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Hans Christian Andersen. Foto: Wikimedia Commons
Hans Christian Andersen. Foto: Wikimedia Commons| Foto:

Se se realmente ler os contos de fadas, observar-se-á que uma ideia os atravessa de ponta a ponta – a ideia de que a paz e a felicidade só podem existir dadas determinadas condições. Essa ideia, que é o âmago da ética, é o âmago dos contos infantis. Toda felicidade da terra encantada pende de um fio, de um único fio […] Essa grande ideia, pois, é a espinha dorsal de todo o folclore – a ideia de que toda felicidade pende de uma pequena proibição; de que toda alegria positiva depende de uma negativa”. (G. K. Chesterton)

Em meu último artigo, defendi que o conceito de imperfeição humana – que a tradição ocidental, judaico-cristã, atribui à doutrina do Pecado Original – foi (e ainda é) fundamental para a construção do Ocidente, para a noção de prudência – a mãe de todas as virtudes – e a consolidação de nossa cultura. A ideia de que não é com facilidade que escapamos do egocentrismo e da vaidade desmedida, de que nossa capacidade de magoar e de “meter os pés pelas mãos” está sempre diante de nós, produz, naqueles que são educados para essa percepção, um cuidado extremamente necessário à convivência humana e mesmo à nossa saúde (física e mental). Hoje gostaria de usar um exemplo, que muito me agrada e que tenho procurado difundir, de como, do ponto de vista da educação, esse legado pode ser transmitido.

O primeiro ponto é compreendermos que não há boa educação sem moral. E quando digo isso não estou falando de religião – apesar de crer que toda moralidade provém dela(s). Estou falando daquele conjunto de saberes elementares que, como diz Russell Kirk, nos ajuda “apreender a justa ordem da alma e a justa ordem da comunidade”. Esse conjunto de saberes pode ser transmitido através da formação de nosso imaginário, ou de nossa imaginação moral, a saber – novamente recorrendo a Kirk: “a capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento”. O termo foi cunhado por Edmund Burke em Reflexões sobre a revolução na França, em sua percepção de que a ordem moral da sociedade seria gravemente prejudicada pelo movimento revolucionário comandando por Robespierre:

Mas agora tudo isso vai mudar. Todas as agradáveis ilusões que tornavam o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizavam diferentes matizes da vida e que, por uma branda assimilação, incorporavam à política os sentimentos que embelezam e suavizam a sociedade privada, serão dissolvidas por esse novo e conquistador império de luzes e de razão. Toda roupagem decente da vida será rudemente rasgada. Todas as ideias adicionadas, obtidas no guarda-roupas de uma imaginação moral, que o coração possui e o entendimento ratifica como necessárias para cobrir os defeitos de nossa natureza nua a trêmula, e para elevá-la à dignidade em nossa própria avaliação, serão desacreditadas como ridículas, absurdas e moda antiquada. (grifo meu)

A “profecia” de Burke se cumpriu. O Ocidente, que passou a viver sob o influxo do Iluminismo – o “novo império das luzes e da razão” de que diz Burke –, catalisador da revolução, substituiu a imaginação moral adquirida por milênios de amadurecimento civilizacional pela imaginação idílica de pensadores como Rousseau, que, segundo o filósofo Irving Babbitt, em Democracia e Liderança, criou um novo tipo de dualismo: “O dualismo antigo punha o conflito entre o bem e o mal no coração dos indivíduos, com o mal tão predominante desde o Pecado Original que convinha ao homem ser humilde; com Rousseau, esse conflito é transferido do indivíduo para a sociedade”. E arremata: “O cristianismo tem se esforçado por para fazer humilde o homem rico, enquanto o efeito inevitável do evangelho rousseauniano é fazer orgulhoso o homem pobre”.

O fato é que perdemos quase completamente nossas referências; e até a religião, que antes era uma salvaguarda dessa tradição, foi contaminada por esse excesso de racionalismo e ceticismo materialista, tornando a moralidade uma questão privada e totalmente desprovida de fundamentos que não advenham exclusivamente dos indivíduos – nós, que a tradição reputava como imperfeitos. Ou seja, a ideia de que, parafraseando Burke, o indivíduo é néscio, mas a comunidade é sábia, foi substituído pelo subjetivismo radical, no qual cada um formula para si a moral que mais lhe agrada, nem que, para isso, seja preciso prejudicar o próximo.

Como reagir a isso? Como fazer com que a imaginação moral seja novamente preenchida com aqueles fundamentos que são fonte de sabedoria e que nos fincam os pés na realidade concreta? É Russell Kirk, mais uma vez, quem nos ajuda, em Enemies of the Permanent Things: “’Fantasia’ originalmente significava a imaginação esclarecida. Na fantasia, as coisas são representadas estranhamente, de modo a despertar nosso maravilhamento; ainda assim, o choque do fantástico tem a intenção de nos despertar do torpor e da complacência”. A literatura imaginativa – com destaque para os contos de fada –, é fonte inesgotável daquela moralidade elementar que nos preenche a existência de sentido e nos alicerça a razão. Essa ideia foi difundida e praticada por escritores como G. K. Chesterton, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, George MacDonald, Andrew Lang entre outros. Os contos de fada são um recurso de valor inestimável à educação e à formação da imaginação moral. Como diz Chesterton a respeito de si próprio, em Ortodoxia:

Minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza absoluta, eu a aprendi na creche. Geralmente a aprendi de uma babá; isto é, daquela solene sacerdotisa ao mesmo tempo da democracia e da tradição, indicada pelos astros. Aquilo em que eu mais acreditava naquela época, aquilo em que mais acredito atualmente, são coisas que chamamos de contos de fadas. Eles me parecem inteiramente razoáveis. Não são fantasias: comparadas com eles, outras coisas são fantásticas […] O país das fadas nada mais é do que o país ensolarado do bom senso. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que julga a terra.

Além disso, os contos de fada têm a qualidade de produzir em nós aqueles sentimentos tão bem analisados por Tolkien em seu Sobre histórias de fadas: a Recuperação, o Escape e o Consolo. Tais sentimentos nos ajudam a, respectivamente, retomar os valor das coisas simples, escapar (momentaneamente) das agruras da vida e oferecer-nos uma virada jubilosa que nos renova a esperança. São, portanto, capazes de moldar nossa a imaginação com qualidades que nos ajudam a solidificar nossa visão de mundo de modo a respeitarmos os limites impostos pelas circunstâncias. Como diz Chesterton na epígrafe deste artigo: “toda felicidade pende de uma pequena proibição; […] toda alegria positiva depende de uma negativa”.

E para mim, um dos maiores representantes do gênero, cujas histórias são contadas, recontadas e adaptadas por todo o mundo há quase duzentos anos, é o dinamarquês Hans Christian Andersen.

Andersen nasceu em Odense, na Dinamarca, em 2 de abril de 1805, filho do sapateiro Hans Andersen e da lavadeira Anne Marie Andersdatter. Cresceu num ambiente bastante pobre, cujo sofrimento era minimizado pelas histórias de As mil e uma noites que o pai lhe contava – segundo ele, os únicos momentos que o via feliz. Após a morte do pai, quando ele tinha apenas 11 anos, foi obrigado a trabalhar; porém, aos 14 decide ir para Copenhagen tentar a carreira de ator. Após alguns percalços, cai nas graças de pessoas que lhe ajudam – sobretudo Jonas Collin, um dos diretores do Royal Theather, que, segundo ele diz em sua autobiografia My life as a fairy tale, unia “com a maior habilidade o mais nobre e melhor coração, a quem eu olhei com confiança em todas as coisas, que tem sido um segundo pai para mim”. Collin fez com que Andersen estudasse Gramática em Slagelse e entrasse na Universidade de Copenhagen, bem como lhe inseriu no convívio de nobres e até da família real. Seus primeiros contos foram publicados nos anos 1820 e fizeram considerável sucesso. A partir de então conquistou a atenção de todos, tornando-se um dos maiores escritores da Dinamarca, um orgulho nacional. Viajou pelo mundo e conheceu outras grandes personalidades, dentre elas o escritor Charles Dickens, seu grande admirador. Andersen ainda escreveu romances – um deles, Only a Fiddler, de 1837, recebeu duríssimas críticas de seu conterrâneo e contemporâneo Søren Kierkegaard, o filósofo desespero humano –, novelas, poemas e peças de teatro – inclusive uma peça de conteúdo abolicionista: Mulatten, de 1840.

Uma característica marcante dos contos de Andersen é sua compaixão. Como diz Otto Maria Carpeaux em sua História da Literatura Ocidental: “Em tudo o que Andersen escreveu, nota-se a forte simpatia social para com os ofendidos e humilhados”, provavelmente por sua infância de grande pobreza e das grandes dificuldade que enfrentou – fome, frio e grande rejeição por seu caráter um tanto pernóstico – até que alcançasse o sucesso, se tornando um dos homens mais célebres de seu tempo.

Os contos de Andersen foram traduzidos para mais de 125 línguas e adaptadas para o cinema, teatro e para a própria literatura. Dentre suas histórias mais conhecidas estão O Rouxinol, A Pequena Sereia, A Nova Roupa do Imperador, A Polegarzinha, O Patinho Feio, A Princesa e o Grão de Ervilhas, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Vendedora de Fósforos e A Rainha da Neve – esta última inspirou a Rainha Branca, das Crônicas de C. S. Lewis, e a animação Frozen. Todas são carregadas de fantasia e, ao mesmo tempo, de uma profunda reverência pela vida real, concreta, dura como ela é muitas vezes. Como diz Harold Bloom: “[A] ‘renúncia’ Goetheana era central para a arte de Andersen, que verdadeiramente cultua apenas um deus, que pode ser chamado de Destino. Embora Andersen fosse grandemente original em seus contos de fadas, ele aceitou entusiasticamente do folclore sua estoica aceitação do destino”. O sofrimento é uma presença real – e, às vezes, sufocante – de suas histórias, como em A Pequena Vendedora de Fósforos, que nos mostra, de forma bastante realista, o sofrimento de uma criança, descalça e sem roupas adequadas, enfrentando a rigorosa nevasca escandinava. Ou a virada jubilosa de A Polegarzinha e O Rouxinol, com seus finais felizes. Ou, ainda, a forte moralidade de A Roupa Nova do Imperador, que denuncia, de forma bastante divertida, os descaminhos da vaidade, da mentira e da adulação.

Andersen também fazia um esforço para que suas histórias não ficassem restritas ao público infantil. Como ele diz em sua autobiografia:

Eu escrevia minhas histórias no papel, exatamente na linguagem e com as expressões nas quais eu mesmo utilizava, coloquialmente, para os pequenos, e cheguei à convicção de que pessoas de diferentes idades divertiam-se igualmente com elas. As crianças se divertiam, na maior parte, com aquilo que era mais superficial; pessoas mais velhas, ao contrário, estavam interessadas no significado mais profundo. As histórias fornecem leitura para crianças e adultos, e isso certamente é uma tarefa difícil para aqueles que escrevem histórias para crianças.

O grande C. S. Lewis, que igualmente se notabilizou por suas histórias infanto-juvenis, corrobora com a visão e os esforços de Andersen, pois, como ele diz: “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”. Suas Crônicas de Nárnia têm, ao mesmo tempo, uma leveza e uma profundidade impressionantes.

Apesar de ter escrito muitas histórias de amor, Andersen nunca se casou, e há muitas especulações sobre sua sexualidade – coisa que pouco importa para sua obra. O fato é que teve uma grande musa inspiradora, que foi sua grande amiga, embora não tenha correspondido ao seu amor, a soprano Jenny Lind. Diz dela Andersen: “Por meio de Jenny Lind, comecei a perceber a santidade que existe na arte; com ela aprendi que é preciso esquecer de si próprio à serviço do Supremo. Nenhum livro ou homem teve uma influência melhor ou mais enobrecedora sobre mim como poeta do que Jenny Lind”. O belo filme biográfico A vida em um conto de fadas, de 2003, dirigido por Philip Saville, mostra bem essa influência, bem como constrói uma espécie de antagonismo amoroso entre Lind e a filha de Jonas Collin, Henriette Collin, também muito amiga dele.

Muito marcante, também, na vida de Andersen é sua fé em Deus. Em sua autobiografia é possível encontrar passagens como:

Toda minha vida, tanto os dias brilhantes quanto os sombrios, me levaram ao melhor. É como uma viagem para algum ponto conhecido – estou no leme, escolhi meu caminho –, mas é Deus quem governa a tempestade e o mar. Ele pode dirigir de outra forma; e então, aconteça o que acontecer, será o melhor para mim. Esta fé está firmemente plantada no meu peito e me faz feliz.

Hans Christian Andersen morreu em 04 de agosto de 1875, aparentemente de câncer de fígado.

Por fim, caríssimo leitor, devo recomendar-te que, caso não tenhas lido Andersen, que faças a experiência. Que tenhas, como eu tive, um impulso jubiloso ao ver o Boneco de Neve que, tendo passado a vida toda estranhamente atraído por uma lareira fumegante, ao derreter-se ao sol exibe sua base (alma?) feita de um ferro de limpar lareira. Diante da descoberta, seu amigo cão diz: “agora entendo a saudade que ele sentia”. Ou o alento de Desgosto (ou Mágoas do Coração), em que diz que nossas mágoas, quando compartilhadas com outros que também sofrem, “perdem a gravidade, e podemos até rir delas”.

Leia Andersen para seus filhos e netos, para seus sobrinhos e enteados, para seus alunos, leia para você. Só assim, diante da beleza da imaginação moral, teremos nossa cultura e nossa educação recuperadas.

 

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