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A maldição das falácias estatísticas racialistas
| Foto: Sergio Cerrato/Pixabay

Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta.
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
(Luiz Gama, Quem sou eu?)

O artigo anterior me trouxe a este. Não porque o tema seja especialmente agradável – como apontei, é enfadonho –, mas porque, ao longo da semana, a repercussão persistente do caso ajudou a evidenciar algo que venho falando já há algum tempo, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo: não há racismo nos números. No entanto, são eles, através das estatísticas, responsáveis por todos os indicadores do preconceito, da discriminação e do racismo no Brasil, e tanto os movimentos sociais quanto a imprensa (que deles se alimenta de maneira acrítica) resolveram associar, de forma indistinta, à maneira marxista, “raça” e classe social com o objetivo evidente de fomentar políticas públicas e ações afirmativas que, apesar de sua sempre discutível efetividade, fomentam um verdadeiro sistema que se alimenta da racialização absoluta dos índices de desigualdade no Brasil.

A evidência de que o debate público vive um momento dramático – pela completa falta de lógica dos argumentos apresentados – também já foi analisada por mim recentemente; no entanto, as falácias estatísticas merecem uma atenção especial, pois, como diz o ditado: “a estatística é a arte de torturar os números até que eles confessem”.

Thomas Sowell, o genial economista americano, citado à exaustão nesta coluna por motivos óbvios, apesar de sumariamente ignorado pelos círculos progressistas – pois costuma, com evidências exaustivas, demonstrar a falsidade da ligação intrínseca que fazem entre discriminação e disparidades socioeconômicas –, costuma provar que as ações tomadas em função de falácias estatísticas tendem a prejudicar os supostos beneficiários em vez de ajudá-los. Apesar de ser negro, órfão de pai e criado por uma tia-avó no Harlem, graduou-se em Economia com grande distinção (magna cum laude), em Harvard, passando pelas universidades de Columbia e Chicago para o mestrado e o doutorado, respectivamente, e especializou-se em desfazer os castelos de cartas numéricos produzidos pelos acadêmicos da justiça social. Faço uma análise detalhada do tema num capítulo do livro Thomas Sowell e a aniquilação de falácias ideológicas, da LVM Editora.

Existe um verdadeiro sistema que se alimenta da racialização absoluta dos índices de desigualdade no Brasil

Para Sowell, como afirma em Fatos e falácias da economia, as “falácias não são simplesmente ideias malucas. Geralmente são plausíveis e lógicas – mas com alguma coisa faltando”. É muito comum vermos generalizações comparativas entre homens e mulheres, negros e brancos, como se fossem categorias estáticas. Entretanto, há tantas variáveis presentes nas disparidades entre elas que qualquer pessoa minimamente preocupada com a verdade não se lançaria aos números de forma apressada.

Sowell diz que “existem muitas razões pelas quais as falácias resistem, mesmo diante de evidências concretas contra elas”. E continua:

Autoridades eleitas, por exemplo, não podem admitir de imediato, sem colocar em risco as suas carreiras, que alguma política ou algum programa defendido por elas, talvez com grande alarde, tenha tido um resultado ruim. O mesmo acontece com líderes de diversas causas e movimentos. Até mesmo intelectuais ou acadêmicos com estabilidade estão sujeitos a perder prestígio e a passar por constrangimentos quando suas noções se mostram, na prática, contraprodutivas. Outros, que se consideram defensores dos menos afortunados, achariam doloroso se confrontar com evidências de que, na verdade, deixaram os menos afortunados numa situação ainda pior do que antes. Em outras palavras, evidências são perigosas demais – política, financeira e psicologicamente – para algumas pessoas permitirem que se tornem uma ameaça aos seus interesses ou à própria percepção de si mesmas.

Ou seja, há muito interesse envolvido na produção de tais números, que vão desde projetos de governo eleitoreiros à manutenção de cargos públicos e o cômodo “mercado” das pesquisas acadêmicas, com seus especialistas recebendo somas consideráveis em bolsas de estudo, de fundações nacionais e internacionais, que jamais receberiam no mercado de trabalho. Demétrio Magnoli denuncia, em seu polêmico livro Uma gota de sangue, que “sob o influxo de financiamentos internacionais, canalizados em geral pelo escritório brasileiro da Fundação Ford, [desde o fim dos anos 1970] replicava-se o modelo de militância racialista dos EUA”, fato também denunciado por Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, em Sobre as artimanhas da razão imperialista.

O Brasil está mergulhando, a passos largos, numa narrativa de racismo estrutural que pode nos levar a consequências não calculadas por seus defensores. No ambiente virtual, a divisão racial neste país, que é um dos mais miscigenados do mundo, já é uma realidade, com embates nos quais pessoas são classificadas (e defenestradas) por sua cor. Indicadores socioeconômicos colocam os negros sempre em posições de exclusão, alimentando o imaginário da herança escravista e da exploração que tanto agrada a corações revolucionários – mesmo sabendo que a categoria negro abarca, de acordo com o IBGE, a soma de pretos e pardos, que corresponde, respectivamente, a 9,4% e 46,8% da população. O problema dessa classificação, em primeiro lugar, é que, para o senso comum, negro é somente o preto, enquanto a autodeclaração (método totalmente questionável) força os mestiços a serem negros para fins estatísticos facilmente manipuláveis – como procurei demonstrar aqui. E, com os pretos correspondendo a menos de 10% da população, as estatísticas “raciais” não deveriam, em hipótese alguma, deixar de levar isso em consideração, pois podem causar distorções bastante acentuadas nos resultados – ilustrado por minha paleta de cores ou pelo famigerado pardo de Schrödinger.

Achas mesmo, caríssimo leitor, que a afirmação de que negros ganham menos que brancos pode ser aceita sem qualquer distinção adicional? Óbvio que não. E um único exemplo pode nos mostrar o quanto estatísticas podem ser falaciosas. O jornal Folha de S.Paulo publicou uma matéria com o título “Racismo gera diferença salarial de 31% entre negros e brancos, diz pesquisa”, e inicia dizendo:

A diferença salarial entre brancos e negros, de 45%, de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019, não pode ser atribuída apenas à falta de oportunidade de formação para pessoas negras. Segundo cálculo do Instituto Locomotiva, a diferença salarial ainda é significativa, de 31%, quando comparados os salários de brancos e negros com ensino superior, isoladas todas as demais variáveis. Sobra apenas a cor da pele. “Trata-se de uma desigualdade persistente que só pode ser explicada pelo racismo estrutural. Por um lado, ele se expressa no preconceito racial. Por outro, no maior capital social dos brancos: o famoso ‘quem indica’ de um branco é outro branco que está em um cargo alto”, afirma Renato Meirelles, presidente do Locomotiva.

Institutos de pesquisa têm a capacidade de inferir dados que eles nem sequer levaram em consideração, e isso é aceito tacitamente

Ou seja, quase tudo nessa pesquisa – pelo menos como é apresentada na matéria – é genérico. A primeira falta de informação que salta aos olhos é o uso de “ensino superior” como uma categoria única, quando temos mais de 300 cursos superiores disponíveis. Ou seja, caso negros, em sua maioria, façam cursos cuja faixa salarial é menor, receberão, na média, menos. E dizer “isoladas todas as demais variáveis” não ajuda muito. Em seguida, o presidente da empresa que fez a pesquisa parte para a falácia clássica de petição de princípio: “trata-se de uma desigualdade persistente que só pode ser explicada pelo racismo estrutural” (grifo meu).

Como assim? Todas as informações adicionais – tais como curso em que se graduou, se tem pós-graduação, o tempo de formação e de carreira, o estado civil, a empresa onde trabalha etc. – dos entrevistados não fazem qualquer diferença para essa conclusão que só pode ser explicada pelo racismo estrutural? Foram 1.170 pessoas pesquisadas, em 43 cidades. Se separarmos essa pesquisa por cidade, o que acontece? Não sabemos (mas a culpa é do racismo estrutural). Se fizermos essa pesquisa daqui a dois anos, com as mesmas pessoas, seu status social será o mesmo? Também não sabemos. Atribuir ao capital social dos brancos – a indicação de outro branco – como um dos fatores dessa disparidade salarial me parece ainda mais abstrato e difícil de provar. A impressão que temos é de que institutos de pesquisa têm a capacidade de inferir dados que eles nem sequer levaram em consideração, e isso é aceito tacitamente. Como afirma Sowell, em Fatos e falácias...: “estatísticas sobre renda são exemplos clássicos de números que podem ser ordenados de maneiras diversas para sugerir conclusões não simplesmente diferentes, mas totalmente opostas”.

Uma coisa quase nunca abordada nessas pesquisas é a liberdade individual e as circunstâncias que envolvem as escolhas pessoais. Como se as pessoas escolhessem suas faculdades e profissões preocupadas em corresponder às estatísticas de equidade racial/social; como se a causa de, por exemplo, termos menos negros nos cursos de medicina fosse somente o racismo. Como afirma Sowell, de novo, em Fatos e falácias..., “diferentemente de peças de xadrez, seres humanos têm as próprias preferências individuais, os próprios valores, planos e desejos, e todos eles poderão contrariar e até mesmo frustrar as metas de experiências sociais”, e nisso cabe observar algo que julgo fundamental: os anos de escravidão e a posterior marginalização de parte considerável dos negros brasileiros, somados à discriminação e ao preconceito de cor – muito mais acentuado na primeira metade do século 20 –, certamente imprimiram no imaginário de muitos negros uma limitação em relação às suas próprias capacidades e possibilidades.

Não são muitos os que, como eu, têm pais que, mesmo tendo partido de um contexto de grande adversidade, conseguiram superá-la e oferecer aos filhos melhores perspectivas não só materiais, mas psicológicas. A frase de meu pai – “se você quiser uma coisa, comece a realizar que forças extraordinárias virão em teu auxílio” –, realidade que ele mesmo experimentou em sua vida, infelizmente é um privilégio. Por isso tenho advogado tanto a necessidade de divulgarmos, cada vez mais, figuras negras que podem servir de modelo e inspiração para aqueles que não os têm por perto, em seu círculo de convivência. Ou seja, cultura e educação básica de qualidade são as chaves para melhorarmos o modo como o próprio povo brasileiro se vê.

Tudo isso, infelizmente, alimenta a falácia da representatividade – que, obviamente, é uma falácia porque as posições na sociedade não são ocupadas de acordo com a diversidade estatística da população. É pela competência que as posições são ocupadas; e se há discriminação, é aqui que ela se manifesta, excluindo, sem avaliação adequada, pessoas competentes. Mas não existe representatividade sem competência. É preciso desenvolver as competências para depois buscar representação social. Cargos de confiança, em empresas que dependem deles para sobreviver num mercado competitivo, não são oferecidos por afinidade ideológica. Como afirma Sowell, a discriminação tem um custo e, em mercados competitivos, isso pode causar prejuízos. Ele dá muitos exemplos em Discriminação e disparidades, mas esse, da segregada África do Sul, que inverte o paradigma, é emblemático:

As leis do apartheid limitavam quantos negros podiam ser empregados em determinadas indústrias e ocupações, e os proibia de serem contratados para cargos acima de certos níveis. Mas sul-africanos brancos em indústrias competitivas frequentemente contratavam mais negros do que era permitido e para cargos mais altos que os determinados pelas leis. Uma medida enérgica do governo durante os anos 1970 fez com que centenas de empresas de construção civil fossem multadas por violar as leis. E a indústria da construção civil não foi a única em que as empresas competitivas foram multadas por contratar mais negros, e em posições mais elevadas que as permitidas. Em algumas outras indústrias, os negros até mesmo superavam numericamente os brancos em categorias nas quais era ilegal que fossem contratados.

Os anos de escravidão e a posterior marginalização de parte considerável dos negros brasileiros, somados à discriminação e ao preconceito de cor, certamente imprimiram no imaginário de muitos negros uma limitação em relação às suas próprias capacidades e possibilidades

Por isso, é uma afirmação que beira à estupidez dizer que, por representarem 50% da população, os pretos e pardos deveriam, necessariamente, ocupar 50% das posições de destaque – econômico, obviamente – na sociedade, culpando, com o discurso inventado do mito democracia racial (na verdade um mito do mito, como diz o antropólogo Hermano Vianna), o racismo por tal disparidade. Nos EUA, por exemplo, como diz o jovem e muito promissor escritor Coleman Hughes, em algumas regiões negros imigrantes do Caribe são mais bem-sucedidos que os negros americanos, pois são culturalmente mais determinados e menos propensos a se deixar afetar pela discriminação que certamente sofrem, nem aderem à militância paralisadora. Sowell corrobora: “Valores culturais, herdados socialmente, em vez de biologicamente, também podem reduzir as probabilidade estatística do avanço em termos de renda ou de ocupações, até mesmo quando as oportunidades estiverem disponíveis – e ninguém escolhe em qual cultura nascer [...]. Uma criança criada numa casa em que se valorize mais a destreza física do que a intelectual dificilmente terá as mesmas metas e prioridades de uma criança criada numa casa onde ocorra o inverso”. E, como parece óbvio, atribuir disparidades à discriminação indiscriminadamente, dificulta ainda mais a busca por uma solução, pois as causas apresentadas são falsas. Nesse sentido, Sowell é categórico:

Quando culpar a “sociedade” é mais ou menos o padrão para se explicarem diferenças quanto à mobilidade social de diferentes classes de renda, grupos étnicos ou outros segmentos da sociedade, desvia-se a atenção dos fatores internos que impedem que muitos indivíduos utilizem as oportunidades disponíveis. Ao reduzir a consciência dessas inibições internas ao avanço, esta abordagem reduz as chances de mudanças nesses impedimentos – reduzindo assim as próprias chances de que pessoas mais pobres, com as quais esses estudos alegam estar preocupados, avancem.

No Brasil, muitas estatísticas sociais têm o mesmo problema e acabam por piorar a vida das pessoas em vez de melhorá-la. Estamos num momento de transição histórica, e as soluções fáceis são atraentes para aqueles que não têm (deliberadamente ou não) a prudência necessária para observar a situação real, trabalhar dentro das circunstâncias e buscar mudanças perenes, que exigem paciência e perseverança. Não tivessem os movimentos sociais – pautados pelo maniqueísmo opressor vs. oprimido – trocado a lógica da superação pela falácia da reivindicação, tudo seria, se não mais simples, mais honesto.

E, como não temos no Brasil um Thomas Sowell, que se debruce sobre os dados estatísticos e sobre pesquisas realizadas para demonstrar-lhes as incoerências e desonestidades, ficamos à mercê daqueles que vendem lenços em velórios e, anunciando tragédias, oferecem soluções mirabolantes – quando não rupturas revolucionárias. Eu mesmo gostaria de ter as habilidades matemáticas de Thomas Sowell para, pacientemente, debruçar-me, por exemplo, sobre o sistema de cotas raciais e verificar seus reais resultados em detrimento do ensino básico, que sofre com o total descaso de todos. Mas, infelizmente, caríssimo leitor, os números não são o meu forte. No entanto, podemos, sentados sobre os ombros de gigantes, tentar trazer um pouco de racionalidade a essa loucura chamada debate público brasileiro.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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