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Cena do filme Nazarín, de Luis Buñuel.
Cena do filme Nazarín, de Luis Buñuel.| Foto: Producciones Barbáchano Ponce/Reprodução

Conheci, assim, um romancista ateu que rezava todas as noites. Isso nada impedia: o que ele descarregava sobre Deus em seus livros! Que pancadaria, como diria já nem sei quem! Um militante livre-pensador com quem me abri a esse respeito ergueu, aliás sem má intenção, os braços ao céu: 'Não está me contando nenhuma novidade', suspirava esse apóstolo, 'são todos assim'. Segundo ele, oitenta por cento dos nossos escritores, se pudessem passar sem assinar, escreveriam e saudariam o nome de Deus. (Albert Camus, A Queda)

O leitor que me acompanha sabe de minha paixão pelo cinema, sobretudo por conta das muitas reflexões suscitadas por bons filmes. Em artigo recente, aqui, nesta Gazeta do Povo, eu disse que considerava o cinema não só uma arte, mas uma arte capaz de formar o nossa imaginação moral, de nos proporcionar experiências de participação na comunidade dos homens e nos dar, como diz Russell Kirk, uma “capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento”, visando “a justa ordem da alma e a justa ordem da comunidade”.

Dias atrás lembrei-me de um trabalho que fiz, no mestrado, sobre o cineasta Luis Buñuel, por quem tenho grande admiração – apesar de considerar sua filmografia bastante irregular. Na verdade foi Tarkovski que me fez gostar mais de Buñuel; ele afirma, em Esculpir o tempo, que o espanhol (naturalizado mexicano) é um dos diretores por quem sente maior proximidade, por conta de seu anticonformismo. Diz ele: “Seu protesto – furioso, intransigente e duro – expressa-se, sobretudo, na textura sensual do filme e é emocionalmente contagiante. O protesto não é calculado, cerebral, nem intelectualmente formulado […] Buñuel é, sobretudo, portador de uma consciência poética. Ele sabe que a estrutura estética não necessita de manifestos, e que a força da arte não se encontra aí, mas, sim, no poder de persuasão”. E apesar de, por vezes, ter se deixado levar demais pela crítica política em seus filmes – o que, certamente, restringe o poder imaginativo de uma obra de arte –, Buñuel tem filmes realmente grandiosos. Tarkovski também se sente ligado a Buñuel por conta da identidade nacional de seus filmes; assim como é impossível pensar em Tarkovski sem pensar na Rússia, a obra de Buñuel “está profundamente enraizada na cultura clássica da Espanha”.

Em meu trabalho, realizado para a disciplina que tratava da linguagem e da estrutura das chamadas religiões populares, escolhi analisar um filme particularmente interessante de Buñuel, Nazarin, de 1958, no qual não só os aspectos dessa religiosidade sincrética se manifestam, mas também é um profundo mergulho no mistério da fé – e da descrença. Resolvi transformar o trabalho acadêmico num ensaio e dividi-lo contigo, caríssimo leitor.

Quem conhece Buñuel e sua obra, sabe de suas duras críticas ao cristianismo e de suas constantes investidas contra a religião. Ele dedica um capítulo de sua autobiografia, Meu último suspiro, a discutir sua posição em relação à fé. Com o curioso título “Ateu graças a Deus”, afirma: “Ao lado do acaso, seu irmão, o mistério. O ateísmo – pelo menos o meu – leva necessariamente a aceitar o inexplicável. Todo universo é um mistério”; e complementa: “uma vez que me recuso a fazer intervir uma divindade organizadora, cuja ação me parece ainda mais misteriosa que o mistério, resta-me viver numa certa treva. Aceito”. No entanto, esse aceitar não é passivo, em seus filmes a religião é um tema recorrente e tensional; por vezes controverso – às vezes escandaloso e blasfemo.

Luis Buñuel Portolés, nascido em 22 de fevereiro de 1900, em Calandra, na Espanha, foi um cineasta rigoroso e prolífico, dono de obras-primas como os clássicos do surrealismo O cão andaluz e A Idade do Ouro – co-dirigidos por Salvador Dalí –, das “comédias” O discreto charme da burguesia e O anjo exterminador, e o vencedor do Leão de Ouro, no Festival de Veneza de 1967, A bela da tarde, estrelado pela belíssima Catherine Deneuve. Em sua filmografia há obras bastante polêmicas, por exemplo: Viridiana (1961) conta a história de uma noviça que abandona o hábito para cuidar dos pobres, após sofrer uma tentativa de estupro pelo próprio tio; Simão do Deserto (1965) é sobre um profeta milagreiro que vive no alto de uma coluna e enfrenta as intempéries e tentações do diabo; e A Via-Láctea (1969), considerado por muitos como um de seus filmes mais heréticos, que narra a peregrinação de dois homens a Santiago de Compostela em meio a acontecimentos que parodiam e satirizam as heresias e os dogmas católicos. Mas há também aquele que causou certa confusão tanto no público quanto na crítica: Nazarin.

O argumento para Nazarin surgiu do livro homônimo de Benito Perez Galdós (Nazarin, 1895), e narra a história de padre Nazário, um sacerdote católico que decide viver de forma radical os preceitos evangélicos, em pobreza extrema e generosidade abundante. O local onde a história se inicia é um cortiço, segundo o professor Samuel Holanda de Paiva (UFSCar) – em ensaio publicado no livro Um jato na contramão: Buñuel no México (Perspectiva), de Eduardo Pañuela Cañizal – “repleto de marginalizados, loucos e histéricos”. Seu quarto, onde vive de favor, está sempre de portas abertas, de modo que é constantemente roubado sem nunca prestar queixa à polícia. Uma clara distinção entre o livro de Galdós e o filme de Buñuel é que, enquanto o livro reafirma os valores cristãos, o filme os coloca em tensão, causando confusão na interpretação de suas pretensões.

Nazarin foi vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes (1959), criado especialmente na ocasião para premiá-lo. Também a Associação Católica Internacional para o Cinema (OCIC) intentou dar à película o prêmio de melhor filme católico do festival, causando espanto no próprio cineasta, que disse, em Meu último suspiro: “Entre os filmes que realizei no México, Nazarin é certamente um dos que prefiro. Aliás, foi bem recebido, apesar de alguns mal-entendidos que diziam respeito ao verdadeiro conteúdo do filme. Assim, no festival de Cannes, onde ele recebeu o grande prêmio internacional, criado especialmente nessa ocasião, quase lhe foi concedido também o prêmio do Office Catholique”.

Isso ocorreu porque Nazarin é um filme curioso do ponto de vista religioso. Padre Nazário é um cura sui generis, muito parecido com o vigário D’Ambricourt, do grande Georges Bernanos – esse, sim, um católico fervoroso –, ou, ainda, o Príncipe Míchkin, d’O Idiota de Dostoiévski. Sua ingenuidade e compaixão o levam a receber sempre o inverso daquilo que oferece; seu desprendimento é sua ruína. A decisão de viver um evangelho “autêntico”, onde o outro é mais importante que nós mesmos, o faz desviar-se da Instituição que o ordenou, tão envolvida que está numa religiosidade formal e burocrática. Por isso não podemos considerar um erro a Associação Católica ter visto em Nazarin um filme que exala o mais puro odor evangélico. E por mais que Buñuel tenha buscado desvincular sua película de qualquer virtude cristã, sua provável tentativa de criticar o cristianismo desemboca na mística. Seu personagem possui uma fortaleza que suplanta toda dúvida. Como nos diz Josef Pieper, em Virtudes fundamentais:A fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade não existe sequer a possibilidade de fortaleza”. Assim é o padre Nazário.

Num diálogo com dois homens que o interrogam sobre seu modo de vida, mostra uma tranquilidade irrefutável:

Visitante - És um padre Ortodoxo?

Pe. Nazário - Não, senhor. Sou Católico Apostólico Romano. Semeio minhas idéias com convicção, como faço com minha fé em Cristo, nosso Pai. As coisas não pertencem a ninguém. São para quem necessitar delas.

Visitante - Estou surpreso ao ver um padre morando num albergue.

Pe. Nazário - Meus vizinhos são pobres, assim como eu. Eis o porquê de eu viver entre eles. [...]

Visitante - Onde pregas?

Pe. Nazário - Eu raramente prego numa igreja. Falo alto e familiarmente para aqueles que querem ouvir. E para quem estiver por perto... falo pra minha mente.

Visitante - Como te sustentas?

Pe. Nazário - Das missas pagas. Quando há alguma.

Visitante - Sem ofensa, mas tua vida parece muito precária.

Pe. Nazário - Bastante! Faz parte de minhas obrigações, não sou triste.

Visitante - Então desafias a injúria, a fome, pobreza a opressão e as calúnias.

Pe. Nazário - Não as desafio; eu as contrario.

Visitante - Pelo que disseste, presumo que não vais melhorar tua condição ou pedir aos teus superiores alguma coisa.

Pe. Nazário - Correto, não pretendo e não peço.

Visitante - Comes quando precisa, senão, não comes.

Pe. Nazário - Exatamente, eu não como. E, se necessário, eu peço por caridade.

Visitante - Não acreditas que a dignidade de um padre é incompatível com pedir caridade?

Pe. Nazário - Não, senhor. Caridade não rebaixa quem a recebe, nem afeta a dignidade. Mas senhores, já não falamos bastante sobre mim?

Ou seja, o sacerdócio de Nazário é incomum demais, informal demais, derrotado demais para os padrões estabelecidos – como aquele povo do cortiço. Mas, como veremos, é cheio da graça de Deus, pois, como afirma Orlando Espín em A fé do povo: reflexões teológicas sobre o catolicismo popular (Paulinas), o sofrimento compartilhado por pessoas em situação de vulnerabilidade proporciona “a possibilidade da criação cultural de instrumentos para 'ver' (e experimentar ou sentir) Deus por intermédio do Jesus derrotado”.

No filme há situações nas quais a confusão e a histeria dão lugar a momentos de grande espiritualidade e altruísmo. Por exemplo: uma briga entre duas prostitutas do cortiço termina em ferimentos à faca. Nazário acolhe em seu quarto uma delas, Ándara, que fugia por ter ferido de modo mais grave sua oponente. Cuida de seus ferimentos e a deixa convalescer tranquilamente – tão tranquilamente que esta passa a se aproveitar dele –, até que a encontram. Ándara decide incendiar o quarto de Nazário para que ninguém sinta o cheiro de seu perfume (com o qual empesteou o local). Depois foge. Nazário aceita tudo estoicamente, mas seu comportamento escandaliza a comunidade e o torna um problema para os “padres sérios” – representados por Don Angel, seu superior, que o repreende e proíbe de celebrar missas. Diante de tal situação, padre Nazário decide abandonar o sacerdócio e viver uma vida secular. Porém, fracassa logo na primeira tentativa de suprir suas necessidades básicas. Isso porque se oferece para trabalhar (de ajudante de pedreiro) em troca de alimento, mas sua atitude irrita os outros empregados, que o expulsam. Passa, então, a errar em mendicância.

Buñuel é, sobretudo, portador de uma consciência poética

Num vilarejo próximo, encontra Beatriz, uma ex-moradora do cortiço, um tanto escandalosa, que tentara suicídio por ter sido abandonada pelo noivo, um sujeito truculento. Está morando com uma irmã viúva, e Ándara – que incendiou o quarto de Nazário – está com elas. Beatriz pede ao padre renegado que lhes faça uma visita, pois sua sobrinha padece de uma enfermidade grave e gostariam de receber suas orações. Sim, elas creem no poder da oração do padre desacreditado. Nazário resiste um pouco, mas acaba por aceitar.

Ao chegar, ainda à porta as mulheres o recebem com entusiasmo. Josefa, a irmã de Beatriz, lhe beija a mão e diz: “Deus te chamou a essa casa, padre. Sei que és um santo. [...] Se não fizeres alguma coisa, ela não mais enxergará”. Mas Nazário protesta (e até racionaliza): “Somente Deus e a ciência podem salvá-la”. Mas não é levado a sério, a necessidade e a fé falam mais alto. Josefa ainda expõe todo o sincretismo desesperado de sua fé quando explica ao padre fatos misteriosos relacionados à doença da menina: “No dia em que ela adoeceu senti uma coisa ruim se aproximando, porque a coruja chiava toda noite. E quando eu saí, três cachorros uivaram. Um após o outro”. Nazário tentou racionalizar novamente: “O médico já a viu”? Mas a mulher está irredutível: “Padre, tenho rezado tanto”! Nazário ainda resiste mais um pouco: “Segue as orientações do médico. Deves resignar-te e confiar em Deus”. Mas elas insistem: “Somente um milagre pode salvá-la. Deus começou trazendo-te para essa cidade. Chegaste descalço, igual a Nosso Senhor Jesus Cristo”! E os protestos continuam até que, diante de tamanha insistência, Nazário aquiesce.

Ao entrar, encontra a menina deitada numa cama de palha. A pobreza é visivelmente constrangedora. Faz uma oração simples, humilde, quase descrente: “Senhor, devolve a saúde a essa alma inocente. Ofereço-te em troca minha saúde e minha vida, e humildemente aceito todos os obstáculos e calamidades, todas as doenças e dores que podem afligir um homem”. Eis que ocorre uma cena curiosíssima: ao final da oração de padre Nazário, as mulheres se ajoelham e começam a rezar com veemência e de forma desesperada; Beatriz entra em êxtase; uma das senhoras pega um maço de plantas e começa a benzer a menina enquanto reza o Pai Nosso; outra se joga no chão a berrar histericamente; Ándara bate no peito repetidas vezes dizendo: “Jesus! Jesus! Jesus!...”.

A religiosidade sincrética dessas mulheres é exposta por Buñuel de maneira peculiarmente interessante. A tensão entre aquele catolicismo formal de Don Angel e a fé pujante das pessoas simples é um traço característico da crítica do cineasta à religião.

Para confirmar as expectativas, a menina amanhece curada. Padre Nazário vai embora sorrateiramente logo cedo, mas é seguido por Ándara e Beatriz, que desejam acompanhá-lo. Dizem: “Queremos ser peregrinas boas e puras como és”! O padre as rechaça energicamente, dizendo: “Achais que sou louco o suficiente para levar-vos comigo? Apenas olhai o que tem acontecido a mim”. Mas elas insistem; insistem tanto que ele acaba se permitindo ter as duas como companheiras de desventuras. Sim, desventuras. A sina de padre Nazário é ser defenestrado pelo próprio povo que defende. Portador de uma moralidade escandalosamente objetiva, padre Nazário é rejeitado por fiéis e infiéis. E para Buñuel esse contraste é a mais notável característica de seu personagem. Diz isso claramente numa entrevista a Elena Poniatowska, da Revista da Universidade do Mexico, registrada por Ado Kyrou em sua biografia do cineasta:

Buñuel - Nazarin está inteiramente dentro de minha linha moral.

EP - O Nazarin que fracassa? O Nazarin que anda pelos campos seguido por duas mulheres histéricas?

Buñuel - Sim, esse Nazarin.

EP - Mas por que? Cristo...

Buñuel - Cristo foi crucificado depois de ter sido condenado. Não considera isso um fracasso? Acredita que é possível ser cristão no sentido absoluto da palavra?

EP - Sim, despojando-se de tudo, afastando-se do mundo.

Buñuel - Não! Não! Falo do mundo, desta terra onde vivemos agora. Se Cristo voltasse, eles o crucificariam. Pode-se ser relativamente cristão, mas o ser absolutamente puro, inocente, está condenado ao fracasso. Está derrotado antes de começar. Estou certo de que, se Cristo voltasse, os maiorais da religião, a Igreja, o condenariam...

EP - Nazarin, como filme, me parece ambíguo, estranho...

Buñuel - Usou o termo ambíguo. Estou de acordo. O estilo é ambíguo e é por isso que ele me interessa.

Nazário é ambíguo. Nazário é, essencialmente, cristão.

Em sua peregrinação, enquanto descansam, ensina os fundamentos do cristianismo às suas duas únicas ovelhas. Inclusive, tenta corrigir, com altas doses de ortodoxia, a fé supersticiosa de Ándara e Beatriz:

Beatriz - Padre, se eu comungar, os demônios vão embora?

Padre - Que demônios seriam esses?

Beatriz - Minha irmã diz que tenho espasmos no coração.

Ándara - É uma maldição. Alguém quer o teu mal.

Padre - Quantas vezes devo falar que são apenas superstições?

Beatriz - Quando sinto falta de ar, eu sinto uma bola de fogo no meu estômago. E sinto vontade de matar.

Padre - Isto não são bruxas ou demônios. É uma doença bem conhecida e vem da imaginação. E com a imaginação a curas.

Uma das cenas mais marcantes e debatidas do filme se passa quando Nazário e suas pupilas entram num vilarejo assolado pela peste. Entram num quarto onde uma mulher delira, doente de morte. Nazário tenta fazê-la arrepender-se de seus pecados a fim de herdar a vida eterna. Porém, a mulher rejeita a exortação do padre e fica a repetir o nome de seu esposo: “Céu não, Juan”! E quando o marido retorna, os expulsa do quarto. Conforme disse o próprio Buñuel, em Meu último suspiro, ele incluiu essa cena, que não consta no livro de Galdós, numa referência à obra Diálogo entre um sacerdote e um moribundo, de Donatien Alphonse François de Sade, o famigerado Marquês de Sade, por quem Buñuel tinha um verdadeiro fascínio.

Como diz um prof. Samuel Holanda de Paiva, Buñuel provoca, inspirado em Sade, uma “não idealização dos pobres”. Não há, para ele, um ponto de vista único, fixo e moralizante. Ele afirma: “Resulta deste processo uma moral distante de maniqueísmos, uma formulação cujo ponto de partida consiste no desvendamento de convenções e preconceitos, seguindo em direção a um limite absolutamente imponderável. Para tanto, há de se entrar no território do maldito e conhecer a antítese da orientação convencional, conservadora. Há que se devotar à imaginação toda e qualquer imagem. E, assim, adentramos o território de Sade, propiciador da munição necessária a este embate”.

Diante de tamanho descaso, padre Nazário vacila e vê sua vocação esvaecer em meio a um mundo que não é capaz de assimilar sua mensagem.

Por fim, Nazário é preso, acusado de perverter as mulheres que o seguem. Ándara também é detida pela briga e fuga. Beatriz os segue voluntariamente, mesmo sob os protestos de Pinto, seu amado, que a encontrou no último povoado por onde passavam antes da prisão. Sem resistir, são conduzidos de volta ao seu local de origem junto com outros criminosos. Ao chegarem, a mãe de Beatriz a visita na prisão e tenta dissuadi-la de seguir o padre. Beatriz recusa e narra com deslumbre incomum os feitos de Nazário, proclamando-o um santo. A mãe, então, diz que a filha, na verdade, ama o padre como homem e não como santo. Beatriz nega veementemente, tem uma violenta crise de histeria, e Pinto a leva consigo.

Na prisão, padre Nazário é provocado por um preso, que o espanca sem encontrar resistência. Outro preso intervém e o protege. Um breve diálogo entre os dois demonstra o nível de descrença em que se encontra o povo que Nazário buscou amar sem ser correspondido – a não ser pelas duas renegadas, as únicas que conseguiram enxergar o amor abnegado do cura:

Pe. Nazário - Obrigado. És bondoso.

Criminoso - Eu, bom? Não. Sou exatamente o contrário.

Pe. Nazário - Cometeste muitos crimes?

Criminoso - Não sei. Apenas dois. E assaltei muitas igrejas.

Pe. Nazário - Não te afliges, às vezes, pelo que fez?

Criminoso - Quando estou sozinho. Mas aí meus amigos aparecem, e... [...]

Pe. Nazário - Gostarias de ser bondoso?

Criminoso - Sim, mas como?

Pe. Nazário – Só é necessário que digas: “Quero ser bom”. E seres verdadeiramente determinado a ser bom. Terias de mudar tua vida.

Criminoso - Mudarias a tua?

Pe. Nazário - Como?

Criminoso - Olhe, tudo, tudo que eu faço são coisas ruins. E pra que serve a vida? Tu, do lado do bem e eu do lado do mal. Nenhum de nós é muito bom no final das contas.

Qualquer semelhança com a Paixão de Cristo não é mera coincidência. Fariseus, centuriões, Marta e Maria, o Bom e o Mau Ladrão; todos são facilmente reconhecíveis na trama. Também o são as circunstâncias, pois, como diz a Bíblia: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (João 1,1).

Nazário, então, recebe um padre que negociou sua libertação. O discurso é duro, como sói acontecer à repreensão a um padre que não se enquadra nos padrões. Para a Igreja institucional, Nazário está louco, é um rebelde de difícil recuperação, um desajustado. Num dado momento, o padre lhe diz: “Será difícil ajustar-te à realidade. Verás que teus hábitos se contradizem com os dos outros sacerdotes. Teus métodos confrontam a igreja a qual clamas amar e obedecer”. Ou seja, o cristianismo de padre Nazário é escândalo. Destoa do que é tradicional, pois só pode ser compreendido por aqueles que sofrem da mesma inadequação. Como nos diz José Luis Gonzáles, em Catolicismo popular: história, cultura, teologia (Vozes): “O credo popular é muito mais amplo que o oficial e possui critérios distintos de ortodoxia”.

Ao final de sua jornada, Nazário e o soldado a paisana que o acompanha encontram uma mulher que vende frutas numa carroça. Eles param, o soldado pede uma maçã; a mulher lhe entrega a fruta e pergunta se pode dar algo ao prisioneiro; ele dá de ombros. A senhora oferece um abacaxi a Nazário que, olhando com uma expressão de desespero – de quem, a essas alturas, duvida de qualquer generosidade –, recusa e dispara a andar. Em seguida, retorna e aceita. É a resignação diante da misericórdia de Deus. A certeza de que seu sofrimento é redentor; é, nas palavras de Viktor Frankl, repleto de sentido. Como afirma em seu célebre Em busca de sentido (Sinodal):

Quando um homem descobre que seu destino lhe reservou um sofrimento, tem que ver nesse sofrimento também uma tarefa sua, única e original. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o cosmo dentro deste destino sofrido. Ninguém pode assumir dela o destino, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta esse sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular.

O fim de padre Nazário – no filme, pois no livro de Galdós ele termina celebrando uma missa – lembra a história de outro sacerdote renegado (mas com grande apelo popular), o vigário D’Ambricourt (mencionado acima), de Georges Bernanos, em O Diário de um Pároco de Aldeia. O padre de Bernanos é extremamente frágil e vacilante; no entanto, sua vocação, tal como a de Nazário, é inegável. Vítima da mesma incompreensão que sofreu o Nazarin, não só proclamou incansavelmente a misericórdia de Deus como também a viveu, de modo radical, até o dia de sua morte, prematura, vítima de um câncer. Suas últimas palavras são penetrantes – e se adequariam muitíssimo bem à boca de padre Nazário ao voltar e aceitar o abacaxi que mulher lhe oferece: “Que importa? Tudo é graça”.

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