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Martin Luther King Jr. e sua esposa, Coretta Scott King.
Martin Luther King Jr. e sua esposa, Coretta Scott King.| Foto: Herman Hiller/New York World-Telegram & Sun/Library of Congress/Domínio público

Ao sul do Norte, e no entanto ao norte do Sul, estende-se a Cidade das Cem Colinas espiando, das sombras do passado, as promessas do futuro. Eu a vi de manhã, quando os primeiros rubores do dia começavam a despertá-la; lá estava ela, cinzenta e quieta, no solo carmesim da Geórgia. (W.E.B. Du Bois, Sob as asas de Atalanta)

[…] Apenas desejo obedecer aos desígnios de Deus. E Ele me levou ao topo da montanha, olhei ao redor e contemplei a Terra Prometida. Posso não alcançá-la, mas quero que saibam, que nós, como povo, chegaremos à Terra Prometida. Estou tão feliz; não me preocupo com nada; não temo homem algum. Meus olhos viram a glória da presença do Senhor. (Martin Luther King Jr. em seu último sermão, 3 de abril de 1968)

Ontem (segunda-feira, dia 18) foi o Martin Luther King Day, feriado nacional norte-americano, sancionado por Ronald Reagan em 1983, em comemoração à vida e obra deste que foi um dos maiores seres humanos que pisaram neste planeta, Martin Luther King Jr.. O feriado é comemorado sempre na terceira segunda-feira de janeiro, que é próxima ao aniversário de King, em 15 de janeiro. O feriado é fruto de uma longa campanha por sua aprovação. Alguns estados custaram a aderir, outros o proibiram; sua esposa, Coretta Scott King, encabeçou a campanha, que contou com a ajuda de muitos políticos e artistas, inclusive o grande Stevie Wonder, que compôs a música Happy Birthday especialmente para essa finalidade.

King, um jovem pastor nascido em Atlanta, na Geórgia – em epígrafe, homenageada por Du Bois –, foi um dos principais líderes da luta antirracismo e pelos direitos civis dos negros americanos, e também foi o principal articulador político da assinatura da Lei dos Direitos Civis, em 1964, por Lyndon B. Johnson, após quase uma década de protestos não violentos – sua estratégia, inspirada na filosofia de Gandhi e no cristianismo –, pautados substancialmente, podemos dizer, nas quatro virtudes cardeais: prudência, justiça, temperança e fortaleza, todas já tratadas por mim em artigos nesta Gazeta do Povo. As manifestações pacíficas, que eram duramente reprimidas pela polícia – vide o filme Selma, de Ava DuVernay –, chamaram a atenção de todo o país não só para a absurda segregação de pessoas negras causada pelas leis Jim Crow, no sul, bem como para os efeitos nefastos do racismo, tais como os tão comuns quanto escandalosos espancamentos e enforcamentos perpetrados pela Ku Klux Klan (KKK) e também por indivíduos inescrupulosos que espalhavam o terror por cidades como Montgomery, cidade do Alabama em que os casos de violência racista eram alarmantes. Foi em Montgomery, em 1954, que King iniciou sua vida pastoral, e onde Rosa Parks, em 1955, foi presa por se recusar a levantar no ônibus para dar seu lugar a um homem branco, dando início, com seu gesto e com os protestos organizados que se seguiram, ao movimento pelos direitos civis. A luta de King mobilizou brancos e negros em luta frontal e ininterrupta contra a segregação violenta dos estados sulistas, bem como o encaminhamento das leis que colocariam fim, pelo menos no papel, ao apartheid vigente desde os tempos da escravidão.

Martin Luther King era conservador ou progressista? De direita ou esquerda? Liberal ou comunista? Pacifista ou armamentista? Nenhuma das alternativas: era um homem excepcional num tempo de excepcionalidade

Entretanto, neste artigo não quero propriamente discorrer sobre a militância de King nem sobre este glorioso movimento de emancipação, que pode ser melhor conhecido com uma rápida pesquisa na internet ou lendo a vasta bibliografia disponível sobre o assunto. Minha intenção é tentar fornecer uma resposta ao persistente questionamento – sobretudo nestes tempos de exaltação ideológica – a respeito da visão política de Martin Luther King Jr.. É muito comum as pessoas disputarem King, colocando-o no espectro político de sua preferência. Desse modo, os questionamentos se impõem: Martin Luther King era conservador ou progressista? De direita ou esquerda? Liberal ou comunista? Pacifista ou armamentista? Minha resposta é simples – mas tentarei fundamentá-la nas palavras do próprio King, que as pessoas raramente leem: nenhuma das alternativas. King era um homem excepcional num tempo de excepcionalidade.

Uma coisa que precisa ficar inquestionavelmente clara em relação a isso é que King era fundamentalmente um homem cristão e muito piedoso. Acreditava em Deus e no poder da fé. Mais do que isso, era um pastor de almas, e como tal, penso que tinha como objetivo principal o que ele chama de revolução de valores – sobre a qual falarei adiante –, que pautava suas ações na obediência irrestrita ao Evangelho de Jesus Cristo, que deve ser pregado a todas as pessoas, não importando sua raça, religião, posição social ou política. E isso fica evidente em suas palavras no sermão proferido na Igreja Riverside em 4 de abril de 1967, em que se opõe à Guerra do Vietnã: “Por acaso não sabem que a Boa Nova veio para todos os homens – para comunistas e capitalistas, para os seus filhos e os nossos, para negros e brancos, para revolucionários e reacionários? Terão esquecido que o meu ministério obedece Àquele que amou os Seus inimigos de tal forma que morreu por eles? O que posso então dizer, como um fiel ministro de Jesus, ao vietcongue, a Castro ou a Mao? Posso ameaçá-los com a morte ou devo partilhar com eles a minha vida?”.

Mas, no sermão que praticamente inaugurou o Movimento pelos Direitos Civis, proferido em 5 de dezembro de 1955, na igreja batista de Holt Street, em Montgomery – por ocasião da primeira reunião da Associação pelo Progresso de Montgomery, que organizaria os protestos contra as empresas de ônibus da cidade –, King já dá pistas de sua posição, ao criticar tanto o capitalismo quanto o comunismo, dizendo, primeiro: “E certamente, certamente, essa é a glória da América, com todos os seus defeitos. Essa é a glória de nossa democracia. Se estivéssemos encarcerados atrás das cortinas de ferro de uma nação comunista, não poderíamos fazer isso. Se estivéssemos jogados nos porões de um regime totalitário, não poderíamos fazer isso. Mas a grande glória da democracia americana é o direito de protestar pelos nossos direitos”. E depois: “Em nenhum momento da democracia americana devemos acreditar que estamos errados por protestar. Somos detentores desse direito. Quando trabalhadores de toda a nação perceberam que seriam pisoteados pelo poder capitalista, não estavam errados esses trabalhadores ao se unirem e se organizarem e protestarem por seus direitos”. Isso o coloca, de antemão, numa posição peculiar.

King tinha, como cristão, uma profunda noção da condição pecaminosa do ser humano e das contradições que isso acarretava; portanto, também não o considero um pacifista ingênuo, que crê na bondade intrínseca do homem; mas, a partir da leitura do teólogo protestante Reinhold Niebuhr – com quem por um tempo concordou e de quem, após um período de reflexão, passou a discordar – e suas críticas ao pacifismo, percebe que, como diz em sua Autobiografia,

Sua teologia é um lembrete constante da realidade do pecado em todos os níveis da existência humana. Esses elementos de seu pensamento me ajudaram a reconhecer as ilusões de um otimismo superficial a respeito da natureza humana e os perigos de um falso idealismo. Embora eu ainda acreditasse no potencial do homem para o bem, Niebuhr me fez perceber também o seu potencial para o mal. Mais que isso, ele me ajudou a compreender a complexidade do envolvimento social do homem e a realidade patente do mal coletivo. Muitos pacifistas, penso eu, não conseguiram ver isso. Muitos deles tinham em relação ao homem um otimismo injustificável e tendiam inconscientemente para o farisaísmo.

Portanto, eu não diria que King é pacifista, mas um pacificador, cujo pacifismo peculiar era mesclado com sua antropologia cristã e com os ensinamentos de Jesus.

Do mesmo modo, sua visão a respeito do capitalismo e do socialismo/comunismo não pode ser vista de maneira ingênua ou maniqueísta. King conhecia bem os princípios do capitalismo liberal e também estudou com atenção o marxismo, e chegou à conclusão de que nenhum dos dois, isoladamente, poderia resolver o problema da pobreza. A primeira e mais fundamental crítica que ele faz ao marxismo está, mais uma vez, pautada em sua visão cristã. Como ele diz em sua autobiografia, após uma leitura acurada do Manifesto Comunista e do Capital:

Em primeiro lugar, rejeitei sua interpretação materialista da história. No comunismo, declaradamente secularista e materialista, não há lugar para Deus. Isso eu nunca poderia aceitar, pois, como cristão, acredito na existência de um poder criativo pessoal neste universo que é a base e a essência de toda realidade – um poder que não pode ser explicado em termos materialistas. A história é guiada, em última instância, pelo espírito, não pela matéria [...]. Em segundo lugar, discordei enfaticamente do relativismo ético do comunismo. Já que para a comunidade não existe um governo divino, uma ordem moral absoluta, não existem princípios fixos e imutáveis; logo, quase tudo – força, violência, assassinato, mentira – é um meio justificável para se atingir um fim “milenarista”. Esse tipo de relativismo me incomodou.

E arremata de modo espetacular:

Em terceiro lugar, eu me opus ao totalitarismo político do comunismo. No comunismo o indivíduo acaba submetido ao Estado. Evidentemente, o marxista argumentaria que o Estado é uma realidade “transitória” a ser eliminada com a emergência de uma sociedade sem classes; mas o Estado é o fim, ao menos enquanto permanecer, e o homem é apenas um meio para se atingir esse fim […]. Essa restrição à liberdade do indivíduo era para mim algo deplorável. Estou convencido agora, tal como estava naquela época, de que o homem é um fim por ser um filho de Deus. O homem não é feito para o Estado, o Estado é feito para o homem. Privar o homem de sua liberdade é relegá-lo à condição de coisa em lugar de elevá-lo à condição de pessoa. O homem nunca deve ser tratado como um meio para o Estado, mas sempre como um fim em si mesmo.

King conhecia bem os princípios do capitalismo liberal e também estudou com atenção o marxismo, e chegou à conclusão de que nenhum dos dois, isoladamente, poderia resolver o problema da pobreza

No entanto, King diz que, apesar de considerar o comunismo como algo “basicamente maligno”, tinha alguns aspectos que ele considerava desafiadores, como a crítica de Marx – acertada, a seu ver – sobre “o perigo do motivo lucro como base única de um sistema econômico”. Para King, “o capitalismo pode conduzir a um materialismo prático tão pernicioso quanto aquele ensinado pelo comunismo”. Diante disso, a proposta de King seria uma terceira via, muito parecida com o distributismo defendido pelos gigantes intelectuais católicos G.K. Chesterton e Hilaire Belloc. A conclusão de King é, no mínimo, interessante:

Minha leitura de Marx também me convenceu de que a verdade não está nem no marxismo nem no capitalismo tradicional. Historicamente, o capitalismo não conseguiu ver a verdade no empreendimento coletivo e o marxismo não conseguiu ver a verdade no empreendimento individual. O capitalismo do século 19 não conseguiu ver que a vida é social e o marxismo não conseguiu, nem consegue ver, que a vida é individual e pessoal. O Reino de Deus não é nem a tese do empreendimento individual nem a antítese do empreendimento coletivo, mas uma síntese que concilia as verdades em ambos contidas.

Por fim, uma palavra a respeito de seu suposto conservadorismo. À época de King, o problema era, sobretudo, a segregação sulista institucionalizada pelas leis Jim Crow. Mas o norte não estava isento de suas críticas. Num sermão proferido em Detroit, em 23 de junho de 1963, ele diz: “Aqui no norte, a diferença é que não há sanções legais como no sul. Mas aqui há uma discriminação, mais sutil e disfarçada, que se revela de fato em três áreas: emprego, moradia e escolas públicas. E devemos perceber que a segregação de fato no norte é tão ofensiva quanto a segregação de direito no sul”. E, no que concerne aos partidos, suas palavras não são menos duras, como asseverou em 17 de maio de 1957: “Essa carência de liderança positiva por parte do governo federal não se restringe a um determinado partido político. Ambos os partidos traíram a causa da justiça. Os democratas a traíram ao capitularem diante dos preconceitos e das práticas antidemocráticas dos dixiecratas. Os republicanos a traíram ao capitular diante da grosseira hipocrisia dos conservadores do norte. Frequentemente, esses homens têm uma alta pressão sanguínea verbal e uma anemia de ações”.

Não podemos colocar King dentro de caixinhas ideológicas ou mesmo em posições políticas determinadas, mas reconhecer que era uma figura complexa, intrépida e genial

Mais uma vez temos de analisar a excepcionalidade de King e de seu tempo. Os conservadores de sua época representavam tanto os reacionários do sul quanto os hipócritas do norte – que, apesar de saberem do problema, não se envolviam. Nesse sentido, King era um progressista contra os conservadores que queriam manter o statu quo, resistindo ou simplesmente nada fazendo. E, contra aqueles que pediam “calma e paciência”, King disse, em 23 de junho de 1963, que “por muito tempo agimos com calma, e é esse o perigo [...] agora o motor está girando, seguimos pela estrada da liberdade em direção à cidade da igualdade, e que não podemos parar agora, porque nossa nação tem um encontro marcado com o destino. Precisamos prosseguir”. E complementa: “Mas há outro clamor. Eles dizem: ‘Por que vocês não agem de modo gradual?’ Bem, gradualismo é pouco mais que escapismo e acomodação, que resultam em inércia”.

Entretanto, os aspectos conservadores de suas posições podem ser evidenciados em sua posição não revolucionária – no sentido marxista do termo – e no que ele chama de revolução de valores, traduzida em sua estratégia de resistência não violenta, como ele deixa evidente ao dizer: “Lutemos com paixão e sem descanso, pelos objetivos de justiça e de paz, mas tenhamos certeza de que, nesta luta, as nossas mãos permaneçam limpas. Jamais lutemos com falsidade e violência, ódio e malícia, de tal modo que, quando vier o dia em que os muros da segregação tenham sido completamente desmoronados em Montgomery, possamos viver todos como irmãos e irmãs”.

Essa era a intenção de King, cuja firmeza não reside numa acomodação – como criticava Malcolm X, cujo antagonismo com King já tratei aqui e aqui –, mas num radicalismo absoluto, como ele afirma de modo categórico em seu mais famoso sermão Eu tenho um sonho, proferido em Washington, em 28 de agosto de 1963: “E não haverá descanso nem tranquilidade na América até que se conceda ao negro a sua cidadania. As tempestades da revolta continuarão a balançar os alicerces da nossa nação, até que floresça a luminosa manhã da justiça”. Mas complementando: “Não devemos saciar a nossa sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir a nossa luta no mais alto nível de dignidade e disciplina. Não podemos permitir que o nosso protesto degenere em violência física”.

O que King pregava era nada mais que a liberdade como um princípio fundamental da dignidade humana

Sua revolução de valores estava enraizada no amor, que, para ele, não era um simples sentimento nem um elemento frágil da natureza humana:

Não estou falando de uma força que seja apenas uma tolice sentimental. Estou falando de uma força que todas as grandes religiões tomaram como o princípio unificador supremo da vida. Amor é, de algum modo, a chave que abre a porta da realidade última. Essa crença hindu-muçulmana-cristã-judia-budista sobre a realidade última é maravilhosamente sintetizada na primeira carta de São João: “Amemo-nos uns aos outros, pois Deus é amor. E todo aquele que ama é nascido de Deus e por Ele conhecido. Aquele que não ama não conhece Deus, pois Deus é amor… Se nos amamos uns aos outros, Deus habita em nós e Seu amor em nós é perfeito”. Esperemos que esse ânimo se torne a ordem do dia.

Desse modo, reafirmamos: King era um homem excepcional num tempo de excepcionalidade. Por isso não podemos colocá-lo dentro de caixinhas ideológicas ou mesmo em posições políticas determinadas, mas reconhecer que era uma figura complexa, intrépida e genial, dono de uma oratória impressionante e só comparável à de seu rival – cuja estratégia, hoje, podemos reconhecer como complementar – Malcolm X. O que King pregava era nada mais que a liberdade como um princípio fundamental da dignidade humana, princípio imortalizado nas palavras de um de seus mais contundentes sermões, E agora, para onde vamos?, proferido na Convenção Anual da Conferência da Liderança Cristã do Sul, em Atlanta, em 16 de agosto de 1967, com as quais termino esse texto, que já se alonga:

O negro só será livre quando atingir as profundezas de seu ser e assinar, com a pena e a tinta de sua humanidade, a sua própria proclamação de emancipação. E com um espírito voltado para a verdadeira autoestima, o negro pode corajosamente desvencilhar-se dos grilhões da autonegação e dizer a si mesmo e ao mundo: “Eu sou alguém. Eu sou uma pessoa. Eu sou um homem digno e honrado. Tenho uma história rica e nobre, mesmo que essa história tenha sido de dor e exploração. Sim, meus antepassados foram escravos, e não me envergonho disso. Tenho vergonha daqueles pecadores que os escravizaram”. Sim, sim, devemos nos levantar e dizer: “Eu sou negro, mas eu sou negro e belo”. Essa autoafirmação, essa autoafirmação é uma necessidade do negro, tornada obrigatória pelos crimes cometidos contra ele pelo branco […]. A dignidade do indivíduo florescerá quando as decisões que dizem respeito à sua vida estiverem em suas próprias mãos, quando tiver a segurança da estabilidade e a certeza de sua renda, e quando souber que tem os meios para buscar melhorias para si.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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