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Detalhe do retrato de Antônio Rebouças pintado por Domenico Failutti.
Detalhe do retrato de Antônio Rebouças pintado por Domenico Failutti.| Foto: Reprodução

Eu disse que qualquer indivíduo que aprendeu a fazer algo melhor do que qualquer outra pessoa – aprendeu a fazer uma coisa comum de maneira incomum – resolveu seu problema, independentemente da cor de sua pele; e que à medida que o negro aprendesse a produzir o que outras pessoas queriam e deviam ter, na mesma proporção ele seria respeitado. (Booker T. Washington)

Em minha trajetória de estudos sobre o negro brasileiro, a descoberta de André Rebouças foi uma espécie de epifania. Por isso ele se tornou, para mim, o maior representante daquilo que reputo ser não só o mais adequado, mas o mais necessário – e, de certo modo, imprescindível – à superação do estigma da escravidão que ainda persegue os negros no Brasil. Rebouças foi um dos maiores gênios da história brasileira e é evidente que se trata de um caso excepcional. Entretanto, é exatamente por isso que devemos seguir-lhe os passos, pois, como disse W. E. B. Du Bois: “a raça negra, bem como todas as raças, será salva por seus homens excepcionais”.

Mas há algo muito particular que me une ao primogênito da família Rebouças; algo, ou melhor, alguém que foi fundamental na formação de seu caráter, e que impulsionou sua brilhante carreira como professor, engenheiro, homem de ciência e abolicionista: Antônio Pereira Rebouças, seu pai. Vejo em André a mesma devoção que tive e tenho por meu saudoso pai, influência sem a qual ele não seria quem foi e eu não seria quem sou. O exemplar self-made man, a cultura superior e, sobretudo, o esforço por ver os filhos em melhores condições que as suas próprias foram características de Antônio Rebouças que também pude ver em seu xará Antônio da Cruz. Não menos importante é o apreço ao Direito, que fez do “velho Rebouças” um rábula – advogado sem diploma, autorizado a exercer o ofício pelo notório saber – experiente e solicitado no Império, e que fez do Dr. Cruz, como era chamado, um contador e advogado notoriamente dedicado.

O Velho Rebouças foi, de certo modo, um protoabolicionista, pois mesmo não lutando pela abolição total, tinha consciência de que o trabalho livre era mais proveitoso e lucrativo que o escravo, bem como por tentar, a todo custo, eliminar o estigma da cor que delimitava os acessos sociais

Antônio Pereira Rebouças nasceu em 10 de agosto de 1798 (dois dias antes da famosa Revolta dos Alfaiates), em Maragogipe, na Bahia, filho do alfaiate português Gaspar Pereira Rebouças – que, apesar da profissão, não participou da Conjuração – e da negra liberta Rita Brasília dos Santos. Não há informações suficientes sobre o passado do casal, tampouco o que os levou à união. Provavelmente, como nos diz Keila Grinberg no excelente resgate biográfico de Antônio Pereira Rebouças em seu livro O fiador dos brasileiros, “o desenvolvimento de pequenos centros urbanos naquela região [Maragogipe] abriu oportunidade de ascensão social e econômica a vários alfaiates que, como Gaspar, vinham do norte de Portugal tentar melhor sorte na colônia”. Outro ponto interessante é que “para muitos portugueses, principalmente depois do terremoto que arrasou regiões inteiras de Portugal na metade do século 18, a colônia brasileira era uma boa opção para conquista de melhores condições de vida, já que o incremento da lavoura canavieira em regiões como o Norte Fluminense e o Recôncavo baiano abriam espaço para novos centros urbanos, com suas pequenas atividades comerciais e o cultivo de produtos agrícolas subsidiários”. Já no caso de Rita Brasília, cujos dados também são escassíssimos, “não se sabe por quanto tempo ela havia sido escrava, nem se alguma circunstância especial, como a descendência do senhor ou a compra da alforria – que poderia ter sido feita até por terceiros nela interessados, como Gaspar Rebouças –, havia concorrido para sua libertação”. O fato é que o casal se estabeleceu em Maragogipe e lá constituiu família de vasta prole, composta por nove filhos – quatro homens e cinco mulheres, sendo Antônio o caçula.

Em 1814, aos 16 anos, Antônio Pereira Rebouças decide deixar Maragogipe para buscar melhores oportunidades de vida em Salvador. Empreende uma viagem difícil, pois uma insurreição de escravos estava prevista para aquela época – o que, de fato, ocorreu –, o que tornou as estradas de Maragogipe bastante perigosas. Ao chegar à capital, conseguiu emprego como assistente de escrevente num cartório e passou a estudar, sozinho, política, leis e jurisprudência. “Em pouco tempo”, como diz em seu Apontamento biographico do conselheiro Antônio Pereira Rebouças, “tornou-se tão hábil no conhecimento do processo em todas as suas partes e de tudo quanto respeita ao ofício de tabelião” que pediu ao Tribunal do Desembargo do Paço permissão para advogar – que lhe foi concedida em 1821. Como diz Grinberg, “Rebouças apostava na educação como meio para alcançar a estabilidade social”. Isso fica provado num discurso proferido, muitos anos mais tarde, em 1847, na Sociedade Amantes da Instrução, reproduzido por Grinberg, no qual diz que “o mais imperioso dos deveres do homem não pode deixar de ser a instrução daqueles que a seguem na senda da vida: é mesmo para a espécie humana não só uma obrigação moral , como uma condição inerente à sua própria existência”.

Curiosamente, dos seus três irmãos homens – que, igualmente, iniciaram a vida profissional como assistentes de escreventes –, dois deles investiram tudo nos estudos como forma de ascensão social. José Pereira Rebouças, o mais velho de todos, após trabalhar um tempo num cartório, serviu como militar enquanto estudava piano e violino. Em 1828, ajudado pelo irmão Antônio, deixa a Bahia para estudar música em Paris. Formou-se mestre em Harmonia e Contraponto pela Universidade de Bolonha, voltou ao Brasil e se tornou maestro da Orquestra do Teatro em Salvador; também fazia apresentações de violino que se tornaram muito famosas, tendo sido ouvidas até na capital do Império. Manoel Maurício Rebouças também foi militar e, antes do irmão José, zarpou, em 1824,  para a Europa – também com a ajuda do caçula – e, em Paris, formou-se doutor em Medicina. De volta à Bahia, exerceu o ofício de médico e professor universitário, ocupando por 25 anos a cadeira de Botânica e Zoologia da Escola de Medicina de Salvador. É famosa a sua tese contra os enterros realizados nos terrenos das igrejas, por conta dos riscos de contaminação do solo. Manoel Pereira foi o único dos irmãos que permaneceu como assistente de escrevente pelo resto de vida, não tendo passado pelo serviço militar, tampouco se dedicado aos estudos superiores.

Já Antônio Rebouças se tornou uma importante figura do Direito e da política em nosso país. Participante ativo na luta pela independência do Brasil, uniu-se a figuras importantes e utilizou toda a sua habilidade como intérprete das leis a fim de contribuir, sensivelmente, com a resistência que se formou em torno da tentativa de “recolonização” do país. Ocupou a vaga de deputado na Assembleia Geral por vários mandatos entre 1830 e 1840, foi dono de um jornal – O Bahiano –, conselheiro do governo e membro do Conselho Geral da Província da Bahia. E, após intensa participação política na província em defesa da Independência – que lhe renderam, diretamente das mãos de dom Pedro I, em passagem pela Bahia, o título de Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, além de não poucas confusões, inclusive prisões e brigas corporais –, o nobre rábula migrou com a família, em 1823, para a capital do Império, onde faria brilhante carreira. Após audiência com dom Pedro II, foi nomeado secretário da província de Sergipe; no entanto, suas lutas foram tantas que, discriminado e apelidado de “miserável neto da Rainha Ginga”, foi exonerado um ano depois. Ao retornar a Salvador, passou a lutar, incessantemente, pelos direitos civis, segundo Grinberg, “aqueles estabelecidos pela Constituição de 1824, basicamente a liberdade de expressão e o livre direito de propriedade”. Tal postura, de ser um homem totalmente devotado à letra da lei, fez com que ora defendesse os interesses de senhores de engenho, ora advogasse em favor dos escravos. De acordo com Grinberg, “a maneira por ele encontrada para defender os escravos não tem nada a ver com a defesa do fim da escravidão, mas com o reforço da necessidade de estabelecimento de determinadas relações contratuais, o que é coerente com seus princípios liberais, demonstrados tanto no campo do direito civil quanto por intermédio de sua ação política”. Também foi terminantemente contra a pena de morte – “ninguém pode tirar a vida do homem, que não deu nem pode reparar; tirá-la é contra o Poder Divino, está fora do poder humano; nenhum legislador pode decretar a pena de morte”, disse.

No entanto, podemos considerar que o Velho Rebouças foi sim, de certo modo, um protoabolicionista, pois mesmo não lutando pela abolição total, tinha consciência – isso também fruto de seu liberalismo – de que o trabalho livre era mais proveitoso e lucrativo que o escravo – convicção que dividia com seu amigo José Bonifácio e outros –, bem como por tentar, a todo custo, eliminar o estigma da cor que delimitava os acessos sociais. Ele se considerava o “fiador dos brasileiros”, aquele capaz de unir o país num só povo; e reafirma tal posição num discurso proferido em 13 de maio de 1843: “Com o apoio de um outro honrado membro, interpretou mal ter eu dito na assembleia provincial da Bahia, que me considerava um fiador da união dos brasileiros. De fato eu o disse, o digo e espero em Deus que sempre o serei, até quando a união esteja tão consolidada que todos, sem exceção de um, sejam fiadores dela. E se sou fiador da união, provei-o nessas circunstâncias calamitosas de 1837 [a Sabinada], produto da incapacidade desse chefe de polícia; provei eficazmente, nessa conjuntura difícil, que a minha qualidade de mulato valia muito, como um grande elemento de ordem e de mútua confiança entre todos os brasileiros”.

Anteriormente, em 22 de abril, ele já havia dito que desejaria ver representada no parlamento a população mulata – antecipando a ideia de representatividade:

Outra parte da Nação carece de ter quem a represente no conselhos da Coroa, ficando a administração suprema completamente nacionalizada, é a população mulata. Estando identificada com todas as demais partes da Nação em todos os ramos do público serviço, importa muito que essa identificação tenha o seu complemento nos conselhos, da Coroa. Não será tão conveniente, meus senhores, que aí se conheçam ingenuamente as opiniões de todos os brasileiros, e por um justo nexo se represente a unidade nacional em todas as partes de que é realmente composta? Sim, esta Nação se compõe de brancos naturais do país em maior numero, ele brancos naturais de Portugal em menor, de muitos homens livres de cor ou mulatos. Na composição dos ministérios e dos conselhos, com toda a razão sempre se procura proporcionar os naturais de Portugal com os do país? Por que na proporção do grau de civilização e de inteligência não se contemplarão também aqueles outros? Não seria isso mais que o justo cumprimento da Constituição do Império, não seria mais do que a continuação do que estava em prática no Brasil desde os tempos coloniais.

O exemplar self-made man, a cultura superior e, sobretudo, o esforço por ver os filhos em melhores condições que as suas próprias foram características de Antônio Rebouças que também vi em meu pai

Seu filho André também testemunha em favor do pai nesse sentido, quando diz, em carta do exílio a Joaquim Nabuco, de 20 de julho de 1894: “São passados seis anos e já é possível ver os traços gerais da história – vêm os grandes operários, propagandistas uns, colaboradores outros de dom Pedro II. Nos primeiros tempos, José Bonifácio e o Velho Rebouças; na extinção do tráfico o hercúleo Euzébio de Queiroz; no período final, Paranhos, visconde do Rio Branco, e o Velho Nabuco; os homens de 28 de setembro de 1871 a terminar nos iniciadores do 13 de maio de 1888. É aí que temos lugar, meu Nabuco. Lugar modestíssimo; somente grande pela sinceridade, pela prova posterior”.

Em 1847 consegue, não sem certa insistência, autorização para advogar em toda a Corte, o que lhe proporciona grande alívio financeiro. Mesmo tendo recebido uma boa herança, em 1852, por ocasião da morte de seu sogro, Antônio Rebouças sabia que seria difícil manter seu padrão de vida caso não tivesse obtido tal permissão – tanto é que foi com muito esforço que enviou, em 1861, os filhos André e Antônio para um estágio na Europa, após formarem-se engenheiros com notas exemplares, mas, por pura discriminação, terem sido preteridos deste direito garantido por lei. Em 1848 desiste da vida pública. Em 1861 recebe o título de Conselheiro do Imperador e é nomeado, em 1866, como advogado do Conselho de Estado. Ao fim da vida, dotado daquela sabedoria que só os muitos anos dedicados ao conhecimento podem oferecer, tem seus dotes intelectuais atestados por sua biblioteca de mais de 2 mil volumes, possuindo todos os clássicos do liberalismo inglês e do iluminismo francês, bem como a Enciclopédia e as obras completas de autores como Moilère e Pascal. Toda essa devoção ao conhecimento foi herdada por seus filhos, sobretudo por André.

Em 1865, sua esposa, Carolina Pinto Rebouças, morre, o deixando muito abalado; em 1870 é acometido por uma cegueira que antecipa sua aposentadoria, e morre dez anos depois, em 19 de junho de 1880. Um último testemunho de sua estatura intelectual e moral, quem nos dá é Joaquim Nabuco na biografia de seu pai, Um estadista no Império:

A figura mais original dessa primeira Câmara a que Nabuco [de Araújo] pertenceu era o velho Rebouças. Ele é quase o único representante do velho liberalismo histórico diante da cerrada falange reacionária. Tudo nele recorda outra época, passada e esquecida: espírito, maneiras, formas de argumentação; mais que tudo, porém, é ele uma natureza singular, que reunia o refinamento aristocrático e esse espírito de igualdade próprio dos que possuem no mesmo grau o sentimento da altivez e o da equidade. Rebouças falava sempre em nome da população mulata.

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