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Imagem: detalhe da obra “Christ in Limbo”, de Fra Angelico.
Imagem: detalhe da obra “Christ in Limbo”, de Fra Angelico.| Foto:

"Ninguém ouvia o que o Grande Irmão estava dizendo. Eram apenas algumas palavras de estímulo, o tipo de palavras pronunciadas no fragor da batalha, impossíveis de distinguir isoladamente, mas que restauram a confiança pelo mero fato de serem ditas. Em seguida o rosto do Grande Irmão se esfumou outra vez e os três slogans do Partido, em letras maiúsculas, ocuparam seu lugar: GUERRA É PAZ / LIBERDADE É ESCRAVIDÃO / IGNORÂNCIA É FORÇA." (George Orwell, 1984)

Nos últimos dias tenho visto a palavra liberdade circular entre pessoas que, ao que parece, desejam dar todo o poder nas mãos do presidente da República. Na verdade, todos os seus apoiadores, dos mais moderados aos radicais do intervenção-militar-com-Bolsonaro-no-poder, já se convenceram de que o presidente não conseguirá governar – bem, ele não conseguiria de qualquer jeito, pois é incapaz, mas seu séquito de tradicionalistas e neopentecostais – com o Congresso e o STF que aí estão; e todos, absolutamente todos, não ficariam tristes com um golpe de Estado à la Pinochet, a quem Bolsonaro elogia e que tem lá seus admiradores entre liberais, por conta das políticas econômicas adotadas pelos Chicago Boys.

O fato é que as palavras liberdade e democracia sempre foram usadas e abusadas para legitimar todo tipo de loucura autoritária, do jornal El Cubano Libre, de Che Guevara, ao Kampuchea Democrático da ditadura comunista genocida do Camboja. Todos aqueles que intentam libertar-se de algo que julgam ruim, obviamente usam a palavra liberdade, e falar em democracia após a Revolução Francesa tornou-se obrigatório a quem quer parecer politicamente moderado. Mas o que significa ser livre de fato? A liberdade é somente liberdade política?

No primeiro artigo que escrevi para esta coluna, dei o título que é o mote da própria coluna: A liberdade é um direito radical. Na ocasião, tratei de duas situações em que a liberdade operou como um princípio e colocou, primeiro diante de um povo, depois diante de um indivíduo, o poder de escolha cujas consequências alteraram o curso de suas vidas.

Primeiro, falei da Bíblia. Quando Deus libertou o povo de Israel da escravidão egípcia, deu-lhes não só os mandamentos, mas também uma proposta de liberdade radical: “Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.

“Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando em teu caminho, deitado e de pé. (…) Amanhã, quando o teu filho te perguntar: ʻQue são estes testemunhos e estatutos e normas que Iahweh nosso Deus vos ordenou?ʼ, dirás ao teu filho: ʻNós éramos escravos do Faraó no Egito, mas Iahweh nos fez sair do Egito com mão forte. Aos nossos olhos Iahweh realizou sinais e prodígios grandes e terríveis contra o Egito, contra o Faraó e toda a sua casa. Quanto a nós, porém, fez-nos sair de lá para nos introduzir e nos dar a terra que, sob juramento, havia prometido aos nossos paisʼ”. (Deuteronômio 6, 6-7;20-23)

Viver sob Deus significava não se submeter a nenhum homem; de posse das leis, das orientações divinas mediadas pelos profetas e da justiça realizada por juízes escolhidos pelo próprio povo, não havia necessidade de um rei terreno. Mas o povo de Israel sucumbiu e quis ser como os outros povos: “estabelece sobre nós um rei (…) como acontece em todas as nações” (v. 5). O resultado não poderia ser diferente: submissão, dependência e pecado. E não foi por falta de aviso, pois Samuel, o profeta, lhes disse:

“Este é o direito do rei que reinará sobre vós: Ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e dos seus cavalos e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais, e os dará aos seus oficiais. Das vossas culturas e das vossas vinhas ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus eunucos e aos seus oficiais. Os melhores dentre os vossos servos e as vossas servas, os vossos bois e os vossos jumentos, ele os tomará para o seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus escravos. Então, naquele dia, reclamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas Iahweh não vos responderá naquele dia!” (I Samuel 8,11-20)

Aliás, no artigo da última semana reproduzi um trecho de um artigo do grande abolicionista Luiz Gama, em que ele diz a mesma coisa: “E ai do povo que escolher monarcas para governá-los (lá está escrito nos livros sagrados); porque essa imprudente escolha será formal abdicação do reinado de Deus, único legítimo que deverá reconhecer a humanidade. Esse povo será lançado fora das vistas do Senhor; será qual outro Prometeu, atado pelos grilhões da degradação do Cáucaso imóvel do cativeiro, e o rei por ele alevantado o abutre inacessível que, com as garras aduncas, a seus próprios olhos há de dilacerar o lábaro santo de suas liberdades”.

Por outros lado, a liberdade foi fundamental na vida do grande abolicionista e escritor americano Frederick Douglass. Tendo aprendido a ler, e ouvido seu senhor dizer à esposa, que lhe servira de professora, que “se você ensinar esse preto a ler, nada poderá detê-lo; isso o tornaria eternamente inútil para o serviço da escravidão”, percebeu que “o conhecimento torna uma criança inapta para a escravidão”. A partir daquele momento, mesmo ainda em cativeiro, sua mente já voava em liberdade. Diz ele: “A trombeta prateada da liberdade despertara na minha alma uma vigília eterna. A liberdade agora me acenara, para nunca mais desaparecer. Era ouvida em cada som e avistada em tudo. Fazia-se sempre presente, atormentando-me com uma impressão da minha condição miserável. Eu nada via sem vê-la, nada ouvia sem ouvi-la, e nada sentia sem senti-la. Olhava-me de cada estrela, sorria-me em cada calmaria, respirava em cada vento e movia-se em cada tempestade”. E, na primeira oportunidade, fugiu para se tornar um dos maiores estadistas da América.

No entanto, séculos mais tarde Fiódor Dostoiévski, em sua obra máxima Os Irmãos Karamázov, nos mostrará uma contradição fundamental do ser humano relacionada à liberdade. Em sua parábola d'O Grande Inquisidor, em que Jesus volta à terra, é reconhecido, preso e condenado novamente, o inquisidor diz ao Cristo: “Queres ir para o mundo e estás indo de mãos vazias, levando aos homens alguma promessa de liberdade que eles, em sua simplicidade e em sua imoderação natural, sequer podem compreender, da qual têm medo e pavor, porquanto para o homem e para a sociedade humana nunca houve nada mais insuportável do que a liberdade”! E arremata de maneira assombrosa, dizendo: “Não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se”.

Esses poucos exemplos que a história e a literatura nos dão, são suficientes para que eu me coloque, sempre e firmemente, numa posição de ceticismo em relação aos governos humanos. Não há nessa terra um indivíduo que mereça minha confiança irrestrita nos negócios políticos; não só porque o poder corrompe, mas porque grande parte das pessoas, como diz o inquisidor dostoievskiano, endossa abnegadamente a opressão terrena em busca de segurança, e nos coloca a todos, involuntariamente, em posição vulnerável. A liberdade lhes dói, pois exige um nível de responsabilidade que não querem assumir, nem por si mesmos nem pelos outros, e buscam nas potestades estatais a proteção de que necessitam.

Os governantes – cuja primeira preocupação, segundo Thomas Sowell, é serem eleitos, e a segunda é serem reeleitos – não estão, de fato, preocupados com a nossa liberdade, pois, em geral, seu governo, para que seja efetivo, exige submissão. A liberdade que pregam é a dos inquisidores, que Dostoiévski nos apresenta de maneira irrefutável: “Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto eles permanecerem livres, mas ao cabo de tudo eles nos trarão sua liberdade e a porão a nossos pés, dizendo: ‘É preferível que nos escravizeis, mas nos deem de comer’. Finalmente compreenderão que, juntos, a liberdade e o pão da terra em quantidade suficiente para toda e qualquer pessoa são inconcebíveis, pois eles nunca, nunca saberão dividi-los entre si!”

Por isso, urge não ceder às contradições: paz é paz, liberdade é liberdade, e conhecimento é poder. Ser livre é compreender as vicissitudes inerentes aos empreendimentos humanos e à própria história, e também resistir às paixões políticas e aos encantos dos salvadores terrenos. Por fim, um adendo aos irmão de fé: Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.

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