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Eric Voegelin e a recuperação da realidade
| Foto: Divulgação

Não disseste bem muitas vezes: “Quero tornar-vos livres”? Pois bem, viste-os, os homens “livres” — acrescenta o velho, com ar sarcástico. — Sim, isto nos custou caro — prosseguiu ele, olhando-o com severidade —, mas levamos a cabo afinal aquela obra em teu nome. Foram-nos precisos quinze séculos de rude labor para instaurar a liberdade; mas está feito, e bem feito [...] Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos pés. (Dostoiévski, Os irmãos Karamázov)

Não é fácil compreender as ideologias políticas que assolaram o século 20. Marxismo, nacional-socialismo, fascismo e suas variações – algumas ainda em vigor e causando catástrofes sociais inomináveis – surgem mais ou menos de uma mesma raiz: uma desordem na alma dos indivíduos e, consequentemente, na sociedade como um todo. Essa é, pelo menos, a conclusão daquele que, talvez, tenha sido o filósofo que mais se esforçou para compreender tais fenômenos: Eric Voegelin.

Eric Hermann Wihelm Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, em 3 de janeiro de 1901, filho do engenheiro civil Otto Stefan Voegelin e de Elizabeth Rühn. Após o doutorado em Ciência Política, na Universidade de Viena, em 1922, torna-se secretário de um de seus orientadores, o célebre Hans Kelsen – de quem divergiu seriamente depois –, autor da Teoria Pura do Direito e da Constituição Austríaca de 1920. Com seu outro orientador, Othmar Spann, estudou filosofia clássica e idealismo alemão; frequentou os seminários de Ludwig von Mises e foi amigo de Friedrich Hayek. Ainda fez parte do Círculo Stefan George, grupo de estudos formados pelo grande poeta simbolista alemão, que muito o influenciou. A Revolução Russa de 1917 chegou a lhe causar certo interesse, por isso, diz ele em suas Reflexões autobiográficas (É Realizações):

[…] nas férias entre o Abiturium [um exame parecido com o nosso Enem] e o início de meus estudos universitários no outono, estudei O capital, de Marx, induzido obviamente pela onda de interesse pela Revolução Russa. Sendo um completo ingênuo nesses assuntos, eu acreditava em tudo o que lia, e devo revelar que, de agosto a quase dezembro de 1919, fui marxista. Perto do Natal eu já estava cansado do assunto, pois cursara, nesse meio-tempo, disciplinas de teoria econômica e história da teoria econômica e aprendera o que estava errado em Marx. Depois, o marxismo nunca mais foi um problema para mim.

Entre as décadas de 1920 e 1930, viajou pela Inglaterra, França e Estados Unidos, estudando e absorvendo tudo o que tinha de mais importante na filosofia e literatura desses países. Nesse período, recebeu as influências que, de certo modo, alteraram sua perspectiva filosófica: a filosofia do senso comum dos escoceses e a tradição filosófica americana, sobretudo de George Santayana. Por fim, com a publicação de seu primeiro livro, Über die Form des amerikanischen Geistes (Da forma da mente americana), em 1929, se estabeleceu como professor – privatdozent, que oferece cursos extracurriculares – de Ciência Política e Sociologia na Universidade de Viena. Em 1936, publica The autoritarian State, que o estabelece como professor associado, mas, ao mesmo, expõe sua discordância com a teoria neokantiana de Kelsen. Diz ele, nas Reflexões: “Eu precisava enfatizar a insuficiência de uma teoria jurídica para compreender problemas políticos e as drásticas conseqüências de afirmar que não é desejável – ou nem mesmo possível – abordar problemas políticos de maneira científica. Minha relação com Kelsen nunca voltou a ser a mesma depois disso”. Porém, outro problema, muito mais sério, foi criado pela publicação não só desse livro, mas de outras duas obras publicadas anteriormente, em 1933, nas quais analisava o conceito de raça e as ideologias radicais dele provenientes: Rasse und Staat (Raça e Estado) e Die Rasseide in der Geistesgeschichte (A história da ideia de raça). Os livros foram confiscados pelos nazistas e Voegelin passou a ser perseguido.

Em 1938 é obrigado a fugir para os EUA, e lá teve seu pensamento totalmente voltado para as questões cruciais da realidade política e seus fundamentos na realidade humana em seus diversos níveis (políticos, existenciais, culturais etc.). Tais investigações o levaram à elaboração de uma Filosofia da História e, posteriormente, a uma Filosofia da Consciência. Voegelin chama de consciência “o centro luminoso que radia a ordem concreta da existência humana na sociedade e na história” e “o locus onde a ordem [da existência] é experimentada”. Sua pesquisa e reflexão filosófica acerca do resultado catastrófico dos movimentos totalitários – como o Nazismo e o Comunismo – o levaram a afirmar que houve uma perda da realidade no pensamento pós-iluminista (com raízes que remontam ao período helenístico), que favoreceu o surgimento de tais “tolices”. Isso ocorreu porque o pensamento contemporâneo não mais reconhece seu fundamento divino e a ordem da realidade – presente de maneira indissociável no pensamento de clássico de Platão e Aristóteles.

O desenvolvimento profundo de sua compreensão dos fenômenos ideológicos se dá em sua obra Hitler e os alemães (É Realizações), transcrição do curso dado por ele, na Universidade de Munique, em seu retorno à Alemanha, em 1964, para assumir a cadeira que tinha sido de Max Weber nessa universidade. Voegelin, com impetuosidade e honestidade intelectual ímpar, expõe toda aura farsesca que havia sido criada em torno da figura de Hitler, bem como, solapando a ideia estapafúrdia de culpa coletiva, dizendo coisas do tipo:

Se Hitler era estúpido ou um criminoso, e o povo votou nele em manadas, então o povo também deve ter sido estúpido e criminoso. Mas isso não é possível, então Hitler não era estúpido nem criminoso. A outra possibilidade, o ponto que está sofrendo resistência, é que talvez um grande número de alemães, talvez a grande maioria, eram de fato extraordinariamente estúpidos, que, em matéria política, um grande número ainda seja, e que o que vemos aqui seja uma situação de apodrecimento intelectual e ético que, de fato, fundamentou a ascensão do fenômeno de Hitler. Não é apenas um problema alemão. É um problema internacional.

Culpa, para Voegelin, “é sempre algo que pode ser atribuído a uma pessoa”, por isso, o nível de responsabilidade de cada indivíduo é altíssimo, pois “se uma sociedade é desse tipo que elege imbecis criminosos e escroques como representantes, então a sociedade como um todo está numa situação muito desagradável, porque os que não estavam dispostos a eleger imbecis criminosos e escroques como seus representantes são apanhados juntos e enforcados juntos”. Desse modo, ele aprofunda a questão de como foi possível eleger alguém como Hitler, analisando o conceito de “passado indomado”, que foi um dos motes da culpa coletiva. Diz ele: “Quando ouvimos a expressão 'o passado indomado', aflora uma série de perguntas: o que isso realmente significa, primeiramente? Para quem é este passado indomado, partindo do pressuposto de que saibamos o que 'domar' significa: para todas ou só para algumas poucas pessoas? Porque ele de fato foi domado por muitos enquanto ainda era o presente, já que de maneira nenhuma todas as pessoas que viveram o período nacional-socialista cooperaram alegremente com ele”. Ou seja, muitos – como Karl Kraus, Thomas Mann e o próprio Voegelin – compreenderam o que estava acontecendo assim que Hitler ascendeu ao poder, e passaram a criticar o regime duramente; no entanto, a maioria do povo alemão sucumbiu.

Voegelin levanta, então, um dos insights mais poderosos para se compreender a ascensão de um movimento ideológico, o presente sob Deus. Como o passado era presente para muitos que viveram na época do nacional-socialismo, Voegelin diz:

Agora o que é o presente indomado? Primeiro, o que é o presente? O presente pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, pode-se falar hoje da noção ideológica e socialmente comum do presente como um ponto no presente (Gegenwartspunkt), estendendo-se entre o passado e o futuro. Então, o tempo da História é representado como indo numa linha do passado para o futuro através de um ponto no presente, e deste ponto de vista entende-se o presente. Assim, os eventos contemporâneos são eventos que ocorrem no ano de 1964; eventos passados ocorreram no ano de 1930. A par dessa concepção linear do presente, que existe nessa forma apenas desde o século XVIII como uma noção inteiramente ideológica, há aquele outro significado do presente, em que este está sempre relacionado com a existência do homem em sua presença (Präsenz) sob Deus. À medida que – ao existir e atuar no tempo imanente – o homem existe sob Deus, ele tem presença. E o significado do passado e do presente tornar-se-á geralmente interpretável somente quando tiver seu princípio nessa presença. Pois, de outro modo, tudo procederia de maneira irrelevante numa corrente de tempo externa.

Nossa existência temporal só faz realmente sentido diante da consciência de que vivemos “sob Deus”, e que nossa realidade corpórea vive em tensão com o fundamento divino do nosso ser. Tal consciência já estava presente na filosofia clássica de Platão e Aristóteles, que Voegelin chama de “experiência clássica de razão”. A consciência humana, nesse sentido, tem o caráter de participação (metaxy) como pólos de uma experiência divino-humana; nesse processo, a consciência ilumina a si mesma como um lugar de tensão existencial em direção ao fundamento: “Colocar-se sob a presença, sob a presença de Deus e, de acordo com isso, julgar o que se faz como homem e como se forma a ordem da própria existência e a existência da sociedade é, para Platão, um ato de julgamento. Isso significa que o homem está sempre sob julgamento”. Isso amplia muito nossa visão da própria política, pois a ação humana já não pode ocorrer sem que essa tensão seja observada. Isso não tem a ver somente com o nazismo, mas com toda realidade política e as ideologias que dela se apoderam. Ao deixar de ser considerada uma ciência da ordem (do Ser), a ciência política foi amplamente deturpara por ideologias. Voegelin é muito claro em relação a isso. Em A nova ciência da política (UnB), diz que “somente quando a ontologia se perdeu como ciência e quando, em consequência disso, a ética e a política já não podiam ser entendidas como ciência da ordem na qual a natureza humana alcança sua máxima realização, passou a ser possível considerar este campo do conhecimento como suspeito de ser o repositório de opiniões subjetivas e não-críticas”.

Uma sociedade deve funcionar harmonicamente, com seus membros capazes de discernir a realidade da tensão em direção ao fundamento. Diz Voegelin: “Toda sociedade que funciona, uma sociedade de patrícios, é fundada na cortesia, nos compromissos, na concessão às outras pessoas. Quem quer que tenha uma idéia fixa e queira realizá-la, ou seja, quem quer que interprete a liberdade de expressão e a liberdade de consciência de tal modo que a sociedade deva comportar-se da maneira que ele considera correto, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia”. No entanto, essa consciência da realidade foi perdida na linguagem ideológica. Desse modo: “As manifestações típicas dessa perda de realidade são aquelas em que a realidade do homem é colocada no lugar da realidade divina perdida, que sozinha fundamenta a realidade do homem, de tal forma que no lugar do fundamento do ser como causa do ser, o homem como a causa do ser chega ao ponto da exageração na idéia de ser o homem o criador do mundo”.

A esse fenômeno de perda da realidade, Voegelin cunhou o termo estupidez, emprestado de Robert Musil e seu ensaio Sobre a estupidez (Âyiné). Diz ele: “A estupidez deve significar aqui que um homem, por causa de sua perda de realidade, não está em posição de orientar corretamente sua ação no mundo em que vive. Então, quando o órgão central que guia sua ação, sua natureza teomórfica e abertura para a razão e o espírito, deixar de funcionar, o homem agirá estupidamente”. Numa análise minuciosa do ensaio de Musil – sobre o qual já falei em artigo anterior, aqui, nesta Gazeta do Povo –, mostra que o estúpido age “com base numa imagem defeituosa da realidade, e, assim, cria a desordem”, numa espécie de revolta contra o espírito. Tal desordem é um componente catalizador de ideologias destruidoras. Se um pensador ou político é, nesses termos – que, como dito, para Voegelin, assim como para Musil, não é mera adjetivação, mas um conceito – um estulto, um tolo (do hebraico nabal, diz Voegelin), as consequências de suas ações podem ser desastrosas. Mesmo que este seja, para todos os efeitos, uma pessoa boa: “O perigo agora é sempre este: quando uma sociedade está em tamanha desordem como a sociedade alemã estava, o tipo mensageiro de banco, em si mesmo um tipo completamente honrado e decente, chega ao topo e descarrega a devastação”. Daí a saída seria a prevenção, ou seja, “como uma sociedade pode ser tão organizada que esses tipos peculiares de simplicidade e estupidez não se tornem politicamente efetivos, e menos ainda dominantes socialmente, e determinem a sociedade”.

Creio que, em nosso caso, infelizmente, a desordem já foi instaurada; cabe a nós, enquanto podemos, evitar que essa combinação entre simplicidade e estupidez – também uma constante em nossa política há muito – não se torne uma estupidez criminosa – “quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso” – e nos faça reféns.

Por isso a obra de Eric Voegelin é fundamental para nós; toda ela pode ser resumida no esforço de recuperar a realidade, a fim de escaparmos das armadilhas ideológicas. Diz Voegelin, nas Reflexões:

Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade. É preciso, ao mesmo tempo, investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia-a-dia. E é preciso desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica. Por fim, a condução desse trabalho deve dar-se não somente em oposição às ideologias deformadas, mas também à deformação da realidade por intelectuais cuja obrigação seria preservá-la, como os teólogos.

Conheci Voegelin, através de um amigo, em meados de 2007; fiquei tão impressionado que fiz dele tema de minha monografia na graduação em Filosofia, entre 2009 e 2011; e, desde então, sempre volto às suas obras. Podes também, caríssimo leitor, encontrar algumas breves análises minhas dessa proposta voegeliniana, em minha série de artigos Uma luz para a educação, também aqui na Gazeta do Povo.

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