“Será a questão social resolvida não por utopias socialistas e violências anarquistas ou comunistas, mas, sim, convencendo-se ao operário que o trabalho é uma necessidade higiênica, que sem trabalho é impossível ter saúde – o fator principal da felicidade. E também, por outro lado, demonstrando aos ricos que todos os abusos do luxo, da gula e da volúpia, proporcionados pelo excesso de riqueza, conduzem, fatalmente, à perda da saúde, isto é, do bem maior que há neste mundo”. (André Rebouças)
No último final de semana (08/06/19) tive a honra de participar da mesa de debates A Emergência Política Local, no IV Colóquio de Psicologia Política: O Brasil após as eleições de 2018, realizado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Compuseram a mesa, além de mim, a produtora cultural Jéssica Cerqueira, o Prof. Dr. Dennis de Oliveira (USP) e o psicólogo social e pesquisador Márcio Farias. O tema da mesa, apesar do nome um tanto abrangente, foi o racismo e a luta dos movimentos sociais na conjuntura política em que vivemos.
Cheguei um tanto receoso, pois sabia que era o único participante, digamos, não-progressista da mesa, e que minhas posições poderiam causar certo incômodo nos demais. No entanto, apesar de nossas profundas discordâncias – tanto no diagnóstico quanto nas propostas para solução dos problemas – o debate foi extremamente produtivo e o clima absolutamente cordial. Saí feliz e satisfeito, crendo que, para além da radicalização de alguns grupos, ainda é possível divergir de modo respeitoso e ainda fazer amigos.
O debate me suscitou algumas reflexões posteriores, que gostaria de dividir contigo agora, estimado leitor. Desde que voltei a me ocupar com o assunto racismo, tenho procurado, ao máximo, manter uma visão bastante realista do problema. Sei, por experiência e pelo próprio testemunho da história, que a realidade é bastante complexa para análises abstratas ou ideológicas – uma explicação do que reputo por ideologia pode ser lida aqui –, e que não há virtude mais necessária que a prudência na hora de avaliarmos as causas da atual situação socioeconômica do negro no Brasil, bem como os problemas do preconceito, da discriminação e do racismo propriamente dito. Um país como o nosso, “construído sob antagonismos” (definição perfeita de Freyre), paradoxalmente estruturado, não permite a importação direta de conceitos utilizados em outros contextos; é preciso analisar onde nos aproximamos, por exemplo, de outras realidades que viveram processos de colonização recentes – sobretudo no contexto da escravidão negra – e onde nos distinguimos absolutamente.
No debate, percebi que a interpretação marxista ainda prevalece entre grande parte da militância negra – e isso não só no Brasil. A compreensão do mundo como um mero jogo de interesses econômicos, no qual o inimigo é um ente abstrato – o capitalismo ou a burguesia – é, em minha maneira de ver, simplista, mas extremamente sedutora. Desde o século 19, com o abolicionista Vicente Ferreira de Sousa, até a radicalização do Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, o marxismo acabou por se tornar a principal ferramenta de interpretação da realidade do negro brasileiro, e a associação entre raça e classe a sua chave principal. Sueli Carneiro, fundadora do Instituto Geledés e uma das principais militantes do movimento negro, diz, no livro Histórias do movimento negro no Brasil, que a fundação do MNU trouxe “[...] uma nova perspectiva para se pensar a questão racial do ponto de vista do ativismo, articulando os temas raça e classe. O MNU traz um nível de politização maior para o debate racial e situa o movimento negro em uma perspectiva mais de esquerda, que acho que foi a influência fundamental de toda a militância da minha geração”.
No entanto, essa interpretação está longe de ser unânime. A crítica devastadora do prof. Carlos Moore Wedderburn, por exemplo, em seu pequeno mas notável livro O marxismo e questão racial, não pode ser ignorada – mas é. Moore, que se considera um socialista não-marxista, diz que “aplicar o dogma marxista à evolução das sociedades não-arianas exigirá, inevitavelmente, a aceitação de um paradigma teórico que funciona em perfeita consonância com a perspectiva da supremacia branca”, pois Marx e Engels viam os africanos como inferiores e concordavam com a colonização da África. O sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, também de esquerda, criticou a radicalização leninista do marxismo. Ele diz – ainda que de maneira equivocada, ao meu ver (talvez também para Carlos Moore) – que “Marx não era marxista. Lênin não era leninista. Muito menos marxista-leninista”, e que “não há subterfúgio, nenhuma razão sofística, que possa negar a aversão de Marx e Engels pelo que, na época de ambos, representava tentativas de institucionalização de seu pensamento”. Enfim, me parece que, atualmente, há quase uma hegemonia do pensamento marxista no movimento negro, principalmente no âmbito acadêmico. Bem como os desdobramentos pós-marxistas – como as teorias identitárias – que também se fazem notar muito atualmente, às vezes até em conflito com as interpretações marxistas mais ortodoxas.
A consequência imediata disso é que as interpretações à esquerda partidarizaram o movimento negro, levando a militância a uma “correria atrás de política”, como criticou José Correia Leite – fundador da Frente Negra Brasileira e um dos mais destacados militantes do movimento negro – em entrevista dada em 1984. Correia Leite ainda afirmou que:
Infelizmente a influência política é muito grande no espírito dos negros […] O negro, agora, com essa abertura que está havendo, com o surgimento de novos partidos, está disperso em grupos partidários. Quanto ao sentido de uma luta específica do negro, não pode haver isso. Não pode ter negro PTB, negro PT... O negro é um. Ele tem de ser um indivisível. Ele pode ter, como brasileiro, suas ideias políticas, mas ideologicamente, no sentido de um movimento de levantamento da condição social, econômica e cultural, ele não pode estar dividido em bandeiras políticas; ele tem de ter uma bandeira, que é a bandeira de luta dele. Isso o negro não está fazendo.
Nisso concordo inteiramente, pois, para mim, a solução do problema do negro passa por uma mudança cultural, não por uma revolução política. E ainda que as elites (financeira e política) desejem perpetuar a pobreza a fim de produzir dependência eleitoral, é óbvio que a solução não passa por aumentar essa submissão através de assistencialismos, mas pela busca de uma autonomia que garanta aos mais pobres condições de produzirem riqueza e se estruturarem culturalmente. Negros precisam de menos Estado, e não mais. Isso é liberdade real.
De modo que, em se tratando da comparação entre a luta do negro americano e do brasileiro – que, como eu disse, não pode ser realizada sem atentar para suas notórias particularidades –, nem a luta pelos direitos civis, conduzida por Martin Luther King Jr., nem a radicalização socialista de Malcolm X ou dos Panteras Negras, é tão significativa quanto a história de Booker T. Washington.
Booker Tagliaferro Washington nasceu em 1856 – ou seja, nove anos antes do fim da escravidão americana –, numa fazenda no Condado de Franklin, na Virgínia (EUA). Não conheceu o seu pai, mas, ao que tudo indica, era filho de um homem branco que vivia nas redondezas da fazenda; sua mãe se chamava Jane. Com o fim da a escravidão, em 1865, passa a trabalhar num forno de sal e, depois, numa mina de carvão, sempre nutrindo na alma o desejo de estudar. Ele diz, em sua autobiografia Up from slavery (Memórias de um negro, numa edição esgotada em português), publicada em 1901:
Enquanto escravo, eu não tinha nenhum tipo de escolaridade, embora lembro-me das muitas ocasiões em que ia até a porta da escola, com uma de minhas jovens senhoras, carregando seus livros. A imagem daqueles muitos meninos e meninas, numa sala de aula, engajados no estudo causou uma profunda impressão em mim, e tive a sensação de que entrar em uma escola e estudar dessa maneira seria o mesmo que entrar no paraíso.
Ao ouvir dois trabalhadores da mina dizerem que havia uma escola, na Virginia, ensinando negros, ficou animado, pensando ser aquele “o melhor lugar da Terra”. Decide então, em 1872, aos 16 anos, realizar o sonho de estudar. Parte para Hampton, onde “os estudantes pobres aprendiam um ofício e podiam pagar com trabalho uma parte da pensão”. Hampton ficava há mais de 700 km de distância de sua casa. Suportou fome e frio, e chegou a dormir na rua; tudo para estudar! Lá chegando, ficou preocupado com a recepção que recebeu da coordenadora, pois “tendo passado tanto tempo sem comida adequada, sem banho e sem trocar de roupa, eu, obviamente, não causei uma impressão muito favorável, e pude ver, imediatamente, que havia dúvidas em sua mente sobre a possibilidade de me admitir como um aluno”. No entanto, após algumas horas, ela lhe disse: “A sala de recitação adjacente precisa ser varrida. Pegue a vassoura e varra-a”. Ele ficou feliz da vida, pois viu ali sua grande chance de fazer algo que, realmente, sabia fazer: varrer uma sala.
Foi admitido e, tendo se tornado um aluno excepcional, caiu nas graças do diretor, o general Samuel Armstrong – que havia combatido no exército da União, liderando tropas de soldados negros –, que se tornou seu grande benemérito. Em 1881, já formado e dando aulas em Hampton, o general lhe recomendou para ser o primeiro diretor do Tuskegee Institute, no Alabama, não obstante os mantenedores terem afirmado que não queriam um negro para o posto. Armstrong respondeu que “ele não tinha nenhum homem branco para sugerir, mas se eles estivessem dispostos a admitir um negro, ele tinha um para recomendar. Nesta carta ele deu meu nome”.
Booker T. Washington inicia, então, aquele que seria um dos maiores empreendimentos educacionais da história americana. Recebendo o apoio de milionários filantropos como John D. Rockfeller e Andrew Carneggie, através de palestras pelo país todo – Washington era um exímio orador –, conseguiu realizar o inimaginável. Montou cursos técnicos cujas aulas práticas eram realizadas na construção do próprio instituto. Ou seja, os alunos construíram os prédios dos alojamentos onde dormiriam, a cozinha onde comeriam etc.; e, até a morte de Washington, em 1915, o Tuskegee tinha se transformando numa grande universidade, com mais de 70 prédios e diversas faculdades.
A filosofia de Washington era que os negros deveriam ter acesso a cursos técnicos e à oportunidade de empreender. E que não deveriam, num primeiro momento, se preocupar com o racismo ou em serem aceitos pelos brancos do sul. A integração viria pelo testemunho do trabalho que faziam. Isso, evidentemente, agradou aos brancos – inclusive os racistas –, pois dava a eles a impressão de que a segregação se manteria. No entanto, à medida que o tempo foi passando, os alunos começaram a realizar trabalhos nas casas dos vizinhos do instituto, conquistando a simpatia da maioria deles. Washington disse: “Tentei enfatizar o fato de que, embora o negro não devesse ser privado de nada por conta de injustiças, a agitação política não lhe salvaria, e que, no fim das contas, deveriam se preocupar em adquirir propriedade, empreendimentos, habilidades, economia, inteligência e caráter; e que, sem esses elementos, nenhuma raça poderia ter sucesso permanente”.
Em 1895 foi convidado para falar na Exposição de Estados Algodoeiros, em Atlanta, e lá proferiu seu famoso discurso que ficou conhecido como Compromisso de Atlanta. Nele garantia que os negros se submeteriam às leis dos estados do sul – inclusive às Leis Jim Crow; em troca, os proprietários brancos deveriam garantir educação básica (técnica) e julgamento justo aos negros. Disse ele:
“Nosso maior perigo é que, no grande salto da escravidão para a liberdade, ignoremos o fato de que as massas de negros devem viver das produções de próprias mãos, nem deixarmos de ter em mente que prosperaremos, proporcionalmente, à medida que aprendermos a dignificar e glorificar o trabalho comum e colocarmos nossos cérebros e habilidades nas ocupações comuns da vida... Nenhuma raça pode prosperar até que aprenda que há tanta dignidade em cultivar um campo quanto em escrever um poema. É no fundo da vida que devemos começar e não o topo. Também não devemos permitir que nossas queixas ofusquem nossas oportunidades”.
Seu discurso foi criticado por outros líderes negros – dentre eles, W. E. B. Du Bois, o primeiro negro a receber um título de doutor em Harvard, em 1895 – por ter um caráter acomodacionista; que aceitar a segregação em troca de algumas poucas oportunidades, era o caminho certo para a reescravização. De fato, o discurso ocorreu num período em que o enforcamento de negros havia atingido um nível crítico, e o racismo, de fato, prejudicava muito aquele povo recém saído da escravidão; mas Washington conhecia bem os brancos do sul, e sabia que a insurreição não era um bom caminho. O que faz é instá-los, estimulando sua compreensão e cooperação: “Não há defesa ou segurança para nenhum de nós, exceto na mais alta inteligência e desenvolvimento de todos. Se, em algum lugar, houve um esforço para reduzir o crescimento total do negro, deixe que esses esforços se tornem estimulantes, encorajadores e façam dele um cidadão mais útil e inteligente”. Ou seja, o progresso do negro era o progresso de todos; o prejuízo do negro era o prejuízo de todos:
“Como já provamos nossa lealdade a vocês no passado, amamentando seus filhos, velando a lado da cama doente de suas mães e pais, e frequentemente lhes seguindo, com olhos lacrimejantes, até seus túmulos, assim, no futuro, com nossa humildade, permaneceremos ao seu lado com a devoção que nenhum estrangeiro poderá ter, prontos para dar a nossa vida em sua defesa, se for necessário, entrelaçando nossa vida industrial, comercial, civil e religiosa à sua de modo que faça um só os interesses de ambas as raças. Em todas as coisas que são puramente sociais, podemos ser tão separados quanto os dedos, mas, como uma mão, possuirmos todas as coisas essenciais para o progresso mútuo”.
Booker T. Washington era, na melhor acepção do termo, um conservador, um adepto da política da prudência. Seus esforços não eram utópicos, muito menos revolucionários. Ele sabia que o tempo, a liberdade econômica e o empreendedorismo eram aliados nesse processo; que qualquer tentativa de exigir, por meios políticos, direitos iguais, poderia resultar em mais segregação. Dizia que os negros deveriam se fazer úteis, prestando serviços e produzindo aquilo que as pessoas necessitavam. Isso não significava que ele não se importava com as injustiças sofridas por seus irmãos. Tem-se notícia, como diz Louis R. Harlan, seu biógrafo, “que por ação particular ele combateu o linchamento, a privação dos direitos civis, o contrato de trabalho de presidiários, a discriminação educacional e a segregação”. No entanto, para manter o diálogo e as boas relações com os brancos – garantindo o sucesso de seus empreendimentos, que, no final das contas, ajudavam os negros de modo mais efetivo –, evitava falar desses assuntos publicamente, mantendo suas ações no âmbito privado. Nas palavras de Thomas Sowell, “o que Booker T. Washington oferecia não era um novo conjunto de objetivos, mas uma nova ordem de prioridades nos objetivos existentes”. Nesse sentido, suas prioridades eram as reais necessidades do povo negro americano, não suas utopias. E também não se portava como um anti-intelectual; desse modo, Du Bois e sua preferência pelo profundo conhecimento acadêmico e cultural, é, para mim, seu complementar, não seu rival.
Para que as ideias socialistas – que tanto atraem o movimento negro – tenham êxito, é preciso um “novo mundo”, uma nova organização social cujas tentativas de implementação, não obstante suas mais variadas teorias, resultaram, até o momento, em dezenas de milhões de mortes. Por isso, o legado de Booker T. Washington – o primeiro negro a ser recebido na Casa Branca pelo presidente Theodore Roosevelt, em 1901 – tem muito a nos ensinar sobre aquilo que nos é mais urgente.
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