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O líder negro Malcolm X.
O líder negro Malcolm X.| Foto: Marion S. Trikosko/U.S. News & World Report/Library of Congress/Domínio público

“Pela ideologia, o ódio dá passo da natureza para a cultura. Já não é deixado correr, ao acaso, no álveo do psíquico humano, seguindo os meandros, os cansaços e as mobilizações esporádicas deste, mas o traçado dele é disciplinado: o ódio ganha, desde agora, um débito constante e uma direção firme.” (Gabriel Liiceanu, Do ódio)

No dia 28 de janeiro de 1961, um dos maiores líderes negros do século 20, Malcolm X, encontrou-se com líderes da Ku Klux Klan (KKK) a fim de negociar a compra de terras no sul para a Nação do Islã (NOI). Manning Marable, biógrafo de Malcolm X, relata: “Aparentemente, a Nação estava interessada em comprar terrenos para agricultura e outras propriedades no sul e, como explicou Malcolm, queria pedir ʻa ajuda da KKK para conseguir a terraʼ. De acordo com a espionagem do FBI, Malcolm assegurou aos racistas brancos que ʻseu povo desejava total segregação da raça brancaʼ. Se fosse possível obter território suficientemente amplo, os negros estabeleceriam negócios, ou mesmo um governo, separados racialmente dos brancos. Explicando que a Nação exercia estrita disciplina sobre seus membros, ele insistiu com brancos racistas na Geórgia para fazerem o mesmo: eliminar os brancos ʻtraidores que ajudam os líderes integracionistasʼ”. Um encontro, para dizer o mínimo, curioso. Louis A. DeCaro, em On the Side of My People – A Religious Life of Malcolm X, diz que “sem dúvida, Malcolm ficou perturbado por ter sido enviado para representar a NOI nessa cúpula sulista; ele disse mais tarde que Elijah Muhammad nunca mais o enviou para o sul e reiterou que ele nunca mais foi para o sul depois desse incidente”. Embora tenha ido ao encontro contrariado, foi.

Meses mais tarde, em 25 de junho, um improvável grupo de aliados surge num comício da NOI, em Washington. Sentaram-se na primeira fileira, ladeados pelos impolutos membros da seita muçulmana negra. Malcolm X discursou. Os “aliados” eram membros do Partido Nazista Americano, liderados por George Lincoln Rockwell, que foram, com a permissão de Elijah Muhammad, líder máximo da NOI, demonstrar publicamente sua simpatia e empenho por uma causa comum: a segregação da América. Marable nos revela: “Nos primeiros anos, a literatura do Partido Nazista Americano referia-se aos afroamericanos como ʻniggersʼ, moral e mentalmente inferiores aos brancos. Mas, quando Rockwell se inteirou das posições anti-integracionistas da Nação do Islã, ficou fascinado com a ideia de uma frente unida formada por brancos ʻsupremacistasʼ e nacionalistas negros. Até elogiava a Nação para seus seguidores, afirmando que Elijah Muhammad tinha ʻreunido milhões de pessoas sujas, imorais, bêbadas, sem educação, preguiçosas e repulsivas do tipo que chamamos desdenhosamente de ‘niggers’, inspirando-as a tal ponto que se tornaram seres humanos limpos, sóbrios, honestos, trabalhadores, dignos, dedicados e admiráveis, apesar da corʼ”.  Marable completa:

“Perante um público de 8 mil pessoas, Rockwell e dez soldados nazistas – todos elegantemente trajando uniformes marrom-claros, com braçadeiras ostentando brilhantes suásticas – foram conduzidos a cadeiras perto do palco, no centro da arena. Representantes da imprensa afroamericana, espantados com a presença de nazistas, berravam perguntas a Rockwell, que anunciou: ‘Estou perfeitamente de acordo com o programa [da NOI] e tenho por Elijah Muhammad o maior respeito’. Apesar de Muhammad ter sido anunciado como o principal orador, naquele dia ele ainda estava muito doente, e o discurso ficou por conta de Malcolm. Depois do seu discurso, pediu-se ao público que contribuísse e, quando Rockwell ofereceu vinte dólares, Malcolm perguntou quem tinha sido o doador. Um soldado nazista gritou: ʻGeorge Lincoln Rockwellʼ, e os muçulmanos aplaudiram polidamente. Rockwell foi convidado a levantar-se; mais uma vez, o líder nazista recebeu aplausos discretos. Malcolm não resistiu à vontade de fazer um comentário: ʻO senhor acaba de receber o maior aplauso de sua vidaʼ.”

Unir esforços com nazistas estava em flagrante contradição com tudo o que a luta negra por direitos e igualdade representava naquele momento de leis Jim Crow e segregação violenta. Mas não estava tão distante assim dos interesses da Nação do Islã

Malcolm, novamente, sentiu-se profundamente contrariado por ter de se aliar aos nazistas. No entanto, em obediência a Muhammad, aceitou. Em fevereiro do ano seguinte houve um encontro público ainda mais absurdo, em que Rockwell foi convidado a falar, após o sermão de Muhammad, para uma plateia de 12 mil muçulmanos. E disse – pasme, caro leitor: “Vocês sabem que nós os chamamos de ‘niggers’ […]. Mas não preferem lidar com homens brancos que lhes dizem na cara o que outros só dizem por trás?” E prometeu “fazer tudo que estiver ao meu alcance para ajudar o Honrado Elihah Muhammad a realizar o seu inspirado plano de conseguir terra para vocês na África. Elijah Muhammad está certo – é separação ou morte!”.

Parece loucura, e é. Unir esforços com nazistas estava em flagrante contradição com tudo o que a luta negra por direitos e igualdade representava naquele momento de leis Jim Crow e segregação violenta. Mas não estava tão distante assim dos interesses da NOI, que desejava realmente uma nação segregada – ideia com a qual Malcolm X compactuou por muito tempo. Sentar com membros da KKK a fim de negociar terras é o cúmulo do absurdo, mas ocorreu.

E tem mais. Como digo num artigo, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo:

“W.E.B. Du Bois, o maior intelectual negro americano do século 20, viajou para a União Soviética e para a China em 1926 e 1958, e para a Alemanha nazista em 1936, e suas opiniões acerca dos regimes ditatoriais desses lugares são motivos de crítica até hoje. Apesar de condenar o tratamento dado aos judeus, louvou o desenvolvimento econômico do nacional-socialismo e o fascismo hitleriano como a ʻvisão mais surpreendente da história modernaʼ. Isso é o que nos diz seu maior biógrafo, David Levering Lewis, em W.E.B. Du Bois The Fight for Equality and the American Century, 1919-1963. Sobre a China, tirou fotos sorridentes ao lado de Mao Tsé-tung e, num discurso na Universidade de Pequim, disse que ʻa União Soviética está superando o mundo em educação popular e superior, porque desde o início iniciou seu próprio sistema educacional completo. A essência da revolução na União Soviética e na China, e em todas as nações da Cortina de Ferro, não é a violência que acompanhou a mudança; não mais do que a foi a fome em Valley Forge a essência da revolução americana contra a Grã-Bretanha. A verdadeira revolução é a aceitação por parte da nação do fato de que doravante o objetivo principal da nação é o bem-estar da massa do povo e não de uns poucos sortudosʼ. Também admirou-se do colonialismo japonês na Manchúria e louvou Stalin, em sua morte, com um artigo em sua homenagem, chamando-o de ʻum grande homem [...] simples, calmo e corajosoʼ”.

O magnífico Du Bois, por quem tenho profunda admiração, fez tudo isso enquanto Mao e Stálin ajudavam a empilhar os 100 milhões de mortos dos regimes comunistas. Filósofos como Eric Voegelin, cidadãos comuns como o beato Franz Jägerstätter, e escritores como Thomas Mann e Heimito von Doderer perceberam a loucura genocida do nazismo ainda em seu início, mas Du Bois só enxergou o “desenvolvimento econômico do nacional-socialismo”. Inaceitável, mas concordo que isso não macula sua imensa contribuição para a causa negra não só nos EUA, mas no mundo.

Mas a tolerância parece não ser um atributo quando se trata de alguém de quem discordamos. Recentemente, Bruno Aiub – o Monark, ex-host do Flow Podcast e ex-sócio dos Estúdios Flow – e o deputado Kim Kataguiri foram acusados de apologia ao nazismo e até de nazistas por terem defendido o absolutamente indefensável num episódio do Flow: a livre expressão de ideias nazistas e até que a criação de um partido nazista fosse permitida, como é nos EUA ainda hoje, a fim de que a própria sociedade pudesse rechaçá-las. A justificativa – se é que podemos chamar assim – é que deixar que o Estado proíba as ideias, por mais absurdas que sejam, pode fomentar o autoritarismo. Que me perdoem Monark e Kim, mas isso não tem o menor cabimento; principalmente porque, na prática, tais ideias já se mostraram extremamente nocivas à humanidade. E o fato de existirem ainda hoje e serem propagadas livremente nos EUA – não sem, vez por outra, provocarem grande confusão e mortes – não significa que podem circular livremente em qualquer lugar. Há uma questão cultural aí que não pode ser deixada de lado. Mas nem preciso gastar muito tempo tentando explicar isso, pois o assunto já foi amplamente debatido nas redes sociais e na mídia.

O fato é que as ideias defendidas por Monark e confirmadas por Kim resultaram numa desproporcional reação, principalmente da esquerda (e de bolsonaristas, especificamente em relação a Kim) – ativistas do movimento negro inclusos –, nas redes sociais e a consequente saída de Monark do Flow Podcast e da sociedade nos Estúdios Flow, além de uma investigação da Procuradoria-Geral da República contra o deputado Kim – que pode perder o seu mandato – e o próprio Monark. Os Estúdios Flow ainda perderam seus patrocínios, o que pode comprometer a continuação de uma empresa que, atualmente, emprega, direta e indiretamente, mais de 100 pessoas que não têm absolutamente nada a ver com o ocorrido. Fruto da cultura do cancelamento que, atualmente, se impõe por parte dos extremos políticos. E muitos desejaram marcar sua posição nesse processo de violência mimética com uma frase que, na prática, como pudemos ver nos casos de Malcolm X e Du Bois, não faz muito sentido: “Se há dez pessoas à mesa, entra um nazista, se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então há onde nazistas à mesa”. Malcolm X e W.E.B. Du Bois – talvez, a essas alturas do campeonato, seja preciso dizer – não eram nazistas; tampouco Monark e Kim. Por motivos distintos, os quatro envolvidos nessa breve análise não viram o nazismo, em seus determinados contextos, como algo tão danoso quanto já tinha sido na guerra. É absurdo, mas essa é a verdade.

Combater o nazismo fazendo concessões ao comunismo é simplesmente hipocrisia

Mas há um adendo a fazer. No meio da confusão e das acusações de nazismo, uma discussão lateral se apresentou, com pessoas comparando os males do nazismo aos do comunismo, pois a esquerda, enquanto condena com veemência aquela ideologia, tolera, defende e, muitas vezes, prega esta. Em defesa de si, militantes de esquerda e a própria imprensa correram para justificar que o comunismo é somente “uma ideologia, um movimento político, filosófico, social e econômico cujo objetivo final é estabelecer uma sociedade comunista, ou seja, um país igualitarista, sem divisão de classes sociais, do dinheiro e do Estado”. Mas isso não é tão simples assim. Na prática, os dois regimes provocaram genocídios, com o comunismo determinando o “ódio de classes” e a revolta armada – e a consequente eliminação do “burguês” –, e o nazismo fomentando uma ideologia de superioridade racial com o extermínio de “raças inferiores”. As duas ideologias foram repaginadas por seus adeptos, com o comunismo atenuando-se, em grande medida, numa ideia de igualitarismo estatal, e o nazismo defendendo a segregação e não propriamente o extermínio. Como dizem: me engana que eu gosto.

Isso significa que tais ideias não devem ser combatidas? Óbvio que não. Mas devemos combatê-las com a verdade; e a verdade é que “ideias nazistas”, apesar de esdrúxulas e absolutamente reprováveis, não são, atualmente, pelo menos em sua superfície, ideias de extermínio; são ideias estúpidas de superioridade racial e de segregação – como as defendidas pelo partido de Rockwell e compactuadas pela NOI de Malcolm X. Defender a sua existência, como Monark e Kim o fizeram, não significa defender o nazismo ou o direito ao extermínio, mas um tipo de liberdade de expressão abstrata – e burra – cujos excessos a própria sociedade teria condições de reprimir. É querer pagar para ver algo que a história já mostrou que não presta. Não, obrigado.

Minha solidariedade ao deputado Kim Kataguiri e ao Monark, que não merecem toda essa onda de ódio e de sinalização de virtudes que detratores propagam para destruir-lhes a carreira e a reputação

Entretanto, o comunismo, apesar de ser, para seus defensores, uma ideologia “do bem”, da igualdade e da tolerância, também já se provou, na prática – pois, de novo, é a prática que importa –, ser tão deletério e reprovável quanto o nazismo, porque aceitou eliminar os “desiguais” para (tentar) atingir a igualdade. Como diz o filósofo Tobias Barreto, a igualdade absoluta não pode ser um princípio, pois é utópica e, se é utópica, pode facilmente descarrilar em violência e extermínio para atingir seus objetivos. Por isso, defender essa utopia igualitária é, também, flertar com o autoritarismo e com o extermínio igualmente comprovados pela história. Na democracia e no Estado de Direito devemos combater com veemência ideias que violem esses princípios. Por isso, combater o nazismo fazendo concessões ao comunismo é simplesmente hipocrisia.

Minha solidariedade ao deputado Kim Kataguiri e ao Monark, que, definitivamente, não merecem toda essa onda de ódio e de sinalização de virtudes que detratores, de maneira sistemática e organizada, propagaram para destruir-lhes a carreira e a reputação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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