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Lewis é reconhecido mundialmente como um notável apologista cristão leigo, um escritor de livros infantis já considerados clássicos em seu campo, um novelista e ficcionista competente e um formidável erudito.
Lewis é reconhecido mundialmente como um notável apologista cristão leigo, um escritor de livros infantis já considerados clássicos em seu campo, um novelista e ficcionista competente e um formidável erudito.| Foto: Wikimedia Commons

Não somos apenas criaturas imperfeitas que devem ser aperfeiçoadas: nós somos, como disse Newman, rebeldes que precisam depor as armas. (C.S. Lewis, em O problema do sofrimento)

O literato e escritor britânico Clive Staples Lewis – C.S. Lewis – é, sem sombra de dúvidas, uma das mentes mais geniais do século 20. Sua obra de maior sucesso, os sete volumes d’As Crônicas de Nárnia, já vendeu mais de 100 milhões de cópias em todo o mundo e já foi traduzida para mais de 40 idiomas. As histórias de Aslam, o Grande Leão, e dos irmãos Pevensie são não só cativantes e divertidas, mas muito instrutivas, sendo compostas, como toda boa fantasia, de camadas filosóficas, teológicas e morais de grande densidade, que nos levam a interpretações e descobertas a cada releitura, tornando nossa experiência dinâmica e empolgante. É uma obra, por assim dizer, inesgotável do ponto de vista imaginativo. Aliás, sobre sua capacidade de criar histórias de fantasia, Lewis nos deixou, numa carta escrita em 1954, um registro revelador:

O homem imaginativo em mim é mais velho, mais continuamente operativo e, nesse sentido, mais básico que o escritor religioso ou o crítico. Foi ele quem, numa primeira tentativa (com pouco sucesso), me impulsionou a ser um poeta. Foi ele quem, em resposta à poesia dos outros, me fez um crítico, e, em defesa dessa faceta, por vezes um polemista crítico. Foi ele que, depois da minha conversão, levou-me a encarnar minha fé religiosa em formas simbólicas ou mitopoéticas, variando de Screwtape a uma espécie de teologia de ficção científica. E foi, naturalmente, aquele que me fez, nos últimos anos, escrever a série de histórias sobre Nárnia para crianças; não perguntando o que as crianças queriam e, em seguida, me esforçando para adaptar-me (isso não foi necessário), mas porque o conto de fadas foi o gênero que melhor se ajustou ao que eu queria dizer.

C.S. Lewis escreveu sobre crítica literária, teologia e filosofia; romances filosóficos e de ficção científica; mas foi, de fato, na fantasia que sua criatividade e imaginação ganham ares verdadeiramente extraordinários

Tal descrição é uma prova do quanto a literatura pode influenciar uma pessoa. No caso de Lewis, desde a tenra infância essa influência pode ser notada, pois, como diz em sua autobiografia, Surpreendido pela Alegria, ele foi “produto de longos corredores, cômodos vazios e banhados de sol, silêncios no piso superior, sótãos explorados em solidão, ruídos distantes de caixas-d’água e tubos murmurantes, e o barulho do vento sobre as telhas; além disso, de livros infindáveis”. Também diz, nessa mesma obra, ao falar da imensa quantidade de livros que leu na infância, que houve um período em que viveu “quase inteiramente na minha [sua] imaginação”, e que “a experiência imaginativa daqueles anos hoje me parece mais importante que qualquer outra coisa”. Tudo isso, somado a duas bênçãos que diz ter recebido – sua babá, Lizzie Endicott, e seu irmão Warren “Warnie” Lewis – tornaram Jack (seu auto-apelido de infância, pois não gostava de seu nome, Clive) não só um leitor voraz de fantasia, mas também um autor excepcional do gênero. Sobre Lizzie, diz Lewis que era uma pessoa “a qual mesmo a exigente memória da infância não consegue apontar falhas – nada que não seja bondade, folia e bom-senso”; e de seu irmão diz ter sido aliado, se não cúmplice, desde o início.

Lewis é um autor por quem tenho especial predileção, como uma espécie de mentor espiritual – por ter sido um dos autores que mais contribuíram para minha vida na fé – e também intelectual, por sua argúcia e lógica simplesmente espetaculares; e por ser, também, um narrador igualmente excepcional. Por essas e outras, Lewis foi o autor que estudei em meu mestrado. Sua história de vida, sua carreira acadêmica e de escritor ficcional, e sua fama como apologista cristão – e o modo como essas coisas se relacionam – são temas que sempre me impressionam. Foi, por 29 anos, professor de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford, e também de Literatura Medieval e Renascentista, por mais nove anos – até sua morte, em 1963 –, na Universidade de Cambridge. Portanto, foi, sobretudo, um homem de literatura. Escreveu sobre crítica literária, teologia e filosofia; romances filosóficos e de ficção científica; mas foi, de fato, na fantasia que sua criatividade e imaginação ganham ares verdadeiramente extraordinários. Desde O regresso do peregrino, sua obra de conversão e uma homenagem ao clássico de John Bunyan, até o profundo Até que tenhamos rostos, passando por Nárnia e sua Trilogia Cósmica , obra em que expõe sua “teologia de ficção científica” – e que foi tema de minha dissertação de mestrado –, Lewis construiu uma obra imaginativa digna de seus grandes mestres, como Chesterton e H.G.Wells.

A obra de C.S. Lewis, que já vinha sendo divulgada, sem grande alcance, há muitos anos no Brasil, passou a receber o tratamento que merece por meio da editora que detém os direitos de publicação fora do país, a gigante e bicentenária Thomas Nelson, especializada em literatura cristã. Já foram lançados quase 20 livros do autor, retraduzidos e com um acabamento de luxo dignos do autor. O último lançamento, sobre o qual tecerei algumas linhas, caro leitor, é uma das obras de fantasia mais originais de Lewis, que recebeu elogios de ninguém menos que J.R.R. Tolkien, autor de O senhor dos anéis e seu amigo por quase 40 anos: O grande divórcio.

Publicado em 1945, a ideia sobre o livro passou longo tempo maturando na imaginação de Jack, e é baseada no conceito de Refrigerium – refrigério –, da teologia medieval, que Lewis diz ter encontrado ao ler a obra de um teólogo anglicano do século 17, Jeremy Taylor. Lewis lera a obra de Taylor em 1931 e encontrara a referência, que o próprio autor reputara ao poeta do século 4.º Prudêncio, e foi tão marcante que ele não mais se esqueceu e chegou a comentar com seu irmão, que em 1933 registrou em seu diário: “Jack teve uma nova ideia para uma obra religiosa, baseada na opinião de alguns dos Pais, que, embora a punição para os condenados seja eterna, ela é intermitente. Ele se propõe a fazer uma excursão infernal de um dia ao Paraíso. Estou muito interessado para ver como ele tratará disso”. A obra só foi escrita em 1944, e também recebemos algumas informações sobre sua composição através de duas cartas de Tolkien a seu filho Christopher, pois Lewis fez leituras, durante o desenvolvimento da obra, aos Inklings – confraria literária que mantinha com outros amigos literatos, dentre eles Charles Williams, Hugo Dyson e o próprio Tolkien –, dizendo tratar-se de uma “nova alegoria moral ou ‘visão’, baseada na ideia fantástica de Refrigerium, na qual almas perdidas dão um passeio ocasional no Paraíso”. Pois essa é, exatamente, a ideia principal, e o modo como Lewis a conduz é sensacional.

Um ônibus sai do Inferno e faz uma viagem até o Céu, a fim de que as almas condenadas recebam não só uma espécie de descanso de seus tormentos, mas uma chance de ficarem por lá. É óbvio que, em se tratando de Lewis, precisamos, primeiro, atentar para suas recomendações, dadas no prefácio, de que se trata de uma fantasia, ou seja, de que “a obra contém, claro, uma moral – ou pelo menos foi minha intenção. Mas as condições além da morte são de cunho apenas imaginativo: não se trata nem sequer de um palpite ou especulação sobre o que realmente nos aguarda. Não quero, de jeito nenhum, despertar uma curiosidade factual acerca da vida após a morte”. Aqueles acostumados a leituras teológicas, digamos, mais ortodoxas, não devem se escandalizar com o que encontram na obra, mas se deleitarem com a capacidade que Lewis tem de construir uma narrativa que é, ao mesmo tempo, divertida e piedosa.

Outra coisa que vale destacar são as homenagens que ele presta a dois de seus autores prediletos: Dante Alighieri – pois o passeio que ele próprio, Lewis, como personagem principal, dá nas regiões celestiais lembra as viagens que o autor florentino faz ao Inferno, ao Purgatório e ao Céu –, e George MacDonald – este que, segundo diz, fez mais por ele do que qualquer outro escritor e batizou sua imaginação. MacDonald é o Virgílio de Lewis em suas andanças pelo Paraíso, lugar onde “a luz e o frescor [...] eram como os de uma manhã de verão, um ou dois minutos antes de nascer o Sol”. Também não podemos esquecer a referência mencionada logo na primeira linha de seu prefácio, a William Blake, famoso poeta romântico do século 18, que escreveu O matrimônio do Céu e do Inferno, obra que Lewis se propõe a contrapor, dizendo que apesar de não se “considerar antagonista à altura de tão grande gênio”, considera a ideia de realizar uma união entre o Céu e o Inferno, como coisas complementares, ou seja, “baseada numa crença que de que a realidade nunca nos apresenta absolutos inevitáveis de uma ‘coisa ou outra’ [...], um erro desastroso”. Portanto, a obra é uma espécie de resposta a Blake, fazendo questão de ressaltar, a cada parágrafo, a distinção absoluta que há entre uma região e outra.

O Inferno descrito por Lewis subverte completamente nossa noção do lugar de tormentos tradicional, com chamas a arderem eternamente e almas a crepitarem em desespero. Trata-se de uma “cidade cinzenta”, um local imenso, em eterna expansão, em que as pessoas não têm necessidade de nada material e constroem suas moradias cada vez mais isoladamente, mais longe umas das outras, a milhões de quilômetros de distância. O fato de não terem necessidade de nada – material, pelo menos – poderia soar como uma coisa boa; mas na verdade Lewis demonstra, com clareza surpreendente, através de um dos espectros que o acompanham na inusitada viagem, a chamada primeira lei da economia, a escassez: “basta alguém imaginar alguma coisa e logo obtém o que deseja (não com muita qualidade, claro). É por isso que é tão fácil se mudar para outra rua ou construir uma casa nova. Em outras palavras, não há uma base econômica adequada para a vida em comunidade [...] É a escassez que possibilita a existência de uma sociedade”. Um local lúgubre e, literalmente, sem vida; e mais literalmente ainda, sem Deus.

O Céu é, como descrito acima, um eterno dealbar, outonal e fresco; um lugar onde “não havia qualquer mudança ou progressão com o passar das horas. A promessa – ou a ameaça – do nascer do Sol permanecia imóvel lá em cima”. Outra característica marcante é que o Céu era A realidade, mais sólida e concreta que a própria Terra – uma óbvia referência a Platão e seu mundo das ideias –, no qual a grama, por exemplo, era dura como diamante – não para os espíritos redimidos (que ele passou a chamar de Sólidos), mas para os Fantasmas.

Alguma coisa familiarizado com o lugar, começa a presenciar vários encontros dos Fantasmas, que vieram consigo do Inferno, com os Sólidos, que tentam lhes convencer a ficar no local – não sem antes renunciarem completamente a si mesmos. E após encontrar George MacDonald, no capítulo 9, passa a receber instruções de seu mestre a respeito, principalmente, da natureza moral desses encontros. Alguns são realmente marcantes, como, por exemplo, de uma mãe que deseja ardentemente encontrar o seu filho que lá está, porém descobre, por seu irmão, que é seu interlocutor redimido, que foi exatamente seu amor possessivo e idolátrico que a separou dele. Tal encontro lembrou-me do filme A árvore da vida, de Terrence Malick, no qual também a mãe não consegue se livrar do luto pela morte de seu filho; um luto que a consome por inteiro. O mestre e guia de Lewis lhe diz: “Todo amor natural ressuscitará e viverá para sempre aqui, mas nenhum amor natural poderá ressuscitar sem que primeiro tenha sido sepultado”. Ou do homem que carrega em suas costas um lagarto asqueroso que fica a lhe cochichar no ouvido, e que o Sólido pede para matar e recebe como resposta, várias vezes, o titubeio e as desculpas daqueles que não querem se livrar de seus vícios são arraigados.

O Inferno descrito por Lewis subverte completamente nossa noção do lugar de tormentos tradicional, com chamas a arderem eternamente e almas a crepitar em desespero

A liberdade de escolha é o tema central desses encontros – o que pode contrariar os calvinistas –, e pode ser sintetizada nas palavras de MacDonald em resposta à pergunta sobre os fantasmas que, supostamente, nunca teriam acesso ao ônibus; a resposta é uma das citações mais conhecidas de Lewis:

Todos que desejam entram. Quanto a isso, não se preocupe. No final existem apenas dois tipos de pessoas. As primeiras são aquelas que dizem a Deus: “Seja feita a tua vontade”; as outras são aquelas às quais Deus diz, por fim: “Seja feita a tua vontade”. Todos os que estão no Inferno escolheram ir para lá. Sem essa escolha pessoal, o Inferno não existiria.

Por fim, Lewis nos diz, através de seu mestre, que a Liberdade é “o dom por meio do qual você mais se assemelha ao Criador e participa da realidade eterna”. Portanto, O grande divórcio é, antes de qualquer coisa, uma obra sobre o Amor de Deus e a liberdade que o homem tem de aceitá-lo ou não.

Que este pequeno texto tenha despertado em ti, fiel leitor – caso já não o tenhas feito –, o desejo de ler essa singular obra de C.S. Lewis, e provoque em ti o prazer que sinto a cada vez que o releio.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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