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Cena do documentário Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem
Cena do documentário Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem| Foto: Divulgação

Pode-se dizer que o ofício ou a atividade tradicional esculpe o ser do homem. Toda diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido; enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser. (Ahmadou Hampâté Bâ)

C. S. Lewis, em seu brilhante artigo Sobre ficção científica, declara o seu amor ao gênero e faz uma observação importantíssima – da qual quero me valer aqui: “É muito perigoso escrever sobre algo que você odeia. O ódio obscurece todas as distinções”. Por isso, quero iniciar dizendo que Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem, disponível na Netflix, é um belo documentário. Muito bem produzido e, para os padrões nacionais, é um feito e tanto. É musicalmente poderoso e riquíssimo em informações históricas, com destaque para o emocionante resgate que faz do samba como o precursor do rap. Por isso, nesse breve artigo, quero destacar algumas coisas que venho pensando desde a primeira vez que assisti ao documentário dirigido por Fred Ouro Preto, logo na semana de seu lançamento.

Curiosamente, em vários momentos tive a impressão de ver meu curso O Brasil é um país racista?, lançado em 2018, reproduzido ali, pois muitos dos temas abordados por mim, sobretudo na aula Brevíssima história do Movimento Negro – tais como a Frente Negra Brasileira, o Aristocrata Clube, o Teatro Experimental do Negro e o MNU –, ganham destaque no documentário, tal qual no curso, não só pela originalidade, mas pela força retórica e artística.

A experiência de assistir a um concerto de música clássica no local apropriado é transformadora. Emicida chegou perto de proporcionar isso ao seu público

Outra semelhança que vale destacar é a escolha do Theatro Municipal de São Paulo como local da apresentação épica de seu show AmarElo, valendo-se da premissa de que as pessoas da periferia deveriam desfrutar dos espaços que foram construídos por seus antepassados, mas nunca desfrutados por eles. Em 2012 escrevi um artigo, num antigo blog de minha autoria, intitulado “Repensando o Dia da Consciência Negra”, e, após apresentar grandes compositores negros/mestiços – como Padre José Maurício Nunes Garcia (sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo), George Bridgetower e Chevalier de Saint-George –, questiono “por que não celebrar [o Dia da Consciência Negra] desta maneira: promovendo concertos, não no Capão Redondo ou na Favela da Rocinha, mas na Sala São Paulo ou no Municipal, com nossas melhores orquestras – não somente com a Orquestra do Heliópolis! – e cantores? Poderiam essas apresentações, inclusive, serem precedidas de palestras introdutórias sobre os músicos/compositores. Não seria esse um motivo real de orgulho?!”. Apesar de saber que as famosas salas de concerto paulistanas não são elitizadas pelo valor do ingresso – há muitos concertos gratuitos ou com preço reduzido, sobretudo para estudantes –, dificilmente vemos negros e negras nesses espaços. Mas o motivo, muitas vezes, é que eles mesmos criam esses bloqueios geográficos ou não sabem que existe, por exemplo, na Sala São Paulo, um evento chamado Concertos Matinais, aos domingos, com ingressos gratuitos. Ou simplesmente não gostam. Mas quero aproveitar para salientar que a experiência de assistir a um concerto de música clássica no local apropriado é transformadora. Emicida chegou perto de proporcionar isso ao seu público.

O que Emicida parece pretender, em AmarElo, é um resgate da tradição negra brasileira, sobretudo quando diz, logo no início: “não sinto que eu vim, sinto que eu tô voltando”, ou mesmo na insistente citação do ditado iorubá: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Tudo ali respira tradição e ancestralidade, e evoca uma sabedoria que há muito existe no povo brasileiro, mas que, por uma série de fatores – dentre eles, o racismo –, ainda pertencem somente às rodas de samba e aos terreiros de candomblé, mas não são, ainda, reconhecidos como cultura brasileira. O carinho por Wilson das Neves e a exaltação à memória de Ruth de Souza são momentos marcantes do documentário. No entanto, penso que AmarElo padece de alguns problemas conceituais e estéticos.

O primeiro problema é que, aos poucos, vamos perdendo a dimensão dos objetivos, do que pretende Emicida com AmarElo. O roteiro não linear atrapalha a coesão do que é apresentado. Há momentos em que parece estarmos vendo somente uma coleção de imagens e histórias dispersas, permeadas pela música de Emicida. A história dos Oito Batutas, por exemplo, fica suspensa, como uma referência sem consistência; o surgimento do movimento hip hop, em São Paulo, também é um momento episódico – e, para o documentário de um rapper, é meio estranho. O destaque para a Semana de Arte Moderna como um movimento que representaria, inquestionavelmente, uma arte verdadeiramente brasileira também não pode ocorrer sem crítica. O filósofo brasileiro Mário Vieira de Mello, em sua obra Desenvolvimento em cultura: o problema do estetismo no Brasil, faz uma crítica bastante sagaz do movimento modernista brasileiro, e assevera:

São assim induzidos em erro os que pensam haver o modernismo possibilitado o aparecimento no Brasil de um novo espírito, menos beletrista, menos estetizante, mais próximo das realidades do país, mais capaz de realizar, através da disciplina da ciência, as condições que são essenciais ao estabelecimento de toda cultura autêntica [...] A fé na autonomia da forma, a fé na autonomia do princípio estético foi a mola que agiu secretamente, o fator que preponderou de modo absoluto em todas as manifestações do movimento modernista. Com ele não se abre pois para o Brasil, como muitos pensam, uma nova era de empreendimentos artísticos e literários mais interessados no fundo do que na forma da realidade. Aos romances de Graça Aranha, Oswald de Andrade ou Menotti dei Picchia, aos poemas de Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Raul Bopp ou Jorge de Lima, às ideias antropológicas, primitivistas ou folclóricas de uns ou de outros poderia bem ter sucedido a contemplação mais serena de um Brasil que se tornasse o tema constante da nossa literatura, sem que por isso nos sentíssemos obrigados a insistir continuamente sobre o caráter verde amarelo de nossas produções. Se na realidade tal coisa não se verificou, se na verdade o que observamos ainda hoje na nossa literatura é um complexo antieuropeu que faz de seu contato com a realidade brasileira uma relação desequilibrada e histérica, a razão disso devemos procurá-la sobretudo na compreensão puramente estética que temos do Brasil, compreensão da qual as teorias de Graça Aranha são apenas o exemplo mais marcante.

AmarElo parece sofrer do mesmo estetismo tão profundamente criticado por Mário Vieira de Mello.

Também a narração em primeira pessoa, com Emicida elogiando o próprio trabalho num tom pseudopoético, deixa a coisa meio piegas. Mas o grande problema é o aspecto político do documentário, que, para mim (mas não só, como veremos abaixo), o diminui como obra de arte.

Andrei Tarkovski diz, em seu clássico Esculpir o tempo: “Com que extraordinária precisão escreveu Tolstói em seu diário, em 21 de março de 1858: ‘A política não é compatível com a arte, pois a primeira, para provar seus argumentos, precisa ser unilateral’. De fato! A imagem artística não pode ser unilateral: exatamente para que possa ser chamada verdadeira, ela deve unir em si mesma fenômenos dialeticamente contraditórios”. E, ao elogiar o gênio de Luis Buñuel, diz que a “inspiração política [...] é sempre espúria quando se expressa abertamente numa obra de arte”. Dostoiévski, ao escrever seu libelo antirrevolucionário Os demônios, temeu que, ao embrenhar-se num fato político de sua época, que o deixara profundamente transtornado, arruinasse sua condição como artista. Ou seja, parece lugar-comum entre grandes artistas que a dimensão estética de seu trabalho é maior que sua visão política e não pode se misturar a ela – não sem tornar-se menos arte. Emicida, ao imprimir em AmarElo o que parece ser sua visão política, não só diminui o aspecto artístico de seu documentário, como o coloca em franca contradição com o leitmotiv do roteiro: a tradição. Os mais atentos certamente vão notar uma incômoda incompatibilidade entre todo elogio aos aspectos tradicionais e de resgate da cultura negra brasileira, ao mesmo tempo em que um discurso quase-revolucionário (é tudo pra ontem?) vai aumentando o tom na segunda metade do filme. Alguns destaques também parecem servir somente para agradar setores específicos do movimento negro e do feminismo negro.

Entretanto, como eu disse no início, isso não faz de AmarElo um documentário ruim. Tem muitos méritos, principalmente pelo esforço de, em uma hora e meia, apresentar uma gama imensa de grandes figuras negras da história brasileira para um público jovem que jamais as conheceria na escola – e, modéstia à parte, meu curso faz o mesmo. Mas minha maior alegria foi ver minha querida cunhada, irmã de minha esposa, Jamilly, a Jamah – cuja imagem uso, em sua homenagem, para ilustrar esse artigo –, cantando com Emicida. É o encontro de duas almas que amam a arte e vivem por ela, e isso, para mim, já valeu cada minuto.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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