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O diretor de cinema Andrei Tarkovsky.
O diretor de cinema Andrei Tarkovsky.| Foto: Wikimedia Commons

O seu testemunho se situa, para mim, entre as ações mais importantes da Arte Contemporânea. É muito próxima, para mim, a sua impressão de horror, de sangue, de abandono que nos moldaram. Estou próximo também do sentimento de que é impossível, que não se pode, mas que seria necessário melhorar, eliminar, mudar tudo isso. A sua aceitação plena da amargura me é muito próxima. A sua dor e a sua esperança também. (Lev Anninsky, crítico literário russo, em carta a Andrei Tarkovski)

Foi tardiamente que me dei conta da “arte do cinematógrafo” – como gostava de chamar o grande diretor Robert Bresson, sobre o qual já falei aqui, nesta Gazeta do Povo; Para mim, há não mais que, sei lá, vinte anos, o cinema era somente entretenimento, um passatempo. E foi, mais uma vez, meu saudoso pai que, ao sempre repetir, em nossas conversas, os filmes que mais lhe haviam marcado – dentre eles Persona, de Bergman, Teorema, de Pasolini, e The Fox, de Mark Ridell –, que fui percebendo que se tratava de uma arte capaz não só de entreter, mas de – como faz a literatura – formar o nosso imaginário. Uma arte capaz de comunicar beleza; que, através da totalidade de sensações que provoca, pode nos aproximar daquela “purificação das emoções” (katharsis) da qual fala Aristóteles, ou mesmo da “obra de arte total” da qual falava Richard Wagner. E que, “como nenhuma outra arte” – nas palavras daquele que, para mim, é o maior cineasta de todos os tempos, Andrei Tarkovski – “amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa – e não apenas a enriquece, mas a torna mais longa, significativamente mais longa”.

O nome de Tarkovski chegou a mim através de um amigo, que, lhe exaltando a importância como cineasta, me fez sair à procura de seus filmes. Curiosa e, talvez, tragicomicamente, o primeiro que assisti (pois foi o primeiro DVD que encontrei) foi a sua obra mais hermética: O Espelho, de 1975. Um filme autobiográfico, repleto de cenas oníricas – que remetem à sua própria infância – e daquilo que é uma de suas maiores marcas: os longos e lentos planos-sequência. Ao terminar de assisti-lo, fiquei por um tempo parado em frente à TV sem saber o que pensar, mas profundamente impactado pelo tinha visto. Minha conclusão mais imediata foi: um sujeito não faria um filme tão impenetrável assim por mero capricho; deve haver algo que não compreendi – ainda; e resolvi refletir um pouco e assistir novamente após algum tempo. Algo que chamou muito a minha atenção foi a recitação de poemas – de autoria de seu pai, o proeminente poeta russo Arseni Tarkovski –, durante algumas cenas, coisa que eu nunca tinha visto. Também me impressionou bastante a absoluta acuidade estética do filme, com cenas que se assemelhavam a pinturas.

Já perdi a conta de quantas vezes assisti O Espelho, mas o fato é que Tarkovski se tornou, para mim, um diretor insuperável. Não só por seus filmes, mas por sua vida, de um artista totalmente consciente de sua vocação e da importância de sua arte; que viveu e morreu por ela. Bresson, já citado e por quem Tarkovski tinha profunda admiração – e com quem dividiu um prêmio especial do júri, em Cannes, em 1983 – recomenda, em seu Notas sobre o cinematógrafo (Iluminuras), que os filmes sejam construídos “sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”, o que soa escandaloso para quem gosta de ação e de grandes sobressaltos; mas para um cineasta autoral, a estética cinematográfica é única, e aquilo que é representado na tela, como diz o próprio Tarkovski em seu emocionante Diários (publicado pela É Realizações), “é impossível em qualquer outra forma de arte. Isto é, o cinema é algo que pode ser criado só pelos meios do cinema, e apenas do cinema”. Foi compreendendo isso que minha admiração pelo chamado cinema de arte se consolidou. E o maior expoente dessa perspectiva é, sem dúvida, Andrei Arsenyevich Tarkovski.

Tarkovski nasceu em 4 de abril de 1932, na aldeia de Zavrazhye, distrito de Ivanovo, na Rússia. Filho, como dito anteriormente, do poeta Arseni Alexandrovich Tarkovski, e de Maria Ivanova Vishnyakova, formada em artes e revisora editorial – cujas aparições em O Espelho são muito marcantes; graduou-se em Cinema em 1960, com o filme O rolo compressor e o violinista, e se tornou um dos mais cultuados diretores de seu tempo. Sua filmografia não é extensa – realizou apenas sete longas-metragens –, mas profunda e sofisticada. Sua visão artística é fundamentada por uma espiritualidade marcadamente cristã, ortodoxa e mística  (como em Dostoiévski e Pável Floriênski). Nas palavras acertadas do crítico Antonio Gonçalves Filho, em seu A palavra náufraga (Cosac & Naify): “o caminho que o cineasta Andrei Tarkovski percorreu se assemelha a uma peregrinação, através de imagens, a um lugar sagrado […] Salvar o mundo pela beleza foi uma tarefa que Tarkovski tentou cumprir como sacerdote, um homem religioso que via no cinema um ícone, fragmento divino do Cosmo”. Mas o mais importante documento de seu compromisso artístico é seu livro Esculpir o tempo (Martins Fontes), uma das obras mais maravilhosas que li em minha vida. Lembro-me de terminá-lo como quem vê um amigo partir e já sentindo saudade. Tive vontade de voltar ao início e começar de novo; mas o fato é que nunca mais deixei de lê-lo.

Foi com Esculpir o tempo que, finalmente, compreendi não só O Espelho, mas toda a obra de Tarkovski; foi lendo suas preciosas observações que descobri o verdadeiro papel do artista e sua crítica à arte contemporânea, dessacralizada e utilitária. Que o cinema tem uma relação íntima não só com a pintura, mas com a poesia; e que, para ele, trata-se da “mais verdadeira e poética das formas de arte”. E que, na linguagem cinematográfica, a forma tradicional de se narrar uma história pode ser substituída por aquilo que Roman Jakobson chama de função poética da linguagem, na qual a imagem se volta para si mesma e não para o seu conteúdo. Nas palavras de Bresson: “submeter o conteúdo à forma e o sentido aos ritmos”. Tarkovski expressa bem isso numa nota de seu Diário: “É preciso encontrar e desenvolver um princípio que possa afetar o espectador de um modo individual, que faça de uma imagem 'total' uma imagem 'privada', como é o caso em literatura, pintura, poesia, música. E o segredo, pelo que me parece, à o seguinte: mostrar o menos possível para que, desse 'menos', o espectador possa fazer, ele mesmo, uma ideia do 'todo'. A imagem do cinema, em minha opinião, deve se basear nisso”. E ao discutir o trabalho do diretor e a imagem cinematográfica, ele é ainda mais preciso – aplicando o termo que dá nome à obra:

A criação artística exige do artista que ele 'pereça por inteiro', no sentido pleno e trágico destas palavras

Qual é a essência do trabalho de um diretor? Poderíamos defini-la como “esculpir o tempo”. Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela — do mesmo modo o cineasta, a partir de um “bloco de tempo” constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo de que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica.

Quando assistimos a obras-primas como Andrei Rublev (1966), que conta a história do maior pintor de ícones da Rússia, nos damos conta do caráter meditativo do cinema de Tarkovski, o quanto ele se preocupava com essa relação do tempo como “a essência do cinema”. Ele diz: “para mim, não se trata de uma maneira de filmar, mas uma maneira de reconstruir, de recriar a vida”. Quando partilhamos do sentimento de solidão e desespero das desventuras na Zona, em Stalker (1979) – sobre o qual já falei aqui –, somos inseridos numa atmosfera mística do artista como um “servo”, como alguém vocacionado a levar adiante uma mensagem profética, de salvação pela arte. Diz Tarkovski, no Diário: “O talento não é dado por Deus, mas Deus condena o homem a levar a cruz do talento, pois o artista é uma criatura que tende (de um modo que não é forçado, mas genético, cíclico, em um vasto espaço em um tipo especial de seu nicho ecológico particular) para a posse da verdade suprema”. E complementa, em Esculpir o tempo: “A única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria vocação, a presteza em servir e a recusa às concessões. A criação artística exige do artista que ele 'pereça por inteiro', no sentido pleno e trágico destas palavras. E assim, se a arte carrega em si um hieróglifo da verdade absoluta, este será sempre uma imagem do mundo, concretizada na obra de uma vez por todas”. A crítica ao cientificismo, em Solaris, é fruto de uma preocupação que já havia sido tema de ensaios de Chesterton e da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis – tema de minha dissertação de mestrado, cuja ideia central pode ser lida aqui. Tarkovski é preciso:

Solaris tratava de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou não, a adquirir e dominar mais uma porção de conhecimento. A ânsia infinita do homem por conhecimento, que lhe foi dada gratuitamente, é uma fonte de grande tensão, pois traz consigo ansiedade constante, sofrimento, pesar e desilusão, já que a verdade última nunca pode ser conhecida. Além disso, foi dada uma consciência ao homem, o que significa que ele é atormentado quando suas ações infringem a lei moral, e, nesse sentido, até mesmo a consciência envolve um elemento de tragédia.

Nostalgia (1983), obra que exala todo o sentimento de exílio e saudades da pátria que tanto sofrimento lhe causou, é um filme belíssimo, melancólico, que acabou se tornando seu primeiro, digamos, testamento artístico, pois ele não voltaria mais à União Soviética até sua morte, em 1986. O boicote que sofreu, por parte do governo comunista – que impediu que ele vencesse a Palma de Ouro, em Cannes – lhe fez desistir de trabalhar em sua terra natal. Ele diz, no Diário: “Yvonne Babi (redatora chefe das páginas de cultura do Le Monde), filha do famoso Sedoul, também estava no júri, e me disse que [Sergei] Bondarchuk passou todo o tempo denegrindo o meu filme Nostalgia. Bondarchuk sempre foi contra o meu filme, por isso, naturalmente foi enviado a Cannes para desaprová-lo. Embora todos os funcionários que viram da União Soviética tenham dito que pelo menos Bondarchuk iria ser leal. Falaram tanto sobre isso que se tornou claro, para mim, que ele foi enviado para Cannes para impedir que eu ganhasse a Palma de Ouro, [o] que iria aumentar minhas chances de trabalhar no exterior”. O drama que se seguiu foi a árdua luta para trazer seu filho amado, Andrei Jr., para a Itália, onde passou a viver o seu auto-exílio. Andrei só foi liberado para visitar o pai em 1986 – após várias intervenções de autoridades estrangeiras e amigos russos (dentre eles, o violoncelista Mstiláv Rostropóvich) –,  quando este já estava gravemente doente, com câncer no pulmão.

O Sacrifício é seu segundo testamento artístico, pois foi realizado quando ele já estava sofrendo com a doença, embora sem diagnóstico. No período de montagem, ele escreveu no seu Diário – mais precisamente em 18 de novembro de 1985: “Estou doente. Bronquite e uma dor na nuca e nos músculos que exercem pressão sobre os nervos. Como resultado, dói o colo e os ombros. Catarro, tosse. E, ao mesmo tempo, é preciso sonorizar o filme. O tempo está se esgotando”. Alguns dias depois (23/11), ele escreve: “Estou bem doente; bastante grave”. Em 13 de dezembro, quando lhe passam o diagnóstico, ele anota: “Está é, verdadeiramente, a sexta-feira negra”. Dois dias depois: “O homem vive e sabe que vai morrer mais cedo ou mais tarde. Mas não sabe quando e por que adia esse momento para algum tempo indeterminado. Isso o ajuda a viver. E eu agora sei. E nada pode me ajudar a viver. E é muito difícil. Mas o mais importante é Lara [Larissa Tarkovskaya, sua esposa]. Como dizer a ela? Como, com as minhas próprias mãos, aplicar esse golpe terrível nela?”.

Sobre o filme, obra máxima, filmada na ilha de Gotland, na Suécia, utilizando grande parte dos colaboradores habituais de Ingmar Bergman – dentre eles, o diretor de fotografia Sven Nykvist, o ator Erland Josephson e o próprio filho de Bergman, Daniel, como assistente de câmera – não me estenderei, uma vez que, em 2012, escrevi um longo artigo sobre ele (que pode ser lido aqui). A única coisa que vale dizer é que é uma experiência absolutamente arrebatadora assistir a esse filme, cujo título se torna profético pela situação pessoal do próprio diretor. Em Esculpir o tempo, Tarkovski esclarece seus motivos:

O que me impeliu foi o tema da harmonia que nasce apenas do sacrifício, da dupla dependência do amor. Não se trata de amor mútuo: o que ninguém parece entender é que o amor só pode ser unilateral, que não existe outra espécie de amor, que, sob qualquer outra forma, não é amor. Se não houve entrega total, não é amor. É impotente, e no momento, é nada. Acima de tudo, estou preocupado com o indivíduo capaz de sacrificar a si mesmo e a seu modo de vida – sem se preocupar em saber se sacrifício é feito em nome de valores espirituais, pelo bem do próximo, para sua própria salvação, ou em nome de tudo isso. Tal comportamento exclui, por sua própria natureza, todos aqueles interesses egoístas que constituem uma base lógica “normal” para a ação; recusa as leis de uma visão de mundo materialista. É sempre absurdo e pouco prático. E, apesar disso – ou, na verdade, justamente por isso – a pessoa que age desse modo realiza mudanças fundamentais nas vidas das pessoas e no curso da história. O espaço que ela habita torna-se um ponto de contraste característico e raro em relação aos conceitos utilitários da nossa experiência, uma área onde a realidade – eu diria – está presente de forma extremamente forte.

Não sei se Tarkovski falava de si próprio, se se via em seu personagem Alexander, mas, realmente, fatos curiosíssimos circundam a vida e a obra deste gênio. Diz ele – que terminou o livro com a doença já em estágio avançado:

No roteiro de Nostalgia, Gorchakov tinha ido para a Itália apenas por uma breve estada, mas ficou doente e morreu por lá. Em outras palavras, ele falhou em seu propósito de voltar à Rússia não por vontade própria, mas por uma imposição do destino. Eu também não imaginava que, depois de terminar Nostalgia, eu permaneceria na Itália: mas, assim como Gorchakov, estou sujeito a uma Vontade Superior. Um outro fato lamentável veio acentuar esses pensamentos: a morte de Anatoli Solonitsyn, que havia desempenhado o papel principal em todos os meus filmes anteriores e que, eu supunha, desempenharia o papel de Gorchakov em Nostalgia, e o de Alexander em O Sacrifício. Morreu da doença de que Alexander foi curado e que, um ano depois, iria me afligir.

No dia 15 de dezembro faz sua última anotação no Diário, dizendo: “Se eu pudesse me livrar agora: 1. das dores nas costas, e depois, 2. nos braços, poderia falar sobre uma recuperação depois da quimioterapia. Mas agora não tenho forças para nada. Aí está o problema”. Andrei Tarkovski morreu em 16 de dezembro de 1986, mas sua obra, genial, permanece viva e deve ser encarada e apreciada como toda grande arte voltada às Coisas Permanentes.

PS.: Os filmes A infância de Ivan, Andrei Rublev, O Espelho, Solaris e Stalker, podem ser vistos, em alta definição, gratuitamente, no canal da Mosfilm, no Youtube.

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