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A funkeira Jojo Todynho.
A funkeira Jojo Todynho.| Foto: Reprodução/Instagram/página oficial

“O país das fadas nada mais é do que o país ensolarado do bom senso. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que julga a terra; assim, para mim pelo menos, não era a terra que criticava a Terra dos Elfos, mas a Terra dos Elfos que criticava a terra.” (GK Chesterton)

O podcast Mano a Mano, apresentado pelo líder do Racionais MC’s, Mano Brown, tem se tornado um dever de ofício para mim. Não só porque sempre tenho curiosidade de ouvir o que Brown tem a dizer, mas porque sei que, de tudo o que é dito, por ele e por seus convidados, sempre posso tirar algo de relevante para o meu trabalho, seja como professor, colunista ou mesmo crítico social. E dessa vez não foi diferente, mas de um modo um tanto inusitado e surpreendente. Jamais passou pela minha cabeça, pois não acompanho o seu trabalho, que a jovem funkeira que canta Que tiro foi esse? poderia despejar uma quantidade tão avassaladora de bom senso em pouco mais de duas horas de programa.

Jojo Todynho tem um belíssimo nome, Jordana Gleisi de Jesus Menezes; nasceu em 11 de fevereiro de 1997, no Rio de Janeiro, e é uma cantora de sucesso no meio em que atua. E digo cantora aqui no sentido pleno do termo, pois – e essa foi mais uma surpresa – ela canta de fato, e canta muito bem. Jordana, inicialmente, adotou o nome artístico de Jojo Maronttinni (segundo ela, sem saber de onde tirou esse sobrenome), mas foi com o apelido da rua que se notabilizou, e aqui temos a primeira coisa curiosa de sua personalidade, pois, parafraseando o ditado do limão, Jojo fez do leite um achocolatado. Ela diz que seu apelido se deu por conta de seus peitos (ou mamas) avantajados – que se tornaram sua marca registrada –, pois os garotos sempre se referiam a eles em tom de chacota; e após a comediante Cacau Protásio dizer, num programa humorístico, que “do peito de mulher preta não sai leite, mas achocolatado”, passou a ser chamada de Toddynho e resolveu assumir esse nome (com um “d” só), convertendo a chacota em identidade.

Jamais passou pela minha cabeça, pois não acompanho o seu trabalho, que a jovem funkeira que canta Que tiro foi esse? poderia despejar uma quantidade tão avassaladora de bom senso em pouco mais de duas horas de podcast

Comecei a ouvir o programa, como sempre faço, despretensiosamente. Mas, numa das primeiras respostas sérias que Jojo deu, tive um sobressalto. Brown perguntou: “essa sua coragem, esse ímpeto, essa coisa de não ter medo de errar, vem de quem?” A resposta foi:

“Minha família sempre me criou com muita realidade, de como era o mundo e o que eu poderia enfrentar lá fora. Então, é o que minha tia falava para mim: ʻfez merda, chega em casa e conta, porque assim a gente vai te corrigir, mas não vai deixar ninguém te esculachar. Então, se você não contar pra gente o que tá acontecendo, a gente não vai ter como resolver o seu problema. Por mais que você esteja errada, aqui é onde você tem de ser corrigida, não na rua; as pessoas não têm o direito de falar com você ou se direcionar a você da maneira que eles acham correto, você não é largada, você não é sozinhaʼ. Então toda vez que havia um problema, toda vez que eu tinha um conflito com alguém – o que era muito raro – eu já comunicava logo, eu dizia ʻtia, é isso, isso e issoʼ e ela já estava ciente. Porque ela falava pra mim: ʻvocê tem que me contar, porque se vier da boca dos outros não vai ser legal, porque vou achar que você tá botando a família de lado e tá querendo resolver suas coisas sozinha como se você não tivesse ninguém no mundo; e se você agir dessa maneira […], então tá bom, a gente vai deixar você pra resolver todos os seus pepinos; agora, quando você bota a gente a par da situação, a gente tá agindo aqui como uma família, isso aqui é uma uniãoʼ. Então foi assim que eu agi a minha vida toda”.

Ser criado com realidade, recebendo orientações de como as coisas são no mundo, é algo, para os dias de hoje, surpreendente, e reflete aquilo que o escritor Hans Christian Andersen – sobre o qual já falei aqui, nesta Gazeta do Povo – preconizava em seus contos de fadas. O sofrimento real, a realidade muitas vezes hostil – como em A pequena vendedora de fósforos –, fazia parte não só do universo literário de Andersen, mas de outros autores do gênero e de toda tradição oral a que pertencem as fábulas, lendas e mitos. Simbolicamente, o sofrimento das personagens ajuda a criança a dar conta das complexidades do mundo e de como responder a elas moralmente. Bruno Bettelheim diz, em seu A psicanálise dos contos de fada, que “o conto de fadas é orientado para o futuro e guia a criança – em termos que ela pode entender tanto na sua mente inconsciente quanto consciente – a abandonar seus desejos de dependência infantil e conseguir uma existência mais satisfatoriamente independente”. Tal sabedoria ancestral subverte, muitas vezes, o conhecimento acadêmico, acostumado a racionalizar tudo.

Após Jojo dizer que é uma pessoa sistemática, metódica, Brown perguntou se isso foi necessário para “furar o bloqueio”. Jojo, que acabara de dizer de sua determinação, perguntou: “qual tipo de bloqueio?” – como quem diz “nada pode me bloquear” –, e Brown acrescentou: “os bloqueios da vida, machismo, começar de baixo...”. Então Jojo emendou: “Minha tia sempre me ensinou [...] numa questão, tipo assim, você tem que trabalhar, ter o seu dinheiro; se você tá num lugar e não se sentiu confortável e tiver dinheiro no bolso, vem embora. Se você tá num ambiente que não é pra você, não fique lá. Então eu fui criada com essa realidade. Uma vez eu perguntei pra minha tia: ʻô tia, você nunca conversou comigo sobre sexoʼ, aí ela falou pra mim: você quer que eu converse, senta aíʼ. E ela falou: ʻsexo não pode fazer, droga não pode usarʼ”. É isso.

Tal postura, tão assertiva, é absolutamente deficiente na geração atual, e não só é desencorajada como combatida numa sociedade que estimula a reivindicação e o ressentimento. Jojo, apesar de dizer que está aprendendo – afinal de contas, só tem 25 anos –, não se rende aos ditames dessa modernidade elástica; mesmo que, como ela mesma diz, fora de casa seja a Jojo Todynho, que canta funk e esbanja sensualidade, dentro de casa ainda é a Jordana, que preza pelos valores que aprendeu ainda criança, de seus pais e parentes próximos. Jojo é família total.

Em outro momento, Brown pergunta: “você sofreu muita rejeição?” e, ao receber um “não” categórico, reformulou: “você não lidou ou atropelou a rejeição?”, e a resposta, apesar de mais ponderada, não deixou de ser categórica: “Eu não lidei com rejeição. E isso é uma coisa que eu até falei numa entrevista que ainda vai sair: hoje, eu sofro preconceito, mas na minha época, eu acho que ou Deus não me deixou ver – acho que eu não tinha discernimento disso – ... e eu não sofria preconceito. Hoje eu sofro muito mais porque estou exposta”. E Brown disse que fez essa pergunta porque ele mesmo teve de lidar com rejeição. Ela defende que essa é a forma como foi criada, com justiça. E Brown, a certa altura, diz ela é muito inteligente, que parece uma professora de sabedoria de vida, que “sabe sair de todas as situações”. É isso, de novo.

O senso comum, o bom senso da tradição, que confunde os acadêmicos, faz todo o sentido para aqueles que ainda não estão contaminados pelo ressentimento da atualidade

Essa firmeza de caráter de Jojo Todynho está intimamente ligada àquela sabedoria, como eu disse anteriormente, que só uma educação das virtudes, só uma imaginação moral bem formada, pode alimentar. Não é algo que se aprende em livro, em teses, é uma sabedoria que passou no teste do tempo e ainda resiste. A geração atual – que nomeei de geração assustada – não tem condições sequer de assimilar isso, pois não foi preparada para tal. Não há limites e não há condicionais, todos acham que podem fazer o que querem, quando e como querem, embora as coisas, na realidade, não serem assim. A bem-aventurança, nesse mundo, é sempre condicional, pois a realidade é ambígua e o bem é sempre permeado do mal, e isso, como nos declara Chesterton, é algo presente na ética da terra dos elfos, na moralidade dos contos de fada:

“É inegavelmente óbvio que toda a ética deve ser ensinada de acordo com a harmonia da terra encantada; a de que, se alguém faz algo proibido, põe em risco tudo aquilo de que dispõe. Se um homem quebra a sua promessa para com a esposa, ele deve ser lembrado de que, mesmo se ela for um gato, o caso da fada-gato mostra que tal conduta é pouco prudente. Um arrombador prestes a abrir o cofre de alguém poderia ser jocosamente lembrado de que ele está na situação perigosa da bela Pandora: ele está prestes a abrir a tampa proibida e a libertar males desconhecidos. O garoto comendo a maçã alheia no pé de maçã alheio poderia ser lembrado de que chegou a um momento místico de sua vida, quando uma maçã pode lhe roubar todas as outras. Essa é a profunda moralidade dos contos de fadas; o fato de que, longe de serem livres de leis, vão à raiz de toda lei”.

Ao ser perguntada sobre seus medos da infância, Jojo é enfática – e causa certa perplexidade nos ouvintes: “Eu não tive medo, porque eu acho que sempre fui muito protegida pela minha família. Porque, assim, por mais que lá fora fosse vago, eu voltava pra casa e tinha um acolhimento; o colo da minha avó, o colo da minha tia, o colo da minha madrinha, o colo da minha mãe […]. É o que sempre falo pra todo mundo, se todas as crianças que vivem em comunidade tivessem uma base familiar, muitas delas não se perderiam; porque a sociedade olha pra gente, e acha que porque a gente mora em comunidade, a gente tem que virar mulher de bandido ou virar bandido”.

Jojo é a voz da ancestralidade, a voz da sabedoria dos antigos, ainda que seja muito jovem. Ela nos faz lembrar que nossos valores não podem ser relativizados pelas vicissitudes do tempo; que há um núcleo que, pela própria necessidade de sobrevivência, deve permanecer intacto. E tais saberes são passados de geração em geração, através do afeto e das virtudes.

E ao terminar o episódio, a pergunta que me fiz foi: “que tiro foi esse?”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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