certamente nos faz pensar em quantos casos como esse não existem por aí; perdem os negros brasileiros, que poderiam continuar vendo nela uma inspiração impoluta para vencerem as adversidades; e perde o Brasil, que mais uma vez mostra ser o país do “jeitinho” e da vontade de levar vantagem em tudo. Como disse Sílvio Romero: “A inconsciência, em que a maior parte das pessoas vive, das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade, é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas”.

Mas não quero terminar esse artigo somente repetindo o que todos já disseram. Gostaria de aprofundar uma ou duas questões que, para mim, parecem ser o cerne profundo do problema de Joana D’Arc Felix de Sousa: o fetiche acadêmico e a função das universidades. Problemas tratados por José Ortega y Gasset em duas obras das quais gostaria de comentar alguns pontos contigo, caro leitor.

Em A Rebelião das Massas há um capítulo – A barbárie do “especialismo”– emblemático sobre a produção do que ele chama de homem-massa, de como se propagam as ideias que criam o mocinho satisfeito do nosso tempoDiz Ortega: “Quem exerce o poder social? Quem impõe a estrutura de seu espírito na época? Sem dúvida, a burguesia. Quem, dentro dessa burguesia é considerado como o grupo superior, como a aristocracia do presente? Sem dúvida, o técnico: engenheiro, médico, financista, professor etc. etc. Quem, dentro do grupo técnico, o representa com maior altitude e pureza? Sem dúvida, o homem de ciência”. Mas completa, dizendo: “Pois bem: o homem de ciência é o protótipo do homem-massa”.

Mas quem é o homem-massa de Ortega y Gasset? Ele responde: “O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes. E este tipo de homem decide em nosso tempo”. Ortega não fala das realizações comuns, de, por exemplo, em nosso caso aqui, a conquista de um título acadêmico; mas das grandes realizações da humanidade, os grandes feitos heroicos. A mediocridade do nosso tempo é, segundo Ortega, produto, antes de tudo, da grande explosão demográfica do século 19, na Europa, que produziu um tipo de ser humano que, apesar de mais são e mais forte que no passado, é muito mais simples em termos de sofisticação intelectual e estofo moral. Diz ele:

Nas escolas que tanto orgulhavam o passado século, não se pode fazer outra coisa senão ensinar às massas as técnicas da vida moderna, mas não foi possível educá-las. Deram-se-lhe instrumentos para viver intensamente, mas não sensibilidade para os grandes deveres históricos; inoculou-se-lhes atropeladamente o orgulho e o poder dos meios modernos, mas não o espírito. Por isto não querem nada com o espírito, e as novas gerações dispõem-se a tomar o comando do mundo como se o mundo fosse um paraíso sem rastros antigos, sem problemas tradicionais e complexos.

Eis o homem-massa, amorfo em meio à multidão de iguais medíocres. Esse tipo de homem tomou conta não só da Europa, mas do mundo. É o triunfo do bárbaro, do néscio sem limites. Mas veja bem, paciente leitor, não falo – nem Ortega – do simples cidadão, do homem comum. Homem-massa, no sentido empregado por Ortega, é aquele que “não tem experiência das próprias limitações”. É o homem cuja vida, cheia das facilidades modernas, tornou-se amputado daquela prudência que caracterizava as civilizações antes do advento da modernidade. Esse homem-massa caracteriza-se por dois traços: “a livre expansão de seus desejos vitais, portanto, de sua pessoa, e a radical ingratidão a tudo quanto tornou possível a facilidade de sua existência […] Herdeiro de um passado extensíssimo e genial — genial de inspirações e de esforços —, o novo vulgo tem sido mimado pelo mundo circunstante”.

De posse do conceito de homem-massa de Ortega, voltemos à questão acadêmica.

Como eu ia dizendo, a questão fundamental que deve ser enfrentada no caso de Joana Felix é essa tara que temos, no Brasil, pelos títulos acadêmicos, característica já satirizada pelos grandes Lima Barreto e Machado de Assis. No famoso conto O homem que sabia javanês, Barreto mostra o quanto as pessoas se impressionam com aqueles que demonstram (ainda que mentindo) certo conhecimento que todos os demais ignoram – feito a roupa invisível do imperador de Andersen. Ou, ao contrário, em O triste fim de Policarpo Quaresma, a inveja por verem alguém que tenha interesses intelectuais por puro diletantismo: “Se não era formado, para quê [tantos livros]? Pedantismo!”. Brás Cubas, de Machado, faz troça através do desprezo que seu anti-herói tem pelas convenções acadêmicas:

A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, — principalmente de saudades […] No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.

No Brasil, o notório saber é desprezado, enquanto um diploma é sinônimo de conhecimento e status – ainda que sejas um Brás Cubas; e uma pós-graduação, então, te coloca num panteão privilegiado. Joana Felix sabia disso. E apesar da vida acadêmica brasileira ser um verdadeiro empecilho para a pesquisa séria e responsável – aquele mundo de revistas acadêmicas, com as suas qualificações bizarras, nas quais é possível encontrar um sem número de artigos medíocres –, quem consegue se aboletar num departamento, com uma bolsa de estudos/pesquisa, pode ter aí um meio de viver uns bons anos com um salário que pouquíssima gente ganha no país. Muitos fazem disso seu ganha-pão. A revista Veja publicou recentemente, uma matéria sobre o assunto, e a coisa é de doer:

A tese central é que, na ciência e na pós-graduação, quantidade não gera qualidade. O modelo de expansão do ensino superior e da pós-graduação – como de resto todo o modelo geral do “avanço” educacional no país – foi baseado na ideia de mais, mais e mais. No caso do ensino superior ainda houve um complicador: o modelo da expansão estava baseado no conceito da “Universidade” como paradigma (único) e no princípio (inscrito na Constituição brasileira) da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Como consequência, todo professor precisa ter mestrado ou doutorado. Resultado: produção em massa de mestres e doutores. Mesmo a flexibilização de modelos intermediários de faculdades isoladas e centros universitários ficou marcada pelo formalismo das exigências acadêmicas. Não devemos perder o espírito crítico nem o senso do ridículo pelo fato de termos alguns exemplos de sucesso. O ponto de partida é saber que o país não tem nenhuma universidade situada entre as 300 melhores do mundo. E apenas três entre as 500 melhores. Ou seja, a esmagadora maioria dos universitários brasileiros matriculados nas nossas “boas universidades” não frequenta ambientes nem convive com pesquisadores e instituições de ponta. Estamos na caverna de Platão.

É nesse ambiente que se desenvolve aquilo que Ortega y Gasset chama de “barbárie do especialismo”, no qual proliferam o tipo de pesquisador que “conhece apenas determinada ciência, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber”. Esse é o especialista que transforma a realidade acadêmica num ambiente fechado em si mesmo, que vive a discutir o sexo dos anjos e a publicar artigos inúteis para manter a bolsa de estudos. O especialista, segundo Ortega, “sabe muito de bem seu mínimo rincão de universo, mas ignora, basicamente, todo o resto”; e coloca em evidência uma verdade aterradora:

[…] outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é ‘um homem de ciência’ e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio. E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir – e isto é o paradoxal – especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia o levará a querer predominar fora de sua especialidade.

É nesse antro – que reflete impressionantemente o Brasil atual, apesar de ser o retrato da Espanha de Ortega y Gasset de 1930 – que muitas Joanas D’Arcs são produzidas ano a ano. Evidente que generalizo, que certamente há excelentes pesquisadores e cientistas no Brasil. Mas o que ocorreu, na verdade, é outro fenômeno de que trata Ortega y Gasset: a universidade perdeu-se de sua missão. Aquele ambiente científico transmissor de cultura de outrora não existe mais, pois foi transformado num centro de profissionalização e de pesquisa, criando um problema paradoxal. Diz Ortega, em A missão da Universidade:

O ensino superior consiste, portanto, em profissionalismo e pesquisa. Sem afrontar-nos agora o tema, assinalemos por alto nossa surpresa ao vermos juntas e fundidas duas tarefas tão díspares. Sim, porque não há dúvida: ser advogado, juiz, médico, farmacêutico, professor de latim ou de história numa escola de 2.º grau são coisas bem diferentes de ser jurista, fisiólogo, bioquímico, filólogo etc. Aqueles são nomes de profissões práticas, estes, de exercícios puramente científicos. Por outro lado, a sociedade precisa de muitos médicos, farmacêuticos pedagogos; no entanto, só precisa de um número reduzido de cientistas. Se necessitasse verdadeiramente de muitos destes seria catastrófico, porque a vocação para a ciência é especialíssima e infrequente.

Isso em oposição, como eu disse anteriormente, à transmissão de cultura, cuja função, como diz Ortega, é ajudar “o homem [a] viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido ou um aviltamento radical”. Esse ideal holístico foi totalmente trocado pela profissionalização e pela pesquisa, cujo o resultado é a fragmentação do homem moderno, o transformando num especialista, em geral, inculto e moralmente inferior.

No entanto, quantos pesquisadores produzimos por ano? Para os padrões internacionais, não muitos – algo em torno de 18 mil doutores, mas nem todos se tornam pesquisadores. Terem focado na quantidade e não na qualidade, certamente faz com que não consigamos ser levados a sério – ou , pelo menos, relevantemente a sério – no mundo. O caso de Joana não é diferente; tanto que até seu antigo orientador questiona a qualidade de seu trabalho: “Não confio nos resultados dela. Ela fala muito, mas comprova muito pouco”. Isso é tudo muito triste. Pois percebemos que ela não é somente fruto de suas escolhas, mas também, para usar um termo de Ortega, de suas circunstâncias.

Não sendo mais as universidades centros de verdadeira cultura, como eram no tempo de sua criação no Ocidente – onde se produzia um tipo de conhecimento que “era o sistema de ideias sobre o mundo e a humanidade que o homem de então possuía” e o repertório de convicções que norteava sua existência –, mas somente fábricas de diplomas e de cientistas que vivem às custas de bolsas de estudo sem produzir nada de relevante, resta-nos, portanto, administrarmos o susto de, vez por outra, termos de lidar com nossa duríssima realidade através de exemplos fraudulentos – e tristes, muito tristes – como o de Joana D’Arc Felix de Sousa.

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