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Henri Nouwen: fé, espiritualidade e desprendimento
| Foto: Reprodução

Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne — um anjo de Satanás para me espancar — a fim de que eu não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte. (Ap. Paulo em II Coríntios 12,7-10)

Esse final de semana assistimos, eu e minha esposa – que hoje aniversaria e a quem parabenizo – a série The New Pope, do genial Paolo Sorrentino, sobre a qual ainda pretendo escrever, estrelada por John Malkovich e Jude Law. Trata-se da sequência da soberba primeira temporada, que estreou em 2016, chamada The Young Pope. Essa série tem um personagem interessantíssimo, um cardeal chamado Angelo Voiello, estrelado pelo ator italiano Silvio Orlando, que mantém uma profunda amizade com um rapaz com severas deficiências físicas e mentais, Girolamo. A história dos dois se torna assaz comovente nessa temporada, mas não é disso que falarei; só uso o exemplo porque, ao ver o desenrolar da história, lembrei-me de um autor que muito admiro e que teve uma história parecida com a do cardeal Voiello: Henri Jozef Machiel Nouwen. É sobre ele que falarei brevemente neste artigo, caríssimo leitor, como uma forma de homenageá-lo e agradecê-lo por ter me ajudado, através de suas obras, em muitos momentos de minha vida.

Henri Nouwen nasceu em Nijikerk, na Holanda, em 24 de janeiro de 1932, filho de Laurent J. M. Nouwen, um advogado tributarista, e Maria Nouwen, que era contadora. Nouwen se formou em Teologia e Filosofia no seminário maior de Rijsenburg, foi ordenado padre em 21 de julho de 1957 e doutorou-se em Psicologia na Universidade de Nijmegen. Passou grande parte de sua carreira  paroquial fazendo pesquisas e atendimento psicológico numa clínica pastoral em Topeka, Kansas (EUA); posteriormente, em 1966, iniciou uma notável carreira acadêmica. Foi professor de Notre Dame, Yale e Harvard, provando-se um homem de grande capacidade intelectual. Mas todos esses intensos compromissos acadêmicos, somados aos 16 livros publicados até aquele momento e às muitas solicitações para conferências pelo mundo lhe causaram terríveis desgastes emocionais; uma intensa preocupação com os pobres e desvalidos também o desgastavam, e o levaram viajar pela América do Sul e a morar no Peru por seis meses, com uma família de pouquíssimos recursos.

Num desses colapsos nervosos, em 1985, Nouwen foi parar na comunidade L'Arche, uma instituição que cuida de pessoas com deficiências físicas e mentais, onde passou alguns meses que definiriam sua vida. Philip Yancey, um escritor protestante de reconhecimento mundial, autor de vários best-sellers, dedicou um capítulo a Henri Nouwen em sua obra Alma sobrevivente – sou cristão, apesar da Igreja, na qual aborda a vida de seus grandes mentores espirituais (dentre eles Dostoiévski, Chesterton e Martin Luther King Jr.), e nos traz informações interessantes. Chegando à comunidade L'Arche, na França, a convide de Jean Vanier – fundador da comunidade que se tornara seu amigo – “ele recebeu a visita do diretor de uma das casas L'Arche, Jan Risse […]. Jan visitou Nouwen por alguns dias, fez refeições para ele e o ajudou de modo bastante prático. Nouwen ficou esperando o inevitável convite para dar uma palestra, escrever um artigo, oferecer abrigo. Nenhum desses pedidos foi feito. A L'Arche estava oferecendo graça pura e simples, sem qualquer restrição. A visita de Jan causou uma impressão tal em Nouwen que ele pediu permissão a seu bispo para se juntar à Comunidade L'Arche na França”. Sua estadia foi tão proveitosa e impactante que, em alguns meses, pediu para pastorear uma das comunidades L'Arche, chamada Daybreak, em Toronto. Abandonou tudo – todo o sucesso acadêmico, toda agitação das sempre lotadas palestras e a vaidade que tudo isso lhe trazia – e passou o resto de seus dias (10 anos) cuidando de pessoas com necessidades especiais em Daybreak; pessoas que absolutamente não ligavam para todo o seu sucesso acadêmico e que nunca leriam seus livros. No entanto, ele se transformou num dos maiores escritores de espiritualidade cristã do séc. 20, com obras que marcaram e continuam marcando milhões de pessoas em busca de consolo em suas angústias.

O que levou Nouwen a tomar essa decisão foram suas batalhas pessoais. Como diz Yancey, “ele tomou essa decisão em função do fracasso, da escuridão espiritual e de feridas profundas. Ele foi para lá não para dar, mas para receber; não por causa de excesso, mas por falta. Foi para conseguir sobreviver”. Nouwen era um homem profundamente atormentado e inseguro, cujo sucesso, em vez de assoberbá-lo, o deixava em conflito, pois era como se fosse um profeta bíblico, que sente as dores de seu povo. Yancey, baseando-se nas palavras do biógrafo de Nouwen, Michael Ford, diz: “Ele era capaz de abordar temas inspirativos sobre a vida espiritual e, então, cair em profundo pavor. Falava da força que obtivera ao viver na comunidade para, então, às duas horas da manhã, visitar um amigo e, soluçando, pedir ajuda. Suas contas telefônicas normalmente eram mais altas do que o valor do aluguel, pois ele ligava para o mundo inteiro, desconsiderando fusos horários, na desesperada busca por companhia. Se um amigo deixava de cumprimentá-lo, demorava muito a responder a uma carta ou não o convidava para tomar um café depois de uma palestra, ele ficava amuado por vários dias, quase imobilizado pela rejeição. Em resumo, ele se sentia chamado a apresentar uma mensagem de paz interior e aceitação que ele mesmo nunca sentiu”.

No entanto, o que me deixou particularmente impressionado quando conheci a obra de Henri Nouwen foi exatamente a capacidade que ele tem de falar abertamente, sem rodeios, sobre dramas pessoais complexos; um total desprendimento de si, de suas vaidades e seguranças que me faziam sempre refletir e repetir, enquanto o lia: “eu não teria coragem de dizer isso a ninguém”. Pois ele tinha. Ele se expõe e nos expõe, intimamente, como pessoas carentes de Deus, necessitadas de sua Graça. Mesmo aqueles que não são cristãos, ficam impressionados quando se deparam com um homem tão determinado em espalhar as sementes de um amor incondicional, de um Deus que não se importa com nossos defeitos, mas quer curar a nossa alma. Como ele dizia, sua tarefa como guia espiritual consistia no seguinte: “Você está numa grande sala com uma plataforma de 15 centímetros de largura no centro. Ela está a apenas 30 centímetros do chão acarpetado da sala. Muitos de nós agimos como se estivéssemos vendados, tentando andar sobre esta plataforma, e temos medo de cair dela. Mas não percebemos que estamos a poucos centímetros do chão. O guia espiritual é alguém que pode tirá-lo desta plataforma e dizer: ‘Viu? Tudo bem. Deus ainda ama você’”.

Há ainda algo que também o deixava extremamente angustiado, sua sexualidade. Esse era um assunto que mantinha guardado a sete chaves, somente alguns amigos próximos sabiam, pois ele temia prejudicar o seu ministério. É seu biógrafo que nos revela, por meio de Yancey: “o padre era celibatário homossexual. Como resultado, ele ansiava por relacionamentos íntimos, mas se afastava deles em função do medo de aonde eles poderiam levá-lo. Ford diz: ‘Percebi quanto o desejo homossexual há muito reprimido na vida de Nouwen significava para suas lutas, e como provavelmente fora o estímulo para seus poderosos textos sobre solidão, intimidade, marginalidade, amor e posse’”. O celibato ainda é uma exigência a todos os sacerdotes católicos, mas é possível compreender o que o desejo pode causar, ainda mais quando vem acompanhado não só do compromisso com o ministério, mas com a repreensão interior por tê-lo direcionado a alguém do mesmo sexo num contexto religioso. Yancey expõe o drama:

Nouwen buscou ajuda num centro que trabalhava com mulheres e homens homossexuais, e ouviu seus amigos gays apresentarem várias opções. Ele poderia continuar como um padre celibatário e “sair do armário” como um gay, o que, pelo menos, liberaria o segredo que ele mantinha com tamanha angústia. Poderia se declarar, deixar o sacerdócio e buscar um companheiro. Ou poderia continuar publicamente como um padre e procurar, secretamente, desenvolver um relacionamento homossexual. Nouwen pesou cuidadosamente cada opção e rejeitou todas. Qualquer confissão pública de sua identidade atingiria seu ministério, temia ele. As duas últimas opções pareciam impossíveis para alguém que havia feito um voto de celibato e que tinha procurado orientação sobre imoralidade sexual na Bíblia e em Roma. Ele optou, assim, por continuar vivendo com sua ferida. Optou por esta saída muitas e muitas vezes.

Mas suas lutas interiores o prepararam para ser quem foi e fazer o que fez, e é difícil pesarmos essas decisões pelos outros; de minha parte, só tenho a agradecer os frutos de sua angústia e ter a certeza que Deus o tem em um bom lugar enquanto sua obra permanece viva e abençoando a tantas pessoas. A escolha de Nouwen pelos desvalidos de Daybreak o transformaram num farol para a escuridão das almas. E foi lá que ele conheceu Adam, um jovem de 20 anos com gravíssimas deficiências físicas e mentais – de quem me lembrei ao ver o personagem de Sorrentino – a quem Nouwen foi designado para ser cuidador particular. Adam não andava, não falava, não se movia – vegetava, como diziam antigamente; por isso Nouwen deveria dar-lhe banho, trocar suas roupas, alimentá-lo etc.. E foi nele que encontrou seu próprio guia espiritual, como disse na introdução do livro que escreveu para homenagear o jovem, Adam, o amado de Deus: “Adam era meu amigo, meu professor, e meu guia: um amigo incomum, pois não podia exprimir afeto e amor como a maioria das pessoas; um professor singular, pois não podia pensar de forma reflexiva e organizar ideias ou conceitos; um guia espiritual, pois não podia indicar-me uma direção concreta ou aconselhar-me […] Jesus era Emanuel, Deus conosco. Adam tornou-se para mim uma pessoa sagrada, um homem santo, uma imagem do Deus vivo”. Tudo isso porque o jovem era o exato oposto de tudo o que Nouwen sempre fora. O livro é belíssimo.

Duas obras de Nouwen, dos mais de 40 livros que escreveu, estão entre as minhas preferidas. Não que tenha lido todas – tenho apenas cinco –, mas essas me marcaram profundamente. A primeira é seu livro mais conhecido, escrito após ver pela primeira vez uma reprodução do quadro de Rembrandt, O retorno do filho pródigo, e, posteriormente, visitar o Museu Hermitage e meditar por horas sentado em frente ao original. O ensaio é maravilhoso, pois analisa cada aspecto da obra de Rembrandt, colocando-se na posição do filho mais velho, do pródigo que retorna, do pai que ama e o recebe, e também dos outros expectadores presentes no quadro. Como ele diz, em A volta do filho pródigo: a história de um retorno para casa: “Pusera-me em contato com algo dentro de mim que subsiste bem distante dos altos e baixos de uma vida atarefada, algo que representa a constante busca do espírito humano, o anseio por uma volta definitiva, por uma inquebrantável sensação de segurança, por um lar permanente. Embora ocupado com diferentes grupos de pessoas, envolvido em diversos temas e comparecendo a locais variados, a Volta do Filho Pródigo permanecia indelével da minha mente e passou a ter cada vez mais importância em minha vida espiritual”. Não é uma obra volumosa e vale cada linha, e nos mostra como somos, mesmo, em cada momento de nossa vida, ora parecidos com o pai, ora com um dos filhos, e ora com aqueles que observam o drama do próximo de forma absolutamente displicente.

O outro também é um livro curto mas profundo como o oceano, chama-se Transforma meu pranto em dança. Gosto tanto desse livro que, além de tê-o lido mais de uma vez, já presenteei um sem número de pessoas com ele, que agora, infelizmente, se tornou uma obra rara. É sobre o sofrimento e como podemos superar nossas dificuldades emocionais e espirituais. Li esse livro em 2005, e lembro como se fosse hoje do impacto que me causou o último capítulo, em que Nouwen fala sobre a morte. Eu estava num aeroporto, voltando para casa de uma viagem a trabalho, e ficava pensando: “já pensou se estamos lá no alto e o avião começa a cair; será que terei o mesmo desprendimento e a mesma fé que Nouwen demonstra nesse capítulo?”. Ele diz:

Quando alguém sofre, queremos ficar longe; quando alguém morre, não queremos lidar em cheio com aquela morte. Dizemos: “Ele partiu” ou “Ela nos deixou”. Embora haja a certeza de que cada pessoa vai morrer, continuamos a negar a morte, como se fosse a coisa mais irreal. A maneira como enterramos as pessoas em nossa sociedade, impressiona-me como um modo sofisticado de negar a realidade da morte. Nós tiramo-na de vista. Quando as pessoas que amamos morrem, circundamo-nas com flores e choramos por elas em recintos decorados para tranquilizar-nos. Não vemos mortos com frequência, mas, se vemos, queremos tirar as crianças de perto.

E arremata: “temos de evitar a morte a qualquer preço, mesmo que para isso tenhamos que desvalorizar a singularidade da vida”.

Nouwen morreu em 21 de setembro de 1996, de uma parada cardíaca, enquanto, curiosamente, viajava com uma equipe para a Rússia, a fim de produzirem um documentário sobre o quadro de Rembrandt que o levara a escrever o livro. Que esse artigo te estimule, amigo leitor, a ler as obras de Henri Nouwen, pois suas palavras são absolutamente necessárias nestes tempos de incertezas, nos quais, principalmente, precisamos olhar com urgência para o que realmente importa e reascender em nós o valor da solidariedade e da esperança.

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